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4 DIFUSÃO DA LEITURA E A CONSTRUÇÃO DO JORNALISMO: BASES SOCIAIS E CULTURAIS

4.1 As bases sociais do jornalismo: trajetórias e itinerários

Em consonância com o processo de profissionalização do homem de letras e a configuração do campo intelectual a nível nacional, os letrados da zona norte do Ceará encontraram na imprensa a possibilidade de verem seus escritos convertidos em letra de forma e lançados no amplo circuito do jornal. A geração que viveu mais intensamente esse processo

2

NOBRE, Geraldo da Silva. Introdução à história do jornalismo cearense. ed. fac-similar. Fortaleza: NUDOC/Secretaria da Cultura do Estado do Ceará – Arquivo Público do Ceará, 2006, p. 132.

foi a dos nascidos após 1870, portanto, não mais protagonistas do avanço do pensamento cientificista nos pequenos círculos letrados cearenses e nacionais.

Nacionalmente, tal contexto foi qualificado por Sérgio Miceli como um

intermezzo, chamado por muitos de “pré-modernismo”, cuja delimitação temporal vai do fim

da geração de 1870 — representado pela morte de Machado de Assis e Joaquim Nabuco (1908-1910) — à Semana de Arte Moderna de 1922. Se a luta por grandes mudanças na política e na sociedade já havia sido consumada — abolição, república —, os intelectuais dessa geração intermediária foram bater-se pela constituição de seu lugar social e encontraram na imprensa o campo fértil para o exercício de sua habilidade3.

Nicolau Sevcenko identificou nesse período um processo cuja principal consequência foi “a descaracterização do intelectual e do literato tradicionais, que se dissolveram em meio à sociedade”, sendo que “a nova grande força que absorveu quase toda a atividade intelectual nesse período foi sem dúvida o jornalismo”4. No que tange à literatura,

Lilia Schwarcz enfatiza que a imprensa deu publicidade a muitas obras por meio dos folhetins. No Rio de Janeiro, a despeito do desenvolvimento da imprensa, o espaço ofertado pelos jornais à publicação de romances e novelas divididos em capítulos foi disputado “a tapa”, tamanho o número de escritores ansiosos pela glória na República das Letras, façanha conseguida por poucos5.

Enquanto isso, no Ceará a literatura passava por igual período de crise. Egressos das agremiações literárias — Academia Francesa, Gabinete de Leitura Cearense —, vários intelectuais cearenses haviam buscado refúgios nos cargos públicos angariados na capital da República. Havia ainda uma corrente de antigos membros da Padaria Espiritual — agremiação literária vanguardista de curta trajetória na última década do século XIX — que saboreavam o amargor da desilusão com o regime republicano sentado em bases oligárquicas6.

O processo de configuração incipiente do campo foi concomitante ao surgimento das primeiras possibilidades de profissionalização. Sabemos que na zona norte do Ceará o circuito letrado ainda era muito restrito, mas não inexistente. A conjuntura, no entanto, era a mesma: um campo intelectual em processo de formação, a imprensa surgindo como primeira possibilidade de profissionalização e certo rescaldo das grandes causas e ideologias liberais do século XIX.

3 MICELI, Sergio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 15-16. 4

SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

5 SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. p. 189. 6

CARDOSO, Gleudson Passos. Padaria espiritual: biscoito fino e travoso. 2 ed. Fortaleza: Museu do Ceará, Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, 2006. p. 62-63.

Os sujeitos da construção do jornalismo na zona norte tem origem social fora dos estreitos limites do círculo elitista local, de onde saíam os intelectuais tradicionais. Como poderemos ver a partir deste ponto, as trajetórias de Vicente Loyola e Deolindo Barreto Lima demonstram a desvinculação entre jornalismo e educação escolar ou formação de nível superior, prerrogativas exclusivas das famílias abastadas.

Figura 6 - Vicente Loyola

Fonte: <forquilhaontemhojesempre.blogspot.com>.

Vicente Loyola nasceu na fazenda Tamanduá, perto de Sobral, em 11 de agosto de 1873. Ainda jovem veio para Sobral. Desprovido de fortuna, sua frequência aos estabelecimentos de ensino foi breve, suficiente apenas para alfabetizar-se, abrindo-lhe as portas do mundo comercial. Moço pobre, mas alfabetizado, contava com a sorte de escapar ao trabalho braçal indo empregar-se como caixeiro7.

Apesar das sanções impostas à sua categoria profissional no que tange à leitura em horário de trabalho, as casas comerciais contavam com uma ambiência instigante, dada a presença de jornais e livros, despertando o desejo por essa prática proibida em jovens como Vicente Loyola8. A atividade importadora e exportadora colocava o comerciante e seus

caixeiros diante da incontornável necessidade de manterem-se atualizados em relação a tudo

7

ARAÚJO, Francisco Sadoc de (Padre). Cronologia Sobralense – 1841-1880. 2 ed. 3 vol. Fortaleza: Edições ECOA, 2015. p. 242. Em seu Diccionario BioBibliográfico Cearense, o Barão de Studart afirma que Vicente Loyola nasceu na fazenda Canto, no município de Sobral, e que sua entrada no jornalismo se deu através da amizade com Antenor Cavalcante, filho de José Vicente Franca Cavalcante, redator e proprietário do jornal

A Ordem. A entrada para o jornalismo teria se dado aos 21 anos, logo após o casamento com Floresmina

Cândida de Aguiar. STUDART, Guilherme. Diccionario BioBibliográfico Cearense. v. 3. Edição fac-similar. Fortaleza: Iris; Secult, 2012. p. 206. Optamos por montar o esboço biográfico de Vicente Loyola com base nas informações do Padre Francisco Sadoc de Araújo (Op. cit.) e da próprio jornalista recolhidas no O

Rebate e demais jornais do período. 8

A respeito da interdição da leitura dos caixeiros, ver: THEÓPHILO, Rodolpho. O caixeiro: reminiscências. Ed. fac-similar. Fortaleza: Museu do Ceará; Secretaria da Cultura, 2002. p. 24-25.

que ia pelo mundo afora, especialmente taxas cambiais, guerras, greves, tragédias de todo tipo e tudo que pudesse influenciar as cotações dos produtos comercializados. Além do telégrafo, os comerciantes recorriam a jornais, revistas e almanaques9.

Vicente Loyola chegou a Sobral em 1895 e foi trabalhar na casa comercial do coronel José Figueira de Saboia e Silva na função de caixeiro-vassoura10. Pouco depois,

passou a trabalhar para outro homem de grande fortuna e prestígio entre os militantes do Partido Republicano Cearense, o coronel Antônio Regino do Amaral, com cujos filhos fez amizade, especialmente com o bacharel Álvaro Otoni do Amaral11.

A família Amaral possuía uma tipografia cujas ações aparecem no inventário do coronel Antônio Regino, falecido em 1908, descritas como “uma parte na Impresa [sic] tipographica d’A Cidade, avaliada em um conto de réis...”, seguida de “uma prensa de ferro para copiar e uma banca para a mesma avaliada em vinte mil réis...”12. O jornal A Cidade

circulou em Sobral entre 1899 e 1904. Em 1901, Waldemiro Cavalcante introduziu Vicente Loyola na redação desse jornal, onde permaneceu até a fundação do Itacolomy, futuro órgão cuja meta era fortalecer a luta contra Accioly na zona norte. As relações com o diretor d’A

Cidade, o bacharel Álvaro Otoni do Amaral, logo se tornaram tensas devido à mudança de

orientação política do jornal, que passou a apoiar Accioly. Dali, Vicente Loyola saiu apenas para assumir a gerência do Itacolomy, de acordo com a intenção de Waldemiro Cavalcante13.

A trajetória de Vicente Loyola começa com sua breve passagem pela escola onde se alfabetizou. Em seguida, o próximo estágio foi o trabalho comercial, onde tomou contato, a despeito das proibições, com livros, revistas e jornais vindos dos grandes centros nacionais e estrangeiros. Ao mesmo tempo, foi se colocando socialmente, nos interstícios, como caixeiro, depois como caixeiro/colaborador de jornal do filho do empregador. Um itinerário marcado pela origem social humilde e o avanço conseguido às custas da aproximação com o círculo elitista, obtendo favores tais como o espaço para a publicação de notas no jornal até tornar-se gerente, num movimento ascendente no interior do campo jornalístico em surgimento.

Vicente Loyola permaneceu em seu cargo de gerente mesmo após as radicais

9 XAVIER FILHO, José. Ignacio Xavier & Cia. Granja: IJX, 2008. p. 100. 10

Pátria, Sobral, 25 mai. 1910, p. 4. De acordo com as descrições de Rodolpho Theóphilo, o caixeiro-vassoura

assumia as funções mais modestas na labuta diária da casa comercial. Uma delas consistia em, logo cedinho, varrer a calçada e a metade da rua em frente ao estabelecimento, visto que o serviço de limpeza pública inexistia. THEÓPHILO, Rodolpho. Op. cit., p. 11-12.

11 O Rebate, Sobral, 12 jun. 1915, p. 1

12 UVA/CCH/NEDHIS, Fundo: Cartórios, Caixa: 1908. Inventário de Antônio Regino do Amaral. 13

O Rebate, Sobral, 12 jun. 1915, p. 1. Waldemiro Cavalcante fez parte da Padaria Espiritual, cuja presidência

ocupou, sucedendo ao primeiro “padeiro-mor”, Antônio Sales. Sua militância na luta antioligárquica esteve em consonância com sua atuação como intelectual, pois a Padaria pretendia, conforme anunciado em seu programa, manter uma postura crítica em relação aos valores burgueses, românticos e conservadores. AZEVEDO, Sânzio de. Breve história da Padaria Espiritual. Fortaleza: Edições UFC, 2011.

transformações na redação do Itacolomy, decorrentes da mudança de orientação política da maioria dos fundadores, os quais passaram a apoiar Accioly. Vicente Loyola continuava fiel a Waldemiro Cavalcante e ao programa de fundação do Itacolomy, mas manteve-se em silêncio14. De acordo com Barão de Studart, a situação ambígua não foi suportada por muito

tempo, e Vicente Loyola resolveu pôr em prática seu projeto de ter seu próprio jornal15.

É preciso acautelar-se ante o discurso de Barão de Studart. Sua intenção ao escrever seu Dicionário Bio-Bibliográfico foi estabelecer o panteão intelectual cearense. Os nomes inclusos deveriam portar as credenciais representadas pelo devotamento às letras. Nesse discurso, a iniciativa de fundar O Rebate aparece como consequência unicamente da discordância de Vicente Loyola quanto à orientação política do jornal em que trabalhava. Acumulando experiência ao passar pelas redações de A Cidade e O Itacolomy, não lhe seria impossível perceber a marcha de crescimento da imprensa sobralense, convencendo-se de haver condições propícias à realização de seu projeto pessoal. Portanto, não nos parece de todo inaceitável a tese de que a iniciativa de fundar o jornal tenha sido fruto não da fidelidade a um princípio ideológico partidário, mas de uma estratégia interessada e calculada.

No dia 20 de abril de 1907, circulou a primeira edição d’O Rebate. Não sabemos com que recursos Vicente Loyola (diretor e proprietário) havia adquirido a tipografia, o papel, a tinta e demais materiais necessários ao empreendimento. Sabemos de sua atividade comercial desde 1899, quando anunciava sua pequena loja, onde vendia tecidos, chapéus, doces caseiros, feijão, carne, arroz, milho para plantar, biscoito, açúcar etc.16 Trabalhava na

imprensa desde 1901. De 1907 em diante, a tipografia e o jornal passaram a ser suas principais atividades, caracterizando-o como o primeiro exemplo de jornalista profissional em Sobral — profissional no sentido de que passou a viver daquele ofício.

Aléxis Barbosa Morin, João Barbosa de Paula Pessoa e Padre Fortunato Alves, antigos colegas de redação do Itacolomy, transferiram-se para O Rebate, contribuindo para a consolidação deste como porta-voz da política antioligárquica em Sobral. Em seus primeiros anos, esse jornal foi considerado um sucessor do Itacolomy, mas sua trajetória e longevidade o tornaram um caso emblemático do processo de consolidação da imprensa enquanto espaço de ação política na cidade de Sobral e na zona norte do Ceará17.

Constituindo-se como jornalista, Vicente Loyola ajuda-nos a vislumbrar as bases sociais do jornalismo em Sobral. Originário de uma família socialmente situada fora dos

14

Id. ibidem.

15 STUDART, Guilherme. Op. cit. 16

A Cidade, Sobral, 08 mar. 1899, p. 4. 17

LIMA, Jorge Luiz Ferreira. Espectros de lutadores: história, memória e imprensa em Sobral/CE no início do século XX. Outros tempos, v. 13, n. 21, p. 65-83, 2016.

estreitos limites do círculo elitista, desprovidos de estudos regulares, com experiência comercial e na imprensa, construiu um perfil marcado pelo avanço por caminhos tortuosos. Seu cabedal intelectual foi construído à base de leituras fragmentárias, especialmente de jornais. Sua passagem pelas redações d’A Cidade e Itacolomy propiciaram o contato com periódicos vindos dos mais variados pontos, remetidos para permuta, prática arraigada na imprensa daquele tempo.

A maior influência política e intelectual de Vicente Loyola foi Waldemiro Cavalcante, com quem aprendeu a acreditar na escrita jornalística como a melhor arma a brandir na luta contra os adversários. Como jornalista, passou a compor o grupo dos donos da palavra impressa, cuja escrita desfrutava de crédito junto ao público leitor.

Figura 7 - Deolindo Barreto Lima

Fonte: COSTA, Lustosa da. Clero, nobreza e

povo de Sobral. Brasília: Senado Federal, 1987, p.

125.

Semelhante foi o itinerário social de outro jornalista: Deolindo Barreto Lima. Nascido em Crateús no ano de 1884, aos dezoito anos de idade partiu para Belém (PA), de

onde deslocou-se até Humaitá (AM) em busca de fortuna nos seringais18. Diante do fracasso

dessa empreitada, Deolindo retornou a Belém, onde conseguiu emprego como tipógrafo nas oficinas gráficas do jornal A Província do Pará. Casou-se, por procuração, com sua prima sobralense Maria Brazil Barreto, com quem viveu no Pará até 1911/12, quando retornou a Sobral. Pouco depois de sua partida, a política paraense foi convulsionada pela luta entre a oligarquia Lemos, há muito estabelecida no poder, proprietária d’A Província do Pará, e Lauro Sodré, dono da Folha do Norte. Os embates resultaram na queda dos Lemos, sendo incendiada a sede da Província19.

Em Sobral, Deolindo montou uma tipografia com prelo e tipos trazidos de Belém. Entre 1912 e 1913, dedicou-se apenas a trabalhos de impressão, até ser procurado por dois jovens rabelistas interessados na impressão de um jornal. O trabalho foi aceito. O jornal, um pasquim virulento chamado Mão Negra, causou problemas a Deolindo20. Era difícil para elite

local aceitar o fato de que a cidade de Sobral se tornava socialmente diversificada, comportando sujeitos como Vicente Loyola e Deolindo Barreto, dispostos a reivindicar um lugar no campo político e intelectual, antes dominado exclusivamente pelo clero e bacharéis e doutores bem nascidos.

Embora condicionado pela polarização política, o jornalismo sobralense ganhava, com Deolindo e Vicente Loyola, feições de atividade econômica consolidada. A imprensa tornava-se meio de vida. Dedicados inteiramente a tal atividade, os jornalistas profissionais, a despeito da escassa formação, se mostraram capazes de construir uma leitura da política e denunciar os desmandos, tudo com uma sagacidade aprendida por meio da leitura de textos de jornalistas mais experientes.

Uma das principais características desse jornalismo nascente foi a combatividade, a qual funcionou como um atrativo junto ao público leitor. As polêmicas prolongadas por várias edições contribuíram para manter o interesse na leitura. Nesse sentido, manteve o perfil opinativo, político e polêmico. A leitura guardava o interesse pelas tramas romanescas, pelos heróis e vilões, influenciando os produtores de uma imprensa necessitada de leitores para sua subsistência.

Vicente Loyola e Deolindo Barreto ingressam no campo intelectual pelas fímbrias, na esteira do processo de difusão da leitura, a qual se deu por várias vias. A difusão do livro seguiu sua marcha desde o século XIX, com os primeiros gabinetes de leitura, as casas comerciais e bibliotecas públicas; a alfabetização foi difundida pelas escolas públicas e

18

A Imprensa, Sobral, 18 jun. 1925, p. 2. 19

BRASIL, Jocelyn. Andanças e lembranças. 2 ed. Belém: Edições Aleutianas. p. 39.

privadas e pelos projetos oriundos do nacionalismo militante, como os cursos noturnos ofertados pelos gabinetes. Livro e jornal, enquanto material dado a ler, ocupam posição distinta. O primeiro era visto como o repositório do conhecimento por excelência, uma espécie de mestre mudo. Para instruir-se, era fundamental o acesso ao livro; o segundo era considerado o “livro do povo”21, o suporte textual destinado a instruir aqueles a quem o

primeiro era inacessível.

Por sua maior circularidade e baixo custo, o jornal tornou-se o suporte textual de maior penetração junto a um público leitor já diverso e ampliado, criando condições propícias ao surgimento dos jornalistas profissionais. Movimento semelhante não ocorreu no mundo do livro, como atesta o não surgimento de literatos profissionais em Sobral e zona norte no período investigado.

Pelas vantagens mencionadas, o jornal passou a ser visto como o melhor meio para conseguir formar a opinião pública, termo aplicado em sentido quantitativo, ou seja, a opinião pública seria constituída por um conjunto de ideias comuns ao maior número possível de indivíduos. Difundir uma ideia até transformá-la em pensamento coletivo era a estratégia utilizada pela imprensa no sentido de produzir as transformações sociais ansiadas pelo povo, classe que os jornalistas profissionais em Sobral dizem representar e cujos interesses prometem defender, como escreveu Vicente Loyola no programa de fundação d’O Rebate:

Uma sociedade sem imprensa é como uma sociedade sem objectivo; a opinião dos indivíduos não se póde avolumar, formando essa avalanche poderosa, que ás vezes abate as mais seguras muralhas; ella vem canalisar as ideias isoladas e dispersas, tornando-as um agregado homogeneo, que é o esteio da justiça e um dos melhores factores do progresso.22

A imagem do jornal como canalizador das ideias deixa claro o seu reconhecimento como uma instância discursiva, apta a colaborar na construção de sentidos. Suas páginas serviram de suporte à elaboração de representações do social, mas nunca a realidade em si23. Portanto, acercar-se de um jornal é adentrar a ordem do discurso24, é acessar

uma sociedade pensada a partir de sua representação em letra de forma. Seu objetivo é induzir o maior número de pessoas a pensar de determinada maneira. Nisso consistia, para os

21 Tomamos esta expressão de Antônio Bezerra de Menezes, que a empregou ao comentar o desaparecimento

do jornal Granjense, em 1884, ao passar pela cidade de Granja. BEZERRA, Antônio. Notas de viagem. 3 ed. Fortaleza: Imprensa Universitária, 1965. p. 59.

22

O Rebate, Sobral, 20 abr. 1907, p. 1. 23

Sobre o conceito de representação, ver CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. 2 ed. Lisboa: Difel, 2002.

24 Conceito forjado por Michel Foucault e aqui tomado na acepção exposta por esse autor em: FOUCAULT,

Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Edições Loyola, 2009.

jornalistas analisados, a orientação da opinião pública.

Por isso, o jornal deve ser submetido a uma leitura a contrapelo. O jornalismo do início do século XX, mesmo com o avanço da ideia de imparcialidade, mostrava-se essencialmente político, preocupado com a defesa de projetos e ideologias. O emprego recorrente das categorias “povo” e “população” visava convencer o leitor da ausência de interesses próprios. Vejamos a posição d’O Rebate:

O Rebate, consequentemente, para desempenhar seu papel e corresponder à somma de apoio e confiança que conta merecer de todas as classes, sem distinção de ordem politica, não manterá ligações partidarias com qualquer das aggremiações, que actualmente se degladiam disputando a culminancia do poder.

No entanto, não se priva do direito de opinião politica e de manifestal-a livremente destas columnas, apreciando, com justiça, os homens e os factos, applaudindo-os ou censurando-os.

Estará ao lado do povo, em qualquer emergencia, consciente de seu posto de combate na defesa de seus direitos conculcados pela força desordenada e criminosa dos agentes publicos. Para julgar nossa attitude, temos o tribunal soberano da opinião publica, em cujo seio aninharemos a esperança de longos dias, absorvendo calor e animo para reprimirmos todos os desmandos, para corrigirmos todos os abusos!25

Assumir publicamente o compromisso de manter-se ao lado do povo, defendendo seus interesses contra as ambições dos políticos, foi a estratégia discursiva adotada pelo jornalista com o objetivo de conquistar um lugar na arena da imprensa e uma posição favorável junto àquilo que ele entende como opinião pública, ou seja, merecer a aprovação da maioria do público. Para início de conversa, assinale-se a visão dicotômica da realidade, numa sociedade dividida entre pobres indefesos e ricos detentores do poder. Explorado e sem voz, o povo necessitava de alguém habilitado a defender seus interesses, o que equivaleria a entrar em luta com os mandatários. Estava dado, portanto, o papel do jornal: tomar a defesa do povo naquela disputa.

A nível do discurso, realizou-se uma operação análoga àquela percebida por Michel de Certeau em relação ao estudo da cultura popular. Ao classificar como “populares” os saberes produzidos fora do estreito círculo da ciência, a curiosidade científica procura não reencontrar o povo, mas circunscrevê-lo em limites estreitos. Para legitimar a investigação, fez-se necessário declarar a morte do objeto estudado. A conversão do povo e do popular em