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5 OS DONOS DA PALAVRA IMPRESSA: UMA PEQUENA SOCIOLOGIA INTELECTUAL

5.2 O clero: agentes da romanização cearense

A fundação dos primeiros gabinetes de leitura na zona norte, a partir de 1877, sinalizou a chegada de novos tempos, nos quais a relação entre o clero e o campo intelectual sofreria significativas transformações. Isso porque os gabinetes traziam em seu bojo uma proposta de leitura desvinculada do controle ideológico da Igreja. Com a predominância dos romances em seus acervos, propunham uma associação entre a edificação e o prazer do

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A Lucta, Sobral, 08 set. 1915, p. 1. 27

“Vc. ficou muito admirado porque citei Flammarion, entre os que abraçaram com enthusiasmo a doutrina de Darwin. Pareceu-lhe isso esplendido, magnifico e… digamos franco, supinamente tolo. Pois bem: antes de dar-lhe mais tarde uma resposta directa, responda-me categoricamente a esta pergunta: ‘nas suas obras Flammarion admitte a evolução segundo as theorias de Darwin, ou não? Ora, vc. diz: o homem é espirita, logo não é evolucionista. Ahi vae um argumento ‘ad hominem’: 1º) Segundo vc., Flammarion é um grande astronomo e todos concordam: já vê o amigo que alguém pode ser sabio astronomo e não admitir as theorias evolucionistas de Darwin. Mais um, então. Meu caro Edson, não confunda o monismo rigido de Haeckel com a theoria de Darwin, pois não se identificam. Si Flammarion é sinceramente espirita como diz vc., não poderá ser adepto do monismo Haeckeliano, pois que, segundo o monismo tudo o que existe é materia ou modalidade della. Mas, o homem pode ser espirita, como vc. diz, e ser também evolucionista moderado. Quem está confundindo as idéas?” Id. ibidem.

entretenimento.

Sem dúvida, a leitura proposta na cidade, nos gabinetes e nas demais bibliotecas públicas que surgiam tendia para o cientificismo, mostrando claramente sua capacidade e pretensão de dispensar a tutela da Igreja. Leitura e livro não mais estariam associados à prática devocional ou ao ensinamento religioso, mas surgiam como objeto de consumo que apelava para os sentidos do leitor. Sem dúvida, a difusão dos espaços laicos de leitura pública estavam relacionados à crise institucional que levaria à queda do Império, à abolição da escravatura e à separação entre Igreja e Estado.

Com o advento do regime republicano, a Igreja se viu ameaçada na sua posição de monopolizadora do poder ideológico. Seus ministros perceberam com preocupação o avanço da palavra laica dos bacharéis e jornalistas por meio da circulação dos jornais. Nesse sentido, o implemento dos transportes representado na construção da ferrovia trouxe consequências negativas. O aumento do número de viajantes, a sensação de força e rapidez proporcionada pelo contato sensorial com os motores a vapor e a iluminação noturna eram elementos materiais que favoreciam a mundanização, o usufruto das potencialidades do corpo e a satisfação dos apetites sensoriais, quebrando valores como o recato, o recolhimento e a submissão feminina, pregados pela Igreja.

A palavra impressa também foi atingida pelas transformações técnicas. A consolidação das tipografias enquanto ramo de negócio contribuiu para a intensificação da circulação do impresso. Ao lado das inovações no trato da imagem (fotografia e cinema) e do som (fonógrafos e gramofones), o livro impresso passou a ser tratado como mercadoria dentro de uma novidade definida por Flora Süssekind como a “indústria do reclame”28, onde a

publicidade impressa passou a exercer influência sobre a produção literária, movimento acompanhado e representado na literatura pela geração que viveu o período de transição entre a geração de 1870 e a Semana de Arte Moderna de 1922. Tal geração, ainda de acordo com a mesma autora, por sua própria contemporaneidade aos avanços técnicos referidos, não teria conseguido empreender uma reelaboração crítica dos mesmos, limitando-se a um “flirt rápido” com eles29.

O desenvolvimento da atividade comercial em Sobral e zona norte se deu, a partir da construção da EFS, por meio do fortalecimento dos canais de circulação de mercadorias, rebanhos e produtos extraídos da flora e fauna dos estados do Amazonas, Pará, Maranhão e Piauí, ao mesmo tempo em que a ligação comercial com Fortaleza mantinha-se frouxa. A

28 SÜSSEKIND, Flora. Cinematógrafo de letras: literatura, técnica e modernização no Brasil. São Paulo:

Companhia das Letras, 1987. p. 66.

autonomia econômica de uma extensa área criatória e extrativa — onde a vida urbana florescia de par com o comércio graças à ferrovia que ligava o sertão ao litoral e dali às praças mais desenvolvidas fora do território cearense — precisava encontrar uma contrapartida ou, do contrário, a zona norte isolar-se-ia cada vez mais do Ceará, ameaçando a estabilidade da ordem política.

Nesse ponto os interesses da Igreja Católica e do Estado se encontravam. À primeira interessava manter a zona norte sob o controle da Diocese do Ceará, criada em 1859 e tida como área de romanização por excelência; ao segundo, interessava a consolidação da cidade de Fortaleza como polo irradiador do poder político ao qual deveriam submeter-se as demais regiões do Ceará. Internamente, a Igreja brasileira temia as consequências de uma aproximação entre uma facção majoritária do clero dotada de formação liberal adquirida em Olinda e o Estado Liberal que se configurava com o novo pacto nacional comandado pelos grandes cafeicultores sulistas, ficando o Norte a sofrer as consequências da decadência da monocultura açucareira. Alijadas do poder central, as províncias do Norte, especialmente o Ceará, passaram a ser enxergadas como áreas propícias à implantação de um projeto de romanização que pudesse impedir o avanço do liberalismo dentro do próprio clero e, por tabela, no rebanho católico. Aí encontramos, talvez, uma explicação para a proliferação de padres cujas formações foram concluídas em Roma30.

A criação da Diocese de Sobral, em 1915, representou mais um importante passo no processo de romanização do Ceará31. Uma cidade que economicamente perigava escapar

da esfera de influência da capital do estado, arrastando consigo toda uma vasta porção de sertão criatório, temente à seca e habituada a negociar seus rebanhos com o Norte produtor de borracha, quando grandes fortunas individuais se construíam às custas da exploração de seringais no Amazonas e Acre, onde sobralenses abastados haviam se instalado, adquirido propriedades e alcançado posições de poder32.

Era preciso evitar o surgimento de um novo foco de catolicismo popular, à semelhança de Juazeiro. Para tanto, o clero sobralense uniu-se em torno do projeto de manutenção de toda aquela vasta jurisdição eclesial sob o controle da Diocese de Fortaleza e

30 PINHEIRO, Francisco José. O processo de romanização do Ceará. In: SOUZA, Simone de. História do Ceará. 2 ed. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1994. p. 200.

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João Pompeu de Souza Brasil atribuiu ao isolamento espacial e à ação polarizadora da Igreja Católica o “excepcional” desenvolvimento de Sobral desde o período colonial. BRASIL, João Pompeu de Souza. Sobral: tentativa de interpretação histórica de sua ação polarizadora sobre a região. Rev. C. Sociais, vol. 3, n. 2, p. 119.

32 Um exemplo foi a firma J. Lourenço, Farias & Cia, sociedade formada em Sobral por Alexandre Soares e

“alguns capitalistas” do Ipu, cujo ramo de atividade seria a compra e venda de gado no Ceará, Pará e Amazonas. Entre os “capitalistas” estava aquele que era considerado o homem mais rico de Ipu no início do século passado: o deputado José Lourenço de Araújo. O Rebate, Sobral, 19 mar. 1910, p. 2.

estritamente fiel aos preceitos da Igreja romana. Por contraditório e paradoxal que possa parecer, em Sobral o peso social do clero sempre foi considerável ao ponto de, na segunda metade do século XIX, um comerciante liberal, militante republicano e abolicionista como Manoel Arthur da Frota ter como um de seus maiores anelos o projeto de ver seu filho José ordenado presbítero em Roma e feito bispo da brilhante diocese que Sobral haveria de sediar33.

D. José Tupinambá da Frota, em sintonia com o projeto de romanização da Igreja no Brasil, tratou de pô-lo em prática em Sobral. Reuniu e fortaleceu o clero enquanto grupo intelectual com uma função muito bem delineada: trabalhar junto às consciências no sentido de manter os fiéis sob o controle ideológico da Igreja. Para tanto, o uso da retórica cultivada nos seminários e exercitada nos púlpitos deveria vir acompanhado de incursões cada vez mais profundas pelo mundo da palavra impressa, seara onde o pensamento laico dos bacharéis adiantava-se.

Emblemático nesse sentido foi o ano de 1918, quando o clero sobralense se viu na necessidade de demarcar seu próprio espaço no domínio da palavra impressa. Para tanto, D. José fundou o jornal Correio da Semana, destinado a servir de tribuna ao pensamento clerical, romanizador e reacionário, travando luta aberta contra a mundanização dos costumes e o anticlericalismo. A despeito da grandiloquência com que a memória oficial de Sobral celebra os feitos de D. José Tupinambá da Frota, especialmente as obras assistencialistas como a Santa Casa de Misericórdia e o Asilo da Mendicidade, a trajetória do prelado não decorreu livre de percalços, oposições e frustrações.

D. José buscou encarnar uma espécie de protótipo do clérigo culto. Formal, exigia dos fiéis a mais completa reverência para com sua pessoa34. Erudito, buscou escrever a

história de Sobral realçando o papel da Igreja, construindo a imagem de uma cidade religiosa, inclusive a figura de seu pai, o abolicionista republicano liberal Manoel Arthur da Frota, por ele apresentado como um homem dinâmico, corajoso, mas também temente a Deus e intransigente no que se refere à observância dos preceitos católicos.

Nesse sentido, o livro História de Sobral, cuja primeira edição foi publicada em 1952, ao mesmo tempo em que constitui uma obra historiográfica de fôlego, pelo volume de documentos compulsados e transcritos, também pode ser qualificado como um grande

33 José Tupinambá da Frota fez estudos preparatórios em Sobral, de onde passou ao Seminário da Bahia. Em

abril de 1899, foi para Roma, onde estudou na Pontifícia Universidade Gregoriana, e ali foi ordenado presbítero em 1905. Foi nomeado vigário de Sobral em 1908 e ordenado bispo em 1916, mesmo ano em que foi nomeado para a recém-criada diocese de Sobral. FROTA, José Tupinambá da (bispo). História de Sobral. 2 ed. Fortaleza: Henriqueta Galeno, 1974. p. 159.

trabalho de memória. Escrito numa perspectiva positivista, na qual o documento escrito era tomado como garantia de verdade35, a obra cumpre o papel de sacramentar uma trajetória de

vida voltada para o esforço de projeção de uma imagem de si sobre a cidade que buscou edificar social, espiritual e materialmente.

Por outro lado, o monumental livro escrito pelo bispo veio consolidar a tradicional presença do clero nos domínios da historiografia sobralense. Tendo na Cúria Diocesana o principal arquivo local, com importante repertório de documentos eclesiásticos relativos à fundação do antigo Curato do Acaraú, livros de registros de batismos, casamentos e óbitos, homens como o Padre Fortunato Alves Linhares36, Monsenhor Vicente Martins da Costa37 e D.

José Tupinambá da Frota puderam robustecer suas pesquisas históricas voltadas para a busca das origens da cidade, numa perspectiva próxima àquela dos historiadores do Instituto do Ceará. Ao longo do século XX, tal obra encontrou continuadores nos padres João Mendes Lira38 e Francisco Sadoc de Araújo39. Percebe-se, desta maneira, o empenho do clero

35 LE GOFF, Jacques. Documento/monumento. In: História e memória. 5 ed. Campinas/SP: Editora da

UNICAMP, 2003. p. 526.

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Publicou os seguintes trabalhos na Revista do Instituto do Ceará: Notas históricas da cidade de Sobral.

Revista do Instituto do Ceará, Fortaleza, tomo XXXVI, p. 254-293, 1922; Apontamentos para a história e

corografia do município de Sobral. Revista do Instituto do Ceará, Fortaleza, tomo LV, p. 234-251, 1941. Seu livro Notas históricas da cidade de Sobral foi publicado em 1945.

37 A produção historiográfica de Padre Vicente Martins foi publicada quase toda sob a forma de artigos na Revista do Instituto do Ceará. São os seguintes: Noticia Histórico-Chorographica da Comarca de Granja. Revista do Instituto do Ceará, Fortaleza, tomo XXV, 1911, p. 171-200; Noticia Histórico-Chorographica da

Comarca de Granja. Revista do Instituto do Ceará, Fortaleza, tomo XXVI, 1912, p. 317-360; Noticia Histórico-Chorographica da Comarca de Granja. Revista do Instituto do Ceará, Fortaleza, tomo XXIX, 1915, p. 3-57; Pessoa Anta (biografia). Revista do Instituto do Ceará, Fortaleza, tomo, XXXI, 1917, p. 280- 335; Notas biographicas do Clero Sobralense. Revista do Instituto do Ceará, Fortaleza, tomo XXXIV, 1920, p. 146-198; Don José Tupynambá, 1º bispo de Sobral (biografia). Revista do Instituto do Ceará, Fortaleza, tomo XL, 1926, p. 95-132; Notas biográficas do Clero Sobralense (2ª parte). Revista do Instituto do Ceará, Fortaleza, tomo LIV, 1940, p. 196-232; Notas biográficas do Clero Sobralense (2ª parte e conclusão).

Revista do Instituto do Ceará, Fortaleza, tomo LV, 1941, p. 141-158. Ainda em 1941, foi publicado seu livro Sobral, homens e vultos.

38 Padre João Mendes Lira estudou na Escola dos Carmelitas Descalços (Roma) e nos Seminários Maiores de

Fortaleza e João Pessoa (PB). Foi ordenado padre em Sobral em 1951 e foi nomeado pároco da Paróquia de Nossa Senhora da Saúde de Frecheirinha (CE). Por problemas de saúde, pediu para residir no Palácio Episcopal, onde acabou indispondo-se com o padre José Palhano, protegido do bispo D. José. Lecionou em várias escolas, no Seminário São José e na Faculdade de Filosofia D. José, depois na Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA). Faleceu em 2005. Publicou os livros: De Caiçara a Sobral (1971), Nossa história (1972), Sobral na história do Ceará e a personalidade de D. José (1976), A vida e a obra de Domingos

Olímpio (1977), A escravatura e a abolição dos escravos em Sobral (1981) e outros. Após seu falecimento,

seu arquivo pessoal foi dividido em duas partes, sendo uma destinada ao Museu Diocesano D. José e outra ao Núcleo de Práticas e Documentação Histórica (NEDHIS). Dados obtidos em: portal.ceara.pro.br; SILVA, Ana Carolina Rodrigues da. Os sentidos do passado ou o passado sentido: mecanismos da memória nos escritos de Padre Mendes Lira. 2015, 217f. Dissertação (Mestrado em História Social). Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades, Programa de Pós-Graduação em História Social, Fortaleza, 2015.

39 Nasceu em Sobral no ano de 1931; ordenou-se em Roma (1956) e foi diretor da Faculdade de Filosofia D.

José e da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA). Publicou os livros: Cronologia Sobralense (5 volumes, 1974-1990), História da Cultura Sobralense (1978), Ceará: homens e livros (1981), Estudos

ibiapabanos (1979), Dicionário biográfico de sacerdotes sobralenses (1985), História religiosa da Meruoca

(1979), História religiosa da Ibiapina (1983), História religiosa de Guaraciaba do Norte (1988), Cordeiro

sobralense no sentido de marcar sua posição não apenas na imprensa, mas no interior das associações literárias, nas instituições de ensino e no campo dos estudos históricos.

O caminho trilhado pelos clérigos com destino ao reconhecimento como historiadores foi o mesmo seguido pelo intelectuais leigos da Academia Sobralense de Estudos de Letras — fundada em 1922 — e definido por Francisco Denis Melo na seguinte colocação: “Todos esses intelectuais se fizeram “historiadores” labutando em salas de aula do Seminário São José ou em salas de aulas das escolas laicas existentes na cidade, ou ainda no afã dos arquivos guardados na Cúria Diocesana, pois nenhum deles tinha formação específica”40.

Percebe-se que D. José Tupinambá da Frota pretendeu projetar sua hegemonia sobre três campos: o religioso (onde não encontrou rivais), o político (onde teve como rival o Juiz Dr. José Saboya, melhor aparelhado para tal conquista) e o intelectual (onde disputou com jornalistas liberais e com seu comandado, o padre professor, jornalista e historiador Fortunato Alves Linhares).

A condução da diocese, a vigilância sobre o comportamento dos fiéis, a intransigente fidelidade à hierarquia eclesiástica foram armas usadas pelo bispo no sentido de garantir que seu rebanho não se afastasse do seio da Madre Igreja, nem se rendesse ao fanatismo ou se extraviasse no seguimento de falsos profetas e entes messiânicos que percorriam o sertão desviando os católicos da sã doutrina. Garantir a submissão das consciências em uma florescente cidade sertaneja, rodeada de centros menores e mais pobres, foi a missão de D. José, tarefa repleta de implicações políticas.

A hegemonia de Fortaleza enquanto cabeça eclesiástica do estado do Ceará dependia da consolidação da figura de seu arcebispo como supremo pastor do rebanho, mas tal pretensão tinha de lidar com situações adversas, como aquela verificada em Juazeiro, onde um padre suspenso de ordens, suposto autor de um milagre eucarístico, podia, a um gesto, pôr em ordem de batalha um exército inumerável de sertanejos devotos e dominados pelo sentimento religioso forjado num imenso caldeirão de crendices, superstições, misticismo pagão e cristão, onde escapulários eram usados como talismãs — tudo resultando em crenças muito mais próximas do paganismo medieval do que do catolicismo ultramontano.

A sedição de Juazeiro (1914), movimento responsável pela deposição do presidente militar salvacionista Franco Rabelo, comandada pelo deputado e médico baiano

Ibiapina, peregrino da caridade (1996) e Origens da cultura sobralense (2005).

40 MELO, Francisco Denis. Os intelectuais da Academia Sobralense de Estudos e Letras – ASEL – e a invenção da cidade letrada (1943-1973). Recife, 432f. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal

de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História, Recife, 2013, p. 35.

Floro Bartolomeu, hábil manipulador do enorme poder de influência de Padre Cícero sobre os romeiros, sinalizara que a estrutura político-administrativa cearense sediada em Fortaleza não estaria garantida enquanto não houvesse uma contrapartida regional ao fanatismo religioso do Cariri. Nesse sentido, a Diocese de Fortaleza precisou agir para garantir que novas regiões do estado não viessem a se desgarrar do catolicismo romano oficial. O fortalecimento da presença franciscana e dominicana no sertão central, em Canindé e Quixadá, dos jesuítas no maciço do Baturité e a criação das dioceses de Sobral e Crato visavam à formação de um cinturão romanizador que abarcasse o território cearense41.

A assertiva acima pode ser confirmada quando observamos a orientação emprestada por D. José Tupinambá da Frota à sua diocese. O zelo rigoroso na observância dos preceitos morais cristãos visava manter a cidade de Sobral sob controle, assegurando o predomínio da religiosidade de uma população que se diversificava, numa cidade cuja atividade comercial crescia rapidamente às custas do dinheiro vindo das áreas amazônicas e onde o mundanismo pedia espaço de forma cada vez mais contundente por meio dos bailes de carnaval, das danças “modernas”, do acesso às revistas de moda — que traziam as mais recentes e ousadas novidades no vestuário feminino —, da intensa circulação de caixeiros- viajantes vindos do Recife e de Fortaleza ansiosos por conquistar as moças casadeiras da elite local42.

Apesar de algumas divergências internas, o clero sobralense passou a agir em bloco e a situar-se politicamente de maneira bem definida a partir da segunda metade da década de 1910. A criação do jornal Correio da Semana representa a demarcação de um espaço próprio para os padres dentro do já ampliado campo intelectual daquele momento.

De um lado estava o polo conservador, representado pelo jornal A Ordem, fundado em 1916, sucedendo o Pátria na defesa do ideário do PRC em Sobral. Dirigido por Plínio Pompeu, recebia colaborações diversas43. Desviava-se, em certa medida, do reacionarismo de

seu antecessor devido à nova configuração do campo político com a dissolução da dicotomia marretas/rabelistas. Tinha como rivais os jornais O Rebate, de Vicente Loyola, e A Lucta, de

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Sobre a estruturação da Igreja Católica ao longo do território cearense e entendendo-a como portadora de um projeto de urbanização ou como um importante agente na configuração das cidades enquanto espaços do sagrado, de experiências coletivas ligadas à religiosidade, ver SILVA JUNIOR, Agenor Soares e. Cidades

sagradas: da “Roma cearense” à “Jerusalém sertaneja”: A Igreja Católica e o desenvolvimento urbano no

Ceará (1870-1920) Sobral e Juazeiro do Norte. Fortaleza; Sobral: Edições ECOA, 2015.

42 Em 1911, o jornal Pátria publicou um protesto assinado por alguns pais de família sobralenses contra o

comportamento de um grupo de caixeiros que ousavam dançar nas calçadas ao som da música que se fazia na rua e saíam ao passeio público trajando pijamas. Acusados de dandismo social, tais sujeitos deveriam ser objeto de vigilância da parte dos pais, ao contrário da permissividade que se observava, permitindo-se sua acolhida nos salões e o contato íntimo com as “patrícias”. Pátria, Sobral, 10 mai. 1911, p. 2.

Deolindo Barreto Lima, estes últimos de orientação política democrata. As polêmicas travadas entre conservadores e democratas demonstram o quanto a imprensa reproduzia as polarizações políticas.

Nesse cenário, o clero via-se destituído de um espaço próprio no âmbito da palavra impressa. Ao bispo — intelectual refinado e erudito — não escapou a gravidade da situação. A palavra pastoral não poderia restringir-se aos púlpitos, espaço de emissão de alcance reduzido quando comparado ao impresso. O Correio da Semana, órgão católico, foi