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A CULTURA E O JORNALISMO

No documento lucienefatimatofoli (páginas 109-113)

3 AS CRÔNICAS RODRIGUIANAS DE MEMÓRIA E CONFISSÃO

3.7 A CULTURA E O JORNALISMO

Entre as obsessões temáticas que fazem parte das crônicas mêmore- confessionais de Nelson Rodrigues ainda estão a Cultura e o Jornalismo, ambos os campos em que o escritor está inserido e dos quais trataremos em detalhes no próximo capítulo. No setor cultural, as críticas do autor se dirigiam mais especificamente ao teatro. A grande objeção de Nelson era a politização da arte teatral e de seus agentes. “Hoje, a classe teatral é realmente uma classe. [...] os outros autores, e os atores, e as atrizes, e os contra-regras, e os maquinistas são A CLASSE”. (RODRIGUES, 2001, p. 143, grifo do autor).

Irônico e demolidor de seus adversários ideológicos, Nelson destila todo o seu horror contra o novo teatro engajado numa das crônicas em que relata uma entrevista imaginária com a atriz Cacilda Becker. Segundo ele, às dez para meia noite, no terreno baldio – cenário da entrevista – onde teria reunido “gafanhotos, sapos, corujas, caramujos e minhocas” (RODRIGUES, 2001, p. 159), anunciam a chegada da Cacilda: “[...] — “Está chegando a passeata”. Pulo: — “Que passeata? Eu não chamei passeata nenhuma. Vou entrevistar a Cacilda Becker. Só a Cacilda e mais ninguém”. (RODRIGUES, 2001, p. 159). Surpreso com o fato, o cronista relata que, na verdade, a entrevista teria se tornado uma manifestação:

[...] Ouvia-se o coro: — “Par-ti-ci-pa-ção! Par-ti-ci-pa-ção!”. O vozerio subia aos céus. Lá em cima, as estrelas começaram a atirar listas telefônicas e cinzeiros sobre os manifestantes. A quinze metros do local, o Vladimir Palmeira trepa na capota do próprio automóvel. Diz, forte: — “Classe teatral!”. Silêncio. E o Vladimir: — “Estamos cansados. Vamos sentar”. A docilidade foi total. A Classe sentou-se no asfalto, o Líder deixou passar cinco minutos; e comanda: — “Já descansamos. Vamos marchar!”. E todos marcharam os quinze metros que faltavam. Só então, dilacerado e confuso, dirijo-me à própria Cacilda: — “Escuta, houve um lamentável engano, um equívoco horrendo. Eu só convidei você, Cacilda!”. E a atriz: — “Eu não sou Cacilda. Sou a passeata!”. Lá estava Paulo Autran: — “Você, Paulo Autran, ao menos você, é Paulo Autran?”. Resposta: — “Sou uma assembléia!” (RODRIGUES, 2001, p. 159).

Na crônica, “O palavrão humilhado”, ironiza os jovens autores e diretores e reputa a esses intelectuais de esquerda a entronização do palavrão no teatro. O objetivo seria chocar a plateia para que não ficasse inerte diante da realidade, um plano que teria sido frustrado por meio do desgaste promovido pela própria estratégia desses artistas:

Imaginem que, no segundo ato, um dos personagens solta um palavrão inédito e que teria horrorizado as cinzas do Bocage, não o do soneto, mas o da anedota. Era o momento de a platéia arrancar os cabelos ou subir pelas paredes como uma lagartixa profissional. E, no entanto, vejam vocês: — os presentes, de pé, aplaudiam, aos vivas. Essa apoteose súbita e feroz frustrou, ofendeu e humilhou o pobre palavrão. (RODRIGUES, 2001, p. 30).

Nesse exagero rodriguiano para mostrar, na visão do cronista, que o teatro estaria a serviço da política de esquerda, Nelson embute outra crítica, à qual já nos referimos anteriormente: a de que, assim como em outros setores, os artistas também seriam uma massa despersonalizada, repetindo uma espécie de filosofia marxista.

Adriana Facina (2004, p. 215) lembra que, a partir dos anos 1950, houve no Brasil uma efervescência cultural em torno das discussões do panorama nacional, com denúncias sobre a miséria social e a representação da cultural popular. A pesquisadora considera que foi no teatro que essa tendência se mostrou mais aguda. São esses autores e grupos importantes, como o Teatro de Arena de São Paulo e o Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes, que tinham como referência comum o autor alemão Bertold Brecht. O dramaturgo defendia uma arte engajada e foi, sucessivamente, adaptado e encenado pelos grupos teatrais de esquerda na luta pela conscientização política e contra a ditadura militar.

Nelson elegeu o autor alemão como contraponto ao seu teatro, segundo Facina (2004). Em uma perspectiva mais ampla, o cronista via nos textos dele aquilo que criticava como um dos sintomas da modernidade: a frieza das relações interpessoais e uma racionalidade superficial que prevalecia aos sentimentos, o que, na visão de Nelson, ia de encontro a sua concepção para a arte dramatúrgica que seria a capacidade de o teatro mobilizar emocionalmente a plateia:

[...] Brecht inventou a "distância crítica'' entre o espectador e a peça. Era uma maneira de isolar a emoção. Não me parece que tenha sido bem- sucedido em tal experiência. O que se verifica, inversamente, é que ele faz toda sorte de concessões ao patético. Ao passo que eu, na minha infinita modéstia, queria anular qualquer distância. A platéia sofreria tanto quanto o personagem e como se fosse também personagem. A partir do momento em que a platéia deixa de existir como platéia - está realizado o mistério teatral. O "teatro desagradável" ofende e humilha e com o sofrimento está criada a relação mágica. Não há distância. O espectador subiu ao palco e não tem a noção da própria identidade. Está ali como o homem. E, depois, quando acaba tudo, e só então, é que se faz a "distância crítica". A grande vida da boa peça só começa quando baixa o pano. É o momento de fazer nossa meditação sobre o amor e sobre a morte. (RODRIGUES, 1995, p. 286).

Essa espécie de assepsia emocional teria tomado conta também do ofício diário de Nelson Rodrigues, o Jornalismo, e de seus agentes, a quem o cronista chamava ironicamente de “os idiotas da objetividade”. Desde sua experiência enquanto repórter de polícia, ainda na adolescência, Nelson Rodrigues compreendeu, como ninguém, como era possível ao Jornalismo afetar diretamente o cotidiano das pessoas, construindo redes de significação e estabilizando comportamentos e opiniões por meio das representações noticiosas que, consumidas como bens simbólicos, dotavam as pessoas de visões e versões da ordem social, desaguando num senso comum que era a base para a tomada de

iniciativa dos diversos agentes sociais: “A máxima potência dos nossos dias é a INFORMAÇÃO”. (RODRIGUES, 1995, p. 266, grifo do autor).

Homem de redação, Nelson vivenciou toda a mudança que o setor sofrera do final da primeira para a segunda metade do século XX e que incorporava diretamente as novidades engendradas pelo processo de modernidade, inclusive no que se refere à ordem econômica, uma vez que Jornalismo era também sinônimo de negócio e não apenas uma atividade diletante, como acontecia anteriormente, enquanto visava, sobretudo, ao prestígio e ao poder e relegava o lucro a um segundo plano. Em diversas crônicas expõe sua insatisfação com esse novo Jornalismo. Impregnado dos sintomas da modernidade, o ofício vai mostrar – ou como avaliava Nelson, deixar de mostrar - uma nova forma de desumanizar a pessoa.

No próximo capítulo, vamos tratar de situar, mais detidamente, Nelson Rodrigues no campo jornalístico e também no campo literário, a partir da conceituação teórica de Pierre Bourdieu. O entendimento do conceito de campo, assim como de outros relacionados a ele, será importante para demonstrarmos como Nelson Rodrigues investe sua obra literária de um valor simbólico a partir do Jornalismo e como, na nossa opinião, o autor consegue empreender essa dinâmica.

No documento lucienefatimatofoli (páginas 109-113)