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CONSIDERAÇÕES FINAIS

No documento lucienefatimatofoli (páginas 196-200)

Chegamos às considerações finais depois de um longo e complexo percurso, com várias vias de acesso, mas ainda temos a sensação de não ter finalizado a caminhada. Diante disso, optamos por considerações gerais, divididas em três questões pontuais, que serão sempre quase, mas nunca, finais, posto que não há uma garantia de término.

A primeira consideração, talvez a mais segura, é a de que Nelson Rodrigues impôs uma rota de confluência entre Jornalismo e Literatura em sua obra, alargando as fronteiras entre ambos e contaminando as narrativas, emprenhadas de realidade e ficção. Esmaeceu os contornos entre os campos, mas deixou rastros de um esgarçamento intencional, capaz de seduzir, iludir e confundir o leitor. Personalidades e personagens dividem fatos que estamparam manchetes de jornais e situações imaginárias saídas da pena inventiva do autor. Pululam fatos e ficções num movimento onde é impossível estabelecer, com precisão, o ponto de partida e o ponto de chegada.

Nelson Rodrigues jamais aceitou a demissão literária do Jornalismo, embora tenha teimado em viver cada dia de sua vida profissional numa redação. Quer enquanto tema, quer enquanto estratégia de codificação cotidiana dos acontecimentos de interesse público, os tentáculos do Jornalismo se fazem presentes na obra ficcional rodriguiana como poder modelador de percepção da realidade e como influência diluída na conformação estética exigida pela arte. Esse primeiro ponto de nossas considerações gerais nos remete diretamente ao gênero do corpus de análise recortado aqui, a crônica, e a três perguntas que ensejaram parte desta pesquisa. Num emaranhado do literário com as estruturas informativas da sociedade de massa, que conjugam realidade e ficção, as crônicas rodriguianas emergiriam para a memória coletiva como relatos de uma época? Até que ponto seriam críveis como índice de realidade? Até que ponto, emprenhadas de ficção?

Recuperando, inicialmente, a questão do gênero, sabemos que é preciso responder com cautela, mas os indícios são de que as crônicas de memória e confissão de Nelson Rodrigues não nos deixam outra resposta que não seja a afirmativa. Como bem disse Margarida de Souza Neves (1995), a crônica, assim como a história, é capaz de construir memória, ou seja, desenha identidades, sejam

elas de uma geração, de gênero, de grupos sociais ou de recortes espaciais bem definidos. Pela análise que empreendemos em torno às memórias e confissões rodriguianas, pudemos perceber que há um pacto do autor com a realidade dos fatos retratada pelo Jornalismo. Por mais que sua visão seja subjetiva e, portanto, parcial, não há como negar que suas crônicas são um universo proliferante de dados e fatos que ocuparam as manchetes dos jornais, imbuídos de seu objetivo (pelo menos teórico e publicitário) de retratar com imparcialidade a realidade circundante.

Na sua missão de cronista, Nelson tatuou em palavras parte da memória coletiva de um Brasil inundado pelos impactos da modernidade e pelas mudanças políticas de um dos períodos mais críticos da história nacional. Nessa interação entre o literário e as formas tradicionais de transmissão das notícias, até porque, originalmente, seus escritos circulavam pela mancha gráfica diária, Nelson, na nossa opinião, foi capaz de expressar a angústia de um século urgente, retaliado por crises e conflitos que saltaram das manchetes da imprensa para a razão estética do cronista. Assumindo uma postura considerada como – para não dizer condenada e, muitas vezes, por isto mesmo, menosprezada – reacionária, o artista não deixou de legar à posteridade, como acreditava que faria Zola por meio de seus romances, um Brasil bastante particular, mas capaz de espelhar certa parte de um senso comum típico da época.

Não é nossa intenção discutir aqui se Nelson Rodrigues era um aliado da ditadura, defensor dos militares, não é nossa função apontá-lo como aquele que afirmou um dia que toda mulher gosta de apanhar, ou, ainda, tê-lo como o que só reconhecia valor nos jovens quando esses ficavam velhos. Assim como a informação jornalística, ideal (para os incautos e neófitos) e cinicamente considerada como imparcial e objetiva, mas que só abrange uma determinada face da realidade, tomando a parte pelo todo e esvaziada da verdade substantiva, as crônicas rodriguianas fazem emergir uma parte dessa mesma realidade, que tem como atributo nesgas de verdade, já que não podemos nos esquecer de que a figura do artista representa e reapresenta aquilo que toma emprestado para se adornar, transformar e devolver ao público com suas marcas.

Dessa forma, as crônicas rodriguianas são, no nosso entender, críveis como índice de realidade quando utilizam, por exemplo, fatos do cotidiano que passaram também para a História. Não há como negar que o Brasil do final dos anos de 1960 e início de 1970, data das memórias e confissões analisadas aqui, se apresenta

dividido na Política, entre esquerda e direita, com visões bastante polarizadas e recrudescidas, não há como negar a introdução de novos costumes, como a dissolução do casamento e o uso da pílula anticoncepcional, condenada por muitos, ou a invenção dos biquínis, que expunham o corpo e tanto atormentavam o autor, embora nem chamassem a atenção “do neguinho do grapette”.

Para a argumentação que apresentamos anteriormente, convocamos o apoio de uma das maiores estudiosas do Jornalismo: Gaye Tuchman (1983), uma vez que identificamos na produção cronística de Nelson Rodrigues estratégias apontadas pela pesquisadora como garantidoras da objetividade no Jornalismo e, portanto, da verdade. Em seus textos, além de se basear em fatos veiculados pela imprensa, Nelson cumpre o quesito de apresentação de provas auxiliares quando agrega, por exemplo, o testemunho de personalidades de reconhecido capital simbólico como políticos, jornalistas e artistas. Ao inserir a opinião dessas “fontes”, é como se o autor garantisse à reapresentação que faz dos fatos uma legitimidade conferida pela autoridade alheia, em conexão com a realidade e não com a fantasia.

Foi por isso que, além da divisão das crônicas rodriguianas em eixos temáticos, traçamos um quadro (apêndice D) elencando as dezenas personalidades que Nelson convoca para os seus escritos. Apenas a título de curiosidade, uma dessas “fontes”, Alceu de Amoroso Lima, um dos mais assíduos frequentadores das crônicas rodruiguianas é citado pelo próprio autor como testemunha do próprio crime. No libelo acusatório, apresentado com o requinte que a Literatura lhe aprouvera, o cronista usa um artigo que Alceu assinara em defesa do uso de entorpecentes. Em vários trechos de “A boa-fé demoníaca”, Nelson Rodrigues cita literalmente as falas do articulista para contestá-lo, ou seja, o uso das aspas como prova de que aquilo a que se refere trata-se de um fato.72

Se as crônicas rodriguianas guardam índices flagrantes de coincidência com uma realidade imposta pela mídia, por outro lado, também são capazes de colocar em dúvida e resguardar com eficiência o lugar desses escritos na ficção. Num processo magistral, Nelson Rodrigues subverte exatamente as mesmas regras que usa para assentar sua produção num universo crível e transportá-la ao fictício. A objetividade e a imparcialidade impostas como preceitos fundamentais de garantia de um bom Jornalismo são escorraçadas num confronto frontal e impiedoso de

72 O artigo ao qual Nelson Rodrigues se refere está disponível no arquivo digitalizado do Jornal do

quem reconhece as regras e está pronto a subvertê-las. Prova disso é a criação de um dos personagens mais famosos da produção cronística: o copydesk ou o idiota da objetividade. No âmbito literário, onde não cabe o exame dos princípios basilares do Jornalismo, o autor lança a entrevista imaginária, onde, segundo ele, os entrevistados diriam a verdade que jamais falariam numa entrevista verdadeira.

Além disso, como bom estilista do excesso, embora mantenha seu avizinhamento com a linguagem de massa, em vez das frases áridas e assépticas próprias ao Jornalismo, faz jorrar os adjetivos, as frases feitas e as imagens que se tornam verdadeiros slogans, como “toda unanimidade é burra”, “o amigo é o grande acontecimento” e “o óbvio ululante”, capazes de ultrapassar o contexto de sua veiculação e romper o tempo efêmero da simples informação. A qualidade inventiva de sua linguagem faz com que sua obra, no translado da mancha gráfica diária para os livros, mantenha a força e alimente os imaginários.

Em um segundo momento dessas considerações gerais, e ainda tendo em vista a imbricação entre Literatura e Jornalismo nas crônicas rodriguianas de memória e confissão, o foco se volta para o deslizamento de capitais entre os campos, fundamental, como nos lembra Bourdieu (1996a) para a inserção e legitimação do agente no interior deles. Em que pese todo reconhecimento que conseguiu com seu revolucionário teatro, principalmente, a partir de Vestido de

noiva, foi por meio da imprensa, ou seja, do campo jornalístico, que lhe servia de

esteio financeiro e de vitrine, que Nelson conseguiu projetar sua imagem e solidificar sua produção literária.

Desde a sua trajetória pessoal, de onde traz capital político, cultural e social, até a profissional, onde alia a esses o capital simbólico, o cronista consegue marcar o seu lugar no campo literário como um herético, ou seja, aquele que se estabelece pela legitimação externa. Aqui, é necessário frisar, que não há qualquer juízo acerca do valor estético da obra rodriguiana, apenas o reconhecimento de uma estratégia de consagração. É pela audiência que alcança, pelas cifras que rende, pela retumbância de seus personagens que saltam das páginas de jornais para a convivência amigável com os leitores da vida real, pelo espaço que ocupa no imaginário coletivo, amplificado pela projeção que lhe traz o suporte onde suas produções são publicadas, que Nelson consegue ultrapassar o refratário ortodoxismo do campo literário, dominado pelos puristas, para se enfrestar, e também a sua obra, no eterno da Literatura.

Finalmente, reconhecendo que o sistema que rege a sociedade capitalista, principalmente a partir da modernidade opera mediante uma lógica atravessada pelos campos de poder, principalmente o econômico, é factível, a partir do nosso ponto de vista, identificar na produção literária da cronística rodriguiana, um processo organizado de fundamento comercial e racional, o mesmo utilizado pelas formas comunicacionais do Jornalismo na produção e difusão das notícias. Como intelectual-jornalista, Nelson é capaz de atuar a partir de um habitus incorporado na profissão e que o capacita a decidir sobre o que vai escrever em suas crônicas. Mesmo exercendo essa função de um autêntico gatekeeper, sua obra é atravessada pela ação coletiva, contaminada pelos constrangimentos organizacionais e que, em última instância, vai se reapresentar, ela mesma, como produtora de uma realidade outra, num movimento infinito que traga o leitor para a dinâmica da curva de Möbius, onde, ao mesmo tempo, estamos dentro e fora de uma fronteira sem limites.

No documento lucienefatimatofoli (páginas 196-200)