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O MUNDO VISTO A PARTIR DO RIO DE JANEIRO

No documento lucienefatimatofoli (páginas 74-78)

3 AS CRÔNICAS RODRIGUIANAS DE MEMÓRIA E CONFISSÃO

3.4 O MUNDO VISTO A PARTIR DO RIO DE JANEIRO

Embora Nelson Rodrigues tenha se embrenhado por suas memórias e confissões somente em 1967, ou seja, aos 55 anos de idade e 40 de Jornalismo, suas reminiscências remontam à infância, na segunda década do século XX, o autor vai falar de um Brasil visto a partir da Baía de Guanabara e eminentemente carioca. A cidade do Rio de Janeiro era o palco predileto de suas histórias, como se o mundo se resumisse ao trajeto entre a zona norte, o centro e a zonal sul. Numa entrevista à TVE, em 1973, o escritor declara: “Nunca viajo porque a partir do Méier sinto saudade do Brasil. Ninguém acredita. Eu só sei viver com minha língua e minha pátria. Sou um homem da minha rua. Quando vou muito longe me sinto um peixe fora d’água”. (RODRIGUES, 1973). Na opinião de Nelson, a melhor maneira de ser universal era não sair do próprio bairro. Talvez Nelson dissesse isso não apenas pelo fato de não gostar de viajar.

É preciso lembrar o papel que a cidade do Rio de Janeiro representou e ainda representa na história do Brasil. Em 1763, passou a ser a capital do vice-reinado da colônia portuguesa na América. Segundo a historiadora Barbara Freitag (2009, p. 24), a decisão teria sido tomada por uma medida de segurança, uma vez que o Rio oferecia um porto natural e seguro para o escoamento da riqueza advinda da exploração das jazidas de ouro, prata e diamantes, em Minas Gerais e Goiás. Representava também a facilidade de intercâmbio com as regiões do interior, com a metrópole e com as demais colônias africanas, de onde vinham os escravos.

Em 1808, a família real e a corte portuguesa desembarcaram em terras cariocas, transformando a cidade em capital do Brasil e deslocando o eixo econômico do nordeste agrícola para o sudeste. Conhecida como Nova Lisboa, tornou-se também a capital do império transatlântico. Durante dois séculos, e até 1960, o Rio de Janeiro vai ser a capital do país. Freitag (2009) acredita que todo

esse movimento político e econômico em torno da cidade, ainda que sob o controle da metrópole, depois do Império e, finalmente, da República, contribuiu para associar cada vez mais a figura da cidade à figura do país.

Além de todas essas mudanças, o Rio de Janeiro vai assumir, na passagem do século XIX para o XX, o peso de ser uma capital moderna de acordo com os modelos americano e europeu. Na análise de Rodrigues (2002), o Rio de Janeiro não era nem uma cidade moderna, nem uma cidade colonial. A modernidade que ganha vigência na capital tropical é bastante diferente daquela vivida na Europa, “provocada pelo desenvolvimento de estruturas de produção e consumo capitalistas”. (RODRIGUES, 2002, p. 25).

Tomando por base a análise do historiador britânico E. P. Thompson, que considerava como transformação fundamental do mundo contemporâneo a imposição do trabalho com tempo marcado em substituição àquele orientado por tarefas, com a consequente perda de controle por parte do trabalhador de sua vida produtiva, acompanhada de uma série de normas e punições, Facina (2004) considera que, para Nelson Rodrigues, essa transição não se operou no Rio de Janeiro, que vivia uma modernidade incompleta. Nas andanças que fazia diariamente pelas ruas e avenidas da capital federal, o cronista constata, com ironia, que o carioca era um eterno feriado, sem preocupações com o trabalho ou com o tempo: “No domingo Copacabana fica entupida; na segunda-feira há mais gente do que na véspera. E, assim, terça, quarta, quinta, sexta, sábado. [...] Copacabana vive, por semana, sete domingos. (RODRIGUES, 1995, p. 17-18). Na crônica “Sem amar, nem odiar”, Nelson transforma essa observação numa máxima nacional:

O brasileiro é um feriado. Vi isso, anteontem, e de repente. Era uma terça- feira e — note-se — o primeiro dia útil depois de sexta, sábado, domingo e segunda de Natal. Imaginei que, exausto da própria ociosidade, o brasileiro estivesse no escritório, na oficina ou na pedreira, fazendo a sua pátria. O meu táxi ainda deslizava pela rua Francisco Sá. E eu já via, com olhos da imaginação, uma praia deserta, sem uma mísera alma ou de calção ou de biquíni.

Todavia, quando dobro para a avenida Atlântica, eis o que vejo: do Forte de Copacabana ao Vigia, era uma só multidão que daria para lotar várias vezes o maior Fla-Flu. Por um momento, eu, na mais amarga perplexidade, não sabia o que pensar. Eram os mesmos umbigos paradisíacos da véspera, e de todas as vésperas. Essa nudez multiplicada deu-me o que pensar. Foi aí que descobri esta verdade nacional: — o brasileiro é um feriado, temos alma de feriado. (RODRIGUES, 1993, p. 68).

Uma alma negada apenas aos paulistas. Para o cronista, em São Paulo residem o silêncio, a solidão e a agitação de uma grande metrópole, onde o homem já não controla mais o seu tempo. Numa de suas poucas viagens à cidade, Nelson conta que depois de almoçar num restaurante lotado, percebeu que havia um “fatal abismo entre o carioca e o paulista”. (RODRIGUES, 1995, p. 137). Depois de voltar do banheiro, levou um susto. O lugar, que antes tinha gente até no lustre, estava vazio. Considerando que pudesse ter tido uma alucinação, dirigiu-se ao garçom:

- "Cadê o pessoal que estava aqui? Isso não estava cheio?". O garçom pôs o prato na mesa: - "Perfeitamente". E eu: - "Não tem mais ninguém, por quê?". Antes de responder, indagou: - "O senhor é do Rio?". Era do Rio. Deu a explicação sucinta e lapidar: - "Aqui, trabalha -se". (RODRIGUES, 1995, p. 138).

Não era só o fato de trabalhar que, nas crônicas rodriguianas, afastava cariocas e paulistas. Segundo o escritor, enquanto o papo carioca era “vadio, irresponsável e quase delirante” (RODRIGUES, 1995, p. 138), o paulista era um silencioso convicto. Na crônica “Casamento sem palavras”, Nelson conta o encontro que tivera com uma senhora na entrada do Maracanã que dizia precisar, urgentemente, da orientação dele e conta sua história:

Disse uma frase que resumia tudo: - "Meu marido não fala". Faz pausa, esperando o meu espanto. E continua: - "Sabe lá o que é viver com um homem que não diz uma palavra?". Daria tudo por um "bom-dia " desse homem. Não queria mais: - um "bom-dia". (RODRIGUES, 1995, p. 279).

Isso acontecera porque Nelson, em sua de suas crônicas, fala sobre a visita de dois dias que lhe fizera um amigo paulista, onde, segundo ele, o que aconteceu foi um encontro de dois silêncios. “[...] — éramos dois silêncios que andavam um atrás do outro; dois silêncios que comiam, bebiam, fumavam e se entreolhavam”. (RODRIGUES, 2001, p. 185). Depois do ocorrido, o escritor não deixa por menos e lança uma de suas frases lapidares: “A pior forma de solidão é a companhia de um paulista”. (RODRIGUES, 2001, p. 185). A essa aridez paulista, Nelson contrapõe, mais uma vez, a sociabilidade carioca, um fato facilitado pelas estreitas ruas do centro da cidade, onde dois desconhecidos são capazes de travar uma amizade.

Já contei o caso do limpador de pára-lamas? Se não contei, vamos lá. Vinha eu pela rua Álvaro Alvim. Todos a conhecem. Estreitinha como a rua do Ouvidor, permite os diálogos de uma calçada para outra calçada. E, súbito, ouço aquele berro: - "Óbvio ululante!".

Só podia ser comigo. Viro-me e vejo, na outra calçada, o lavador de automóvel. Passando a estopa no pára-lama, fez-me a homenagem do seu berro: - e repetiu: -"Óbvio ululante!". Acenei-lhe com os dedos fraternalmente. E, então, ele perguntou, numa dúvida radiante: - "Está certa a pronúncia?". Respondi como o J. Silvestre: - "Certa! Absolutamente certa!". Contei o episódio para mostrar como as ruas, e em especial as estreitas, são amorosas. (RODRIGUES, 1995, p.181).

Segundo Facina (2004), nesse contraponto entre Rio e São Paulo, o que Nelson Rodrigues, vai valorizar na capital carioca é que a experiência urbana é capaz de preservar uma tradição que resiste à modernização, no que se refere a um processo de racionalização e especialização da vida social. Enquanto os paulistas trabalham muito e têm pouco tempo para as relações afetivas, os cariocas lidam de maneira diferente com o tempo e com as emoções. “Portanto, não é somente a modernização que não se completa por aqui. O nosso processo civilizador também não conseguiu domar o espontaneísmo que caracteriza as relações sociais”. (FACINA, 2004, p. 191).

Na apresentação que faz do Rio de Janeiro, segundo Facina (2004), Nelson traça uma “cartografia moral” da metrópole, invertendo o senso comum entre zona norte e zona sul, onde a primeira ainda seria o repositório dos valores tradicionais, não corrompidos pelo processo de modernidade. “Em oposição, está a Zona Sul e mesmo o Centro da cidade, lugares de individualização, do relativismo moral e de interações sociais mais contidas no que tange à emotividade”. (FACINA, 2004, p. 25). As crônicas rodriguianas vão compor um mosaico com peças, embora repetitivas, bastantes diversas, onde, como observa Facina (2004), não há um enquadramento estanque e é possível tanto uma mobilidade geográfica quanto social das personagens. Na verdade, um desfile de pessoas e situações da vida real e de personagens e situações ficcionais que o autor vai usar para expor uma sociedade na qual vivia, que via e que recriava cotidianamente. Essa sociedade é o que veremos a partir de agora, começando pelo primeiro eixo temático no qual posicionamos as crônicas rodriguianas que é o da política.

No documento lucienefatimatofoli (páginas 74-78)