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2 GABINETES DE LEITURA NA ZONA NORTE DO CEARÁ: UM PROJETO DE INSTRUÇÃO POPULAR

2.2 Anos 1910: novos gabinetes e escolas noturnas, maior difusão do livro e da instrução

A segunda década do século XX marcou a volta dos gabinetes de leitura. A inauguração da estação de Crateús, em 12 de dezembro de 191254, indica a expansão da zona

sob influência da cidade de Sobral. A partir daquela data, ligado pelo transporte ferroviário ao vale do Acaraú, o Sertão dos Inhamuns passava a se incorporar à zona norte do Ceará. Uma cultura do impresso ganhava corpo nas cidades e vilas, e o processo de construção de um campo intelectual podia ser percebido mais nitidamente em Sobral, de onde emanavam reflexos para os demais núcleos urbanos da região.

Nos anos imediatamente anteriores ao início da Primeira Guerra Mundial, a zona norte contou com uma forte expansão de sua atividade comercial, especialmente no setor de importação e exportação. O movimento dos navios, conjugado ao dos trens, beneficiou os produtores locais, e atividades como a agricultura, a pecuária e o extrativismo também cresceram, até sofrerem o abalo provocado pelo início do conflito na Europa.

No que tange à política, o momento era de tensão, com a crise das oligarquias e o avanço do salvacionismo, embora numa versão ressignificada pelos grupos locais. Os intelectuais apresentavam sua interpretação daquele quadro nas páginas dos jornais, não escapando a alguns o estado de esquecimento a que era relegado o povo, categoria que em seu discurso ganhava sentido quando relacionada ao contingente mais pobre da população, sobre quem recaia o flagelo do analfabetismo. Tal discurso, veiculado pelos jornais, serviu de esteio à iniciativa de retomada do projeto dos gabinetes de leitura, cujas últimas tentativas haviam capitulado antes da virada do século. Dois públicos-alvo estavam claramente definidos: as crianças pobres e os empregados do comércio. A insuficiência da instrução pública ainda se fazia sentir, o que garantia largo espaço de atuação aos novos gabinetes.

O primeiro dessa nova geração foi criado em Santana55 no dia 27 de julho de

191156, tendo à frente o comerciante Aprígio Soares e o advogado José Mendes Pereira de

Vasconcelos. Os primeiros meses após a fundação eram cruciais para a consolidação do novo gabinete, pois era momento de buscar doações em dinheiro ou livros, e era nessa fase que vinham as doações mais vultosas e as adesões mais importantes, ao mesmo tempo em que se buscava o aparelhamento da escola noturna.

Em setembro de 1911, o Gabinete de Leitura Santanense recebeu uma doação no valor de Rs 200$000 (duzentos mil réis), ofertada por Raimundo Magalhães, santanense que havia feito fortuna como comerciante em Santos (SP). Seu exemplo foi seguido por José Ignacio da Frota, proprietário de seringais no Amazonas, que também doou Rs 200$00057.

Em novembro do mesmo ano, o Gabinete recebeu do sócio José Mendes a doação de uma quota de ações da Empresa Tipográfica do Jornal Município de Santana, colocando-o na condição de sócio majoritário58. Dessa forma, o Gabinete adquiriu uma tipografia.

Acrescente-se uma nova doação substancial: um prédio ofertado por José Mendes, Epaminondas Frota e Manoel Lúcio Carneiro da Frota, onde deveria ser instalado o equipamento gráfico. Naquele momento, o Gabinete já mantinha uma aula noturna e outra de música, dirigida por Manoel Trajano Barbosa, maestro diretor da Euterpe Santanense59.

Com a aula de música, o Gabinete ofertava ao público-alvo de seu projeto a possibilidade de aquisição de um sinal de distinção, pois a participação em uma das pequenas orquestras espalhadas pelas cidades interioranas representava uma colocação social, um distintivo e a garantia de ingresso em círculos restritos, como assinalou Ana Luiza Martins:

De fato, as corporações musicais figuram como uma das formas de vida associativa percebidas com mais frequência fora dos quadros da Igreja. Nesse grupo de exigências restritas, ler a partitura musical ou tocar algum instrumento eram requisitos mínimos para figurar naquelas agremiações ou para representar outras entidades associativas. [...]. Naquela sociedade com raros canais de representação, tocar na banda era importante. Usando farda engalanada e desfilando em ocasiões solenes, seus membros colocavam-se socialmente, dotados de sinal de distinção. Identificavam-se com grupos sociais e políticos, assumindo posições e partidos, colocando-se civicamente na vida da cidade.60

Demonstrando capacidade de articulação, Aprígio Soares conseguiu autorização do bispo do Ceará para instalar o Gabinete no prédio da Casa de Caridade61. A proximidade

55 Atual cidade de Santana do Acaraú, localizada a 35 km de Sobral. 56

O Rebate, Sobral, 26 ago. 1911, p. 2. 57

O Rebate, 16 set. 1911, p. 1.

58 O Rebate, Sobral, 11 nov. 1911, p. 2. 59

O Rebate, 11 nov. 1911, p. 2. 60

MARTINS, Ana Luiza. Op. cit., p. 167.

com a Igreja pode ser notada ainda com a visita do bispo-coadjutor, D. Manoel da Silva Gomes, ao Gabinete em 1912, quando o prelado sugeriu a proibição da entrada de livros ofensivos à moral cristã na biblioteca da instituição, reforçando o combate à má leitura62.

Concedendo títulos de sócio honorário a diversos intelectuais locais, o Gabinete buscava fortalecer-se enquanto instância de consagração, condição necessária para manter tais homens em seu interior. O ritual de instalação dos retratos dos homenageados no salão de honra atesta o aspecto formal da instituição, atenta ao anseio daquela pequena elite por ritos e signos de distinção.

Outra forma de homenagem consistia no convite a um intelectual para proferir uma conferência no Gabinete. O bacharel em Letras J. Israel Cysne, em fevereiro de 1913, atendeu a um desses convites e proferiu uma palestra sobre um livro de Castro Alves. Pouco depois, partiu para o Rio de Janeiro, onde vivia63. Percebemos aí o Gabinete como espaço da

palavra erudita, da conferência literária e científica a ser proferida por vozes reconhecidamente autorizadas.

Em fevereiro de 1912, Raimundo Magalhães ofereceu ao Gabinete de Leitura Santanense livros de “história do Brazil, gramática portuguesa e francesa, dicionários, compêndios de aritmética, geometria e geografia, livros de 1ª e 2ª leitura, traslados e mapas geográficos”64. Seguindo a práxis comum aos gabinetes, constituía-se a biblioteca por meio de

doações. Obviamente, a imprensa não registrou todas elas, selecionando aquelas cujos doadores gozavam de maior prestígio ou que envolveram quantidades maiores de livros.

Ainda pensando nos acervos, percebemos a sua composição como resultado de operações de seleção por parte dos doadores. Quais os critérios empregados na escolha dos livros a serem doados a um gabinete? Certamente, a decisão de doar era resultado da concordância com o programa da instituição, podendo, em alguns casos, somar-se ao desejo de ostentação ou anseio pelos títulos honoríficos por ela distribuídos.

Seguindo a tendência de retomada, o professor Piragibe Newton Craveiro formulou o projeto de um novo Gabinete de Leitura em Sobral e o apresentou ao público nas colunas do jornal O Rebate no início de 1913. Selecionamos o trecho abaixo:

O Gabinete manterá uma bibliotheca e uma escola nocturna, abrangendo o ensino primario e secundario, o que muito aproveitará, principalmente aos empregados do commercio, uma vez que, conforme sabemos, os Snrs. negociantes darão aos seus empregados a necessaria liberdade, para que estes, auxiliados egualmente por seus

62

O Rebate, Sobral, 03 ago. 1912, p. 2. 63

O Rebate, Sobral, 15 fev. 1913, p. 1. 64 O Rebate, Sobral, 10 fev. 1912, p. 3.

paes, possam convenientemente assentar as bases do ensino de que são carecedores.65

Reparemos no público-alvo distinto daquele dos demais gabinetes estudados até aqui. Não se trata de alfabetizar, mas de complementar a instrução de crianças já alfabetizadas que, para trabalhar no comércio, tiveram de interromper seus estudos. Por isso a pretensão de ofertar os cursos primário e secundário66. No caso, a dimensão pedagógica desse gabinete não

pretendia voltar-se para o ensino das primeiras letras. Seu público foi formado por crianças já inseridas no trabalho comercial. Tal escolha teve suas próprias complicações.

As longas jornadas de trabalho a que estavam submetidos os empregados do comércio tornavam a atividade incompatível até mesmo com as aulas noturnas67. Newton

Craveiro esperava dos comerciantes a colaboração no sentido de anteciparem o encerramento do turno de seus empregados. Aos pais cabia o interesse em matricular os filhos.

Os pilares da proposta de ensino aparecem na transcrição a seguir:

Aos snrs. Newton Craveiro e Craveiro Filho, auxiliados por distintos sobralenses, que pensam justamente que em matéria de instrucção nenhuma despesa é sacrificio, devemos a creação d’essa casa de instrucção, onde serão envidados todos os esforços, para que sejam adoptados os melhores methodos de ensino, cuja diffusão prepare o alumno para o exercício de uteis profissões, a par da religião da moralidade e do dever.68

“Religião”, “moralidade” e “dever” aparecem como complementos a uma proposta cujo objetivo principal consistia na preparação profissional, revelando o avanço da instrução rumo ao laicismo. O ensino voltava-se não mais para a formação do bom cristão, mas do cidadão e do trabalhador apto ao cumprimento de seus deveres. Nesse sentido, a religiosidade desempenharia papel secundário, colaborando para a incorporação de uma ética cristã capaz de reforçar o sentimento do dever.

A proposta do gabinete refletia a situação vivida pela educação a nível nacional,

65

O Rebate, Sobral, 01 mar. 1913, p. 1. 66

O ensino secundário público só era ofertado no Liceu do Ceará. No interior, apenas os estabelecimentos particulares ofertavam este nível. Em Sobral, o secundário podia ser feito no Externato José Júlio, fundado em 1907 pelo padre Manuel de França Melo e o professor Vicente Rodrigues dos Santos (O Rebate, Sobral, 23 nov. 1907, p. 4); Externato Luiz Felipe, dirigido pelo professor Luiz Felipe Silva (O Rebate, Sobral, 18 nov. 1911, p. 5); Externato d’Assunção, dirigido por Maria Jesuína Rodrigues, Regina Rodrigues e Irene Rodrigues, recebendo apenas meninas (O Rebate, Sobral, 18 jan. 1908, p. 2); e, a partir de 1915, no Externato Sobralense, dirigido por João Barbosa de Paula Pessoa (O Rebate, Sobral, 09 jan. 1915, p. 3). Em Granja, o mesmo nível de ensino era ofertado no Instituto Lívio Barreto, fundado pelo advogado Dr. Francisco de Lemos Duarte e contando com os professores Padre Vicente Martins e Antônio Barreto Aires (O Rebate, Sobral, 31 jul. 1909, p. 3).

67 Rodolpho Theóphilo, em suas memórias, assinalou as dificuldades de sua juventude como caixeiro quando

teve de estudar no período noturno, iniciativa condenada por seus patrões. THEÓPHILO, Rodolpho. O

caixeiro: reminiscências. ed. fac-similar. Fortaleza: Museu do Ceará; Secretaria da Cultura, 2002. p. 24-25. 68 Id. ibidem.

ou seja, uma oscilação entre o humanismo clássico e o positivismo69. Newton Craveiro, jovem

professor e conhecedor do pensamento pedagógico de seu tempo, mostrava preferência pelo ensino prático, tanto que se tornou um divulgador do método das “lições de coisas” no Ceará.

Sobre os custos e o currículo, afirmou:

Recommendamos aos Snrs. paes de família a leitura dos Estatutos e Regulamento interno do ‘Gabinete,’ por onde se vê que, sem grandes despesas, a mocidade sobralense e os empregados do commercio participarão do ensino primario e secundario de portuguez, francez, arithmetica, geographia e escripturação mercantil e d’outras materias que o alumno desejar apprender, para o ensino das quaes serão contractados professores competentes, conforme auxílio que obtiver esse futuroso estabelecimento de instrucção.70

Os estatutos impressos funcionavam como material de propaganda. Sua leitura era recomendada aos interessados por ali estarem disponíveis as informações a respeito do funcionamento da biblioteca e das aulas. A inclusão da escrituração mercantil entre as disciplinas justificava-se pelo fato de tratar-se de uma iniciativa voltada para os empregados do comércio. Abrir perspectivas de avanço na carreira comercial fornecendo aos jovens a qualificação técnica era a ideia. Visto como consumidor de energias e destruidor das expectativas de potenciais talentos para as letras, o comércio era tido como lugar de muito trabalho e nenhum crescimento intelectual, daí a intenção de instruir melhor as crianças que enveredavam por este caminho profissional71.

O apelo aos comerciantes foi expresso na seguinte nota:

Apellamos para os sentimentos altruisticos dos Snrs. Commerciantes, no sentido de fecharem as suas casas commerciaes, ás 6 horas da tarde, para que os seus respectivos empregados possam frequentar as aulas do ‘Gabinete’. Assim o fazemos, porque julgamos que os Snrs. Commerciantes deverão livremente se interessar pela instrucção que é o alimento do espírito, prestando ao mesmo tempo o apoio de que carece esta casa de ensino.72

A admissão dos alunos na aula noturna do Gabinete de Leitura Sobralense seria feita mediante pagamento de taxa de matrícula: Rs 10$000 (dez mil réis) para o ensino primário e Rs 6$000 (seis mil réis) para o secundário, valor que a aproximava dos demais

69 RIBEIRO, Maria Luisa dos Santos. História da educação brasileira: a organização escolar. 11 ed. São

Paulo: Cortez, Autores Associados, 1991. p. 73.

70

Id. ibidem.

71 No entanto, não foram poucos os homens de letras que viveram a experiência de trabalhar no comércio. O

poeta granjense Lívio Barreto (1870-1895) teve de abandonar os estudos para trabalhar como caixeiro em uma firma comercial na cidade de Granja. BARRETO, Lívio. Dolentes. 3 ed. Fortaleza: Edições UFC/Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, 2009, p. 229-230; Manoel Miranda, Vicente Loyola e outros jornalistas também passaram pelo mundo das casas comerciais, isto sem falar do já mencionado Rodolpho Theóphilo. THEÓPHILO, Rodolpho. Op. cit.

estabelecimentos de ensino particulares da cidade. Os sócios pagariam uma taxa mensal de Rs 5$000 (cinco mil réis), podendo frequentar gratuitamente as aulas. Caso tivessem filhos e os quisessem matricular, era possível obter condições vantajosas73.

A proposta de uma aula noturna para os empregados do comércio em Sobral não era novidade. A Phenix Sobralense, associação dos jovens caixeiros de balcão, começou a ser mencionada na imprensa a partir do ano de 1911 em um texto escrito pelo colaborador Tobias Coelho. Segundo ele, existia na cidade “um grupo de moços adiantados, destes que mourejam diariamente, de sol a sol, na profissão esgotante do commercio” que estavam “sonhando com um futuro mais amplo” e procuravam “projectar em suas intelligencias os raios fecundos da Sciencia”74.

O programa da Phenix incluía

[...] a união do commercio, a fundacção de uma bibliotheca, a acquisição de revistas e jornaes e principalmente a instrucção de seus associados, fundando um curso nocturno, onde se leccionará portuguez, francez, inglez, geographia, escripturação mercantil e arithmetica.

Alem disto haverá aos domingos jogos athleticos, esgrimas, etc. para desenvolvimento physico dos associados.75

A Phenix Sobralense, visivelmente, seguia o modelo da Phenix Caixeiral de Fortaleza, procurando demonstrar a força crescente dos caixeiros, uma categoria social que buscava tomar para si a condução da própria instrução na ânsia de acessar novos canais de representatividade social.

Os trabalhos da escola noturna do Gabinete de Leitura Sobralense foram iniciados no dia 1º de março de 1913. O êxito esperado, porém, não foi obtido. Inaugura-se, a partir daí, um discurso ressentido. Apesar de ter conseguido obter apoio de algumas pessoas, a instituição não havia recebido dos comerciantes a resposta positiva. Os fundadores trataram de dissolver a associação “por meios honrosos”, para o que convocaram os sócios para sessão extraordinária, como se vê abaixo:

Está convocada para hoje às 7 horas da noite, na séde social, desta corporação, uma

73 O Rebate, Sobral, 15 mar. 1913, p. 2. Na hipótese de um sócio ter um filho para matricular no ensino

primário, pagaria apenas a matrícula (Rs 10$000), ficando dispensado das mensalidades; caso pretendesse matricular outro filho no ensino secundário, pagaria a matrícula (Rs 6$000) ficando a mensalidade reduzida a Rs 3$000. Caso o sócio tivesse quatro filhos – dois para o ensino primário e dois para o secundário – o custo reduzir-se-ia substancialmente. Os dois filhos matriculados no primário nada pagariam, enquanto o secundário para os outros dois custaria apenas Rs 6$000 (seis mil réis). Somando-se a este valor a mensalidade do Gabinete, este sócio gastaria Rs 11$000 (onze mil réis) por mês em troca da educação de quatro filhos, além do acesso franco à biblioteca e assistência médica.

74

Patria, Sobral, 29 mar. 1911, p. 2. 75 Patria, Sobral, 05 abr. 1911, p. 1.

Assembleia Geral que terá por fim dissolver por meios honrosos, a dita sociedade. Pede-se o comparecimento de todos os associados e das pessoas que não o sendo prestaram auxílio pecuniario ao Gabinete.

Sobral, 3 de Abril de 1913.

O SECRETÁRIO Craveiro Filho76

Consumada a dissolução, restou o discurso ressentido e acusador, o qual identificou no apego ao dinheiro e na mesquinharia política de alguns indivíduos os motivos do fracasso da instituição. Um discurso maniqueísta no qual as rivalidades afloravam; as mágoas oriundas de antigos conflitos transpareceram sob uma capa de desprendimento dos interesses próprios em prol do bem da cidade.

Logo abaixo da nota transcrita anteriormente, o redator inseriu seu comentário a respeito do fato:

Effectivamente, sabemos que na sede social do GABINETE compareceram alguns associados que, encarando o esforço despendido no sentido de sahirmos da vergonhosa ignorancia em que vivemos, ainda trepidaram em dissolver, de um só golpe, o producto de uma dedicação espontanea e louvavel ao ensino e instrucção da mocidade. A instrucção de uns é complemento da de outros, mas assim não quiseram comprehender aquelles de quem dependia em grande parte a vida e funccionamento d’esta casa de instrucção: felizmente poucos, cujos nomes não devemos designar, porque fugimos de odiosidades.77

Teria a negligência e a cobiça dos comerciantes sobralenses sido a única razão daquele fracasso? Não contaria a cidade com suficiente número de estabelecimentos de ensino particulares, já melhor estruturados do que a aula noturna ofertada pelo Gabinete por preço similar? E o que dizer da opção pelo complemento da instrução dos caixeiros, ao invés da oferta gratuita do ensino de primeiras letras às crianças pobres? O insucesso da iniciativa de Newton Craveiro está ligado a fatores de ordem estrutural. A própria constituição do campo político local, espelhada na imprensa, demonstra o quão alta era a probabilidade de fracasso da Escola do Gabinete.

Em primeiro lugar, a fonte de que dispomos mostra-se carregada de parcialidade. O jornal O Rebate, de Vicente Loyola, servia de porta-voz ao partido rabelista em Sobral. Politicamente, a cidade estava cindida em dois grupos: os conservadores, defensores e beneficiários da política oligárquica de Antônio Pinto Nogueira Accioly, alinhados nas fileiras do Partido Republicano Conservador (PRC); e os rabelistas, adeptos do salvacionismo, representado no Ceará pelo tenente-coronel Marcos Franco Rabelo, eleito presidente do estado em 1912. Essa divisão permeava as relações sociais, a imprensa, o ensino público e

76

O Rebate, Sobral, 05 abr. 1913, p. 1. 77 Id. ibidem.

privado, o comércio, as agremiações recreativas e esportivas — enfim, toda a vida social era afetada pela polarização política.

Newton Craveiro parecia sentir-se à vontade para transitar de um polo a outro sem se incomodar com suscetibilidades. Tanto que os lances relativos à brevíssima trajetória da Gabinete de Leitura foram publicadas no n’O Rebate e no Pátria (órgão do PRC local), ou seja, ele procurou divulgar sua iniciativa nos dois maiores jornais da cidade, ignorando a rivalidade política entre ambos.

O jornal O Rebate, por sua vez, manifestou claro apoio ao projeto do novo gabinete e seu programa de ensino voltado para os empregados do comércio. Nos trechos já citados, percebe-se a simpatia do redator, que reproduziu o já conhecido discurso supervalorizador da instrução. O Pátria, por sua vez, limitou-se a publicar as notas enviadas por Newton Craveiro com interferência mínima da redação.

Em Sobral e por toda a zona norte do Ceará, o campo intelectual encontrava-se em processo de construção, incluindo as iniciativas de promoção de leitura e da instrução, a imprensa e a constituição de espaços destinados à sociabilidade letrada. No entanto, as posições assumidas pelos intelectuais no campo político acabaram por influenciar — às vezes negativamente — esse processo, dadas as rivalidades e tensões existentes. Esses elementos não fizeram parte do núcleo de fatos que mais tarde foram objeto de rememoração. A identidade cultural da zona norte do Ceará foi forjada, a partir da década de 1980, no contexto do boom da memória, a partir da atribuição da identidade de cidade intelectual à cidade de Sobral. Naquele momento, o que se valorizou foram as trajetórias individuais de intelectuais e artistas nascidos na terra.

Voltemos ao ponto inicial da EFS. Camocim teve seu gabinete de leitura fundado em 12 de janeiro de 1913. Seu fundador foi o jornalista, professor e conferente da EFS Júlio Cícero Monteiro78. Presidiu a instituição durante vários anos, auxiliado pelo professor J. J.

Praxedes, o poeta Pedro Morel e Francisco Menescal Carneiro, maçom e bibliotecário do Gabinete.

Ponto de passagem de muitos viajantes, a cidade de Camocim contava com pontos de distribuição de livros antes da fundação do Gabinete. Um deles foi a livraria de Horácio

78 Júlio Cícero Monteiro nasceu em Ipu no ano de 1867. Desde criança interessou-se pelo jornalismo e fundou

um jornal manuscrito chamado O Paladino, órgão da Sociedade Paladinos do Progresso. Teve passagens por