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CRÔNICA: TEMPO, FATO E FANTASIA

No documento lucienefatimatofoli (páginas 53-59)

3 AS CRÔNICAS RODRIGUIANAS DE MEMÓRIA E CONFISSÃO

3.1 CRÔNICA: TEMPO, FATO E FANTASIA

Inscrita tanto na Literatura como no Jornalismo opinativo, a crônica é considerada por Affonso Romano de Sant’Anna como gênero intermediário entre os dois campos. Numa análise de forma e conteúdo, e naquilo que concerne ao Jornalismo, Sant’Anna acentua que o gênero impregna alto grau de subjetividade, ao contrário dos textos informativos que, pelo menos teórica e tecnicamente, devem obedecer aos critérios de objetividade e imparcialidade. Possui uma capacidade intrínseca que faz transportar o leitor de um destino a outro de maneira inusitada: “O cronista vai ao Oriente pelo Ocidente e vice-versa.” Interessante observar que o escritor, em sua análise, credita à crônica a capacidade de gênero disseminador, cujo recorte ganha um significado especial: “O leitor se apodera do texto, guarda-o na carteira, na agenda, o reproduz e o repassa como um talismã criando uma espécie de corrente”. (SANT’ANNA, 1995, não paginado).

Uma corrente é, legítimo supor, com base no que descrevem Bender e Laurito (1993, p. 10-14), usada para tecer um nó górdio14 no fio tênue do cotidiano. A afirmação a priori é paradoxal, pois “corrente” e “tênue” não guardam entre si quaisquer propriedades em comum. Entretanto, Margarida de Souza Neves (1995) é capaz de apontar para uma questão fulcral que trata de diluir essa aparente polarização. A professora se remete ao aspecto especular crônica-história, com todas as nuances possíveis entre um e outro, sem perder de vista aquilo que os diferencia. Para isso, recorre a um dos grandes mestres do gênero, Machado de Assis, que avalia: “A história é uma castelã muito cheia de si e não me meto com ela. Mas a minha comadre crônica, isso é que é uma velha patusca, tanto fala como escreve, fareja todas as coisas miúdas e grandes, e põe tudo em pratos limpos”. (NEVES, 1995, p. 21). Fato é que ambos – historiador e cronista – fazem do tempo a sua matéria prima, referência presente na etimologia do termo definidor do gênero, que deriva de Cronos, a divindade grega que aparece como a personificação do tempo.

Saramago (1986, p. 195), ao se referir à hercúlea tarefa de colocar o tempo por escrito, prolonga os horizontes. Para ele, o cronista deve ser o: “[...] registrador do tempo, o seu particular e aquele em que mais alargadamente vive”. Esse registro a que se refere o escritor português está suscetível, como bem observa Neves (1995, p. 22-23), a uma construção arquitetada pela seleção e pela interpretação, ou seja, carregada de subjetividade sem, entretanto, se descolar, totalmente, do seu referencial de realidade. A autora alerta: “[...] ambas – história e crônica – constroem memória, o que equivale a reconhecer que desenham identidades, sejam elas as identidades de uma geração, sejam elas identidades de gênero, de grupos sociais ou recortes espaciais bem definidos”. (NEVES, 1995, p.26).

Não se pode esquecer, ainda, conforme ressalta Padilha (2008, p. 96), que embora a crônica convide o cotidiano a se pronunciar sem rebuscamentos, “não deixa de falar algo sobre quem a está escrevendo e sua interpretação acerca do que o inspira a escrever”. Na opinião do autor, o gênero foi bastante profícuo quando tratou da modernidade carioca no início do século uma vez que ainda não havia uma compreensão “daquela própria contemporaneidade, algo como um afastamento

entre a sociedade e os indivíduos em virtude da ascensão de uma nova lógica social ainda não captada em sua totalidade”. (PADILHA 2008, p. 96).

É justamente dessa relação da crônica com o tempo que falam Bender e Laurito (1993). Segundo as autoras, o gênero surge em Portugal, no século XV, quando Fernão Lopes é nomeado para escrever a história da corte portuguesa. Assim, as caronycas, como eram chamados os manuscritos, estavam intimamente ligadas ao registro de fatos históricos. Um exemplo é a Carta de Pero Vaz de Caminha sobre o descobrimento do Brasil.

Senhor:

Posto que o Capitão-mor desta vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a nova do achamento desta vossa terra nova, que ora nesta navegação se achou, não deixarei também de dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que — para o bem contar e falar — o saiba pior que todos fazer.

Tome Vossa Alteza, porém, minha ignorância por boa vontade, e creia bem por certo que, para aformosear nem afear, não porei aqui mais do que aquilo que vi e me pareceu. (CAMINHA, 1500, não paginado).

Entretanto, já no século XIX, na França, a crônica adquire outra feição com o advento da Literatura jornalística. Pinto (2006) chama a atenção para as mudanças ocorridas nessa fase de deslocamento, quando a crônica abandona a fidelidade a um tempo historicamente determinado e busca novas formas de expressão, enfocando as relações fragmentadas do mundo moderno e procurando entender e absorver a nova ordem imposta pelo processo de modernidade. Segundo a autora, a crônica reflete a fugacidade da vida nas metrópoles, torna-se uma expressão do cosmopolitismo nascedouro, além de ser um canal de questionamento da nova organização social: “[...] ficou evidente que o seu exercício não mais se podia ater a

contar os fatos de maneira ordenada e cronológica. Cabia, então, prestar

reverências à imaginação e contar com a ajuda dela, (re) criando versões e memórias as mais diversas”. (PINTO, 2006, p. 77, grifos da autora).

No Brasil, como relembra Costa (2005, p. 247), ainda na primeira metade do século XIX, o jornal Espelho Diamantino defendeu a ideia de que todo periódico deveria contar com um “observador de costumes, que registrasse o que visse e ouvisse em suas andanças pelas ruas da cidade”, o que ganhou adesão de vários escritores, entre os quais pode se destacar Joaquim Manuel de Macedo, José de Alencar e Machado de Assis, que afirmava: “Eu gosto de catar o mínimo e o

escondido. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu, com a curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto”. (1986, p. 772).

Já no século XX, conforme registra Costa (2005), a crônica ganharia novas feições e se tornaria um gênero específico, com uma linguagem mais leve, sem o compromisso da lógica argumentativa ou da crítica política. Aliás, Flora Süssekind (1987, p. 72) destaca que se considerarmos as três primeiras décadas dos anos de 1900, no Brasil, a crônica poderá ser apontada como um gênero compulsório à época em função da profissionalização do Jornalismo, da constituição de um público de massas e da incorporação de meios técnicos na produção literária.

De certa forma, Antonio Candido (1992) corrobora a observação anterior, já que entende que o gênero descendente dos folhetins estaria sempre vinculado aos meios de comunicação de massa, como os jornais, que eram suporte para sua veiculação. No entendimento do crítico literário, os folhetins poderiam ser de romance ou variedade. O primeiro ligado à ficção e o segundo aos registros e comentários da vida cotidiana da cidade, do país.

Há que se registrar que Nelson Rodrigues transitaria com desenvoltura entre os dois tipos de folhetins, pois além das crônicas que retratavam o ordinário do dia- a-dia, foi autor de romances, contos e novelas, cuja publicação teve origem em diversos jornais. Candido (1992) destaca que, com o passar do tempo, os antigos folhetins saem dos rodapés e ganham espaço nobre nos jornais com novas feições. A crônica utiliza uma linguagem mais informal e econômica, talvez numa tentativa de se adaptar ao tempo de um novo leitor, apressado, voltado para o consumo: “Ela não foi feita originariamente para o livro, mas para essa publicação efêmera que se compra num dia e no dia seguinte é usada para embrulhar um par de sapatos ou forrar o chão da cozinha”. (CANDIDO, 1992, p. 14). Apesar disso, reconhece o crítico, a proximidade que estabelece com o leitor faz da crônica uma inesperada candidata à perfeição, uma vez que transforma “a literatura em algo íntimo com relação à vida de cada um [...] nós verificamos meio espantados que sua durabilidade pode ser maior do que ela própria pensava”. (CANDIDO, 1992, p. 15).

Na análise de Drummond (1999), ainda que estivesse originariamente vinculada aos jornais, meio impresso de durabilidade determinada e efêmera, como as próprias notícias que veicula, a crônica vai funcionar justamente no sentido oposto, como uma espécie de pausa para o leitor fatigado com a frieza da objetividade jornalística, residindo na contramão dos preceitos e técnicas que se

exigem desse tipo de escrita. Drummond pondera que a notícia deve ser sempre objetiva e impessoal, enquanto a crônica é subjetiva e pessoal. Em relação à linguagem, no Jornalismo, ela deve ser precisa e enxuta. Já na crônica, é impressionista e lírica: “Se o jornalista deve ser metódico e claro, o cronista costuma escrever pelo método da conversa fiada, do assunto-puxa-assunto, estabelecendo uma atmosfera de intimidade com o leitor”. (DRUMMOND, 1999, p. 13).

Nessa intimidade capaz de alargar as possibilidades de leitura dos jornais, a partir do olhar subjetivo imposto pelo autor aos fatos com os quais trabalha, a crônica vai ser capaz também de inverter o próprio destino do meio que a veiculava originariamente, sendo eternizada em livros. Jorge Sá (1985, p. 11) considera que isso acontece porque a crônica: "é uma tenda de cigano enquanto consciência da nossa transitoriedade; no entanto é casa _ e bem sólida até _ quando reunida em livro”. Aí, assinala Sá, é possível estabelecer com maior nitidez “a busca da coerência no traçado da vida, a fim de torná-la mais gratificante e, somente assim, mais perene" (1985, p. 11). Segundo Sá, quando acontece essa transposição, o autor vai buscar seus melhores textos, dando-lhes uma sequência e temática que se apresentam, muitas vezes, fragmentadas e imperceptíveis, nas páginas de jornais. (1985, p. 19). Para o autor, é como se a própria vida estivesse sendo passada a limpo e, saltam para o livro, aquelas crônicas capazes de provocar a nossa reflexão. Apesar de apenas três dos sete livros de crônicas terem sido publicados quando Nelson ainda estava vivo, que são os que compõem o corpus de análise desta tese, acreditamos que os fatos que o escritor anotou, apesar de, muitas vezes, serem datados, têm exatamente o poder de levar a essa reflexão para a qual aponta Sá. No nosso entender, essa datação, nesse caso específico, está além do tempo cronológico e corresponde à definição de contemporâneo, conceito elaborado por Agamben (2009), como aquele que não coincide exatamente com o seu tempo, aquele que é capaz de lhe enxergar além das luzes, ou como no caso rodriguiano, de ver aquilo que era impossível a muitos outros:

Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente

contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que outros, de perceber e apreender o seu tempo. [...] Um homem inteligente pode odiar o seu tempo, mas sabe, em todo caso, que lhe pertence irrevogavelmente, sabe que não pode fugir ao seu tempo. A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com

o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias [...]. Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso não conseguem vê-la [...]. (AGAMBEN, 2009, p. 58- 59).

Nelson foi exemplar na tarefa de apreender seu tempo e dele tomar distância, sendo irremediavelmente contemporâneo. No gênero ambivalente da crônica, transmutou o cotidiano fugaz em eternidade, o fato em ficção, ocupando o “lugar fronteiriço” a que se refere Castello (2007, não paginado), onde o cronista é capaz de “promover simultaneamente dois caminhos: o que leva da literatura ao real e o que, em direção contrária, conduz do real à literatura”. “Gênero de mestiçagem”, como a ele se refere o crítico literário, numa alusão à própria constituição do povo brasileiro, Castello acredita que a crônica não se deixa aprisionar nem pela “verdade dos fatos, que baliza o jornalismo”, nem pelo “império da imaginação, que define a literatura”. (2007, não paginado).

Ao cronista cabe, segundo Castello (2007, não paginado), “desbravar novas conexões entre a literatura e a vida – sem que nem a literatura, nem a vida venham a ser traídos”. Castello (2007) afirma que o gênero faz do autor um agente duplo, ou seja, ao mesmo tempo em que relata os fatos que realmente viveu, é capaz de inscrever sua memória, fazer seus desabafos. Pode também mentir, falsificar, imaginar, acrescentar, censurar, distorcer. Não se impõe o apego à verdade e nem, por outro lado, à imaginação. A novidade está “no fato de que o cronista manipula as duas coisas ao mesmo tempo – e sem explicar ao leitor, jamais, em qual das duas posições se encontra”. (CASTELLO, 2007, não paginado).

No nosso entendimento, o ponto nevrálgico dessa tese é exatamente tentar estabelecer como Nelson Rodrigues consegue executar essa dinâmica a que chamamos de movimento da fita de Möbius, ou seja, embora esteja estabelecido que a crônica guarda uma imbricação entre Jornalismo e Literatura, entre dados de realidade e ficção, de que forma Nelson consegue fazer esse movimento? Entretanto, antes de chegarmos a esse ponto, julgamos necessária uma visão panorâmica dos escritos rodriguianos que compõem o corpus de análise desta tese, posicionando o leitor a partir daquilo que consideramos ser a calibragem15 que

15 A palavra aqui é usada no sentido metafórico, referindo-se à dinâmica de funcionamento de uma máquina fotográfica que captura imagens a partir da calibragem dos diversos elementos que a compõem – óptico, químico e mecânico –, resultando em algo reconhecível.

Nelson executa entre os elementos da realidade e sua própria subjetividade para inscrever e reinscrever um Brasil a partir de suas crônicas.

No documento lucienefatimatofoli (páginas 53-59)