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3 LUGARES DO LIVRO E INTERMEDIÁRIOS DA LEITURA NAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO

3.2 Estafetas, estivadores e carreteiros

O transporte de mercadorias empregava grosso contingente de mão de obra não especializada, à qual restava o trabalho pesado de transferir as mercadorias dos navios para o depósito ferroviário e dali aos trens. Eram os estivadores do porto de Camocim, cuja força muscular constitui seu tributo ao funcionamento do circuito livreiro.

A relação entre esses trabalhadores e o livro é um assunto bastante inquietante, pois encontramos indícios de que sua contribuição para a circulação do livro pode ter ido além do simples desempenho de sua função nos portos. A assimilação de ideias políticas era proporcionada pelo contato com os viajantes. Os próprios estivadores costumavam buscar o porto de Santos quando o movimento diminuía em Camocim. O contato com colegas de praças maiores e mais movimentadas mostrava-se propício à construção de laços de solidariedade, despertando o sentimento classista e incentivando a eclosão de movimentos paredistas associados à divulgação do ideário comunista, também presente em meio aos ferroviários49.

Na condição de categoria profissional em processo de formação, os ferroviários e estivadores demonstraram ter tido convicção da importância da leitura, especialmente do jornal enquanto órgão de orientação. A iniciativa de Francisco Theodoro Rodrigues, “militante comunista e fazedor em jornais em Camocim”, foi emblemática no sentido de representar o embate enfrentado pela nascente classe operária contra as classes “conservadoras”. De acordo com Adelaide Gonçalves, a publicação do jornal operário dirigido por Theodoro foi tolerada pelos mandatários locais até o instante em que teve a ousadia de indicar uma chapa operária nas eleições municipais de 1920. A reação conservadora foi imediata. Theodoro foi preso e obrigado a deixar a cidade, como vimos anteriormente50.

O engajamento político nascia, entre aqueles trabalhadores do ramo de transportes, do contato com ideias vindas de pontos distantes. No processo de formação de uma consciência de classe, o contato com textos instrutivos não estava ausente. A formação

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SANTOS, Carlos Augusto Pereira dos. Entre o porto e a estação: Cotidiano e cultura dos trabalhadores urbanos de Camocim-CE. 1920-1970. 2008. 258f. Tese (Doutorado em História) — Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2008. Os estivadores do porto de Camocim declararam greve em janeiro de 1923, despertando a suspeita de haver um agente comunista infiltrado no grupo. A imprensa não apoiou a iniciativa, e o comerciante Vicente Aguiar afrontou o líder do movimento, conseguindo colocar empregados particulares para realizar o trabalho dos grevistas. A Lucta, Sobral, 13 jan. 1923, p. 1.

intelectual de um líder comunista local se dava pela leitura do material impresso disponível, especialmente jornais. Francisco Theodoro seguiu essa trilha e publicou seu jornal operário em Camocim, buscando fornecer subsídio para a construção do sentimento de pertença à classe operária entre os trabalhadores locais.

Além de intermediários da leitura, tais homens foram leitores. O texto impresso esteve associado às suas experiências de militância política.

A partir de Camocim, a distribuição de mercadorias seguia o fio traçado pelos trilhos da EFS. Em suas estações eram descarregados volumes destinados aos mais distantes pontos da zona rural — fazendas, arraiais, povoados, vilas. Essa etapa última entre a estação ferroviária e o destinatário final era feita por carreteiros (quando o destino era a área urbana)

ou por estafetas (no caso em que a encomenda devia ser entregue na área rural ou em cidades situadas sobre a Serra da Ibiapaba ou qualquer outro ponto distante das estações).

O serviço postal funcionava a partir do emprego dos três meios de transporte: o marítimo, o ferroviário e o terrestre, este último com o uso de animais de carga. Na cidade de Viçosa, encontramos o caso do farmacêutico Felizardo de Pinho Pessoa, o qual precisava ir à agência postal todas as quartas-feiras retirar suas encomendas, entre elas jornais51. Livros e

mercadorias as mais diversas seguiam o mesmo trajeto. Após a chegada ao porto, eram transferidos aos trens e, por último, transportados por estafetas e seus comboios de burros e jumentos pelas longas veredas sertanejas ou sinuosas ladeiras, buscando cidades e vilas serranas.

Quando o destinatário não podia ir pessoalmente retirar suas encomendas, era contratado o serviço dos carreteiros. O indício mais próximo que temos da atuação desses trabalhadores são dois lançamentos no balancete do Gabinete de Leitura Ipuense para os meses de setembro a dezembro de 1919. Ali, consta um débito no valor de Rs 15$000 (quinze mil réis) para pagamento de frete e carreto de livros no dia 4 de outubro; o segundo lançamento é outro débito no valor de Rs 106$500 (cento e seis mil e quinhentos réis), referente ao pagamento de despesas com encadernação, frete e carreto de livros no dia 18 de outubro52.

No registro feito no balancete, a presença desses trabalhadores, intermediários “esquecidos” da leitura, não aparece, apenas a referência ao custo do trabalho realizado53.

51 Informação obtida por meio de entrevista com o Dr. Felizardo de Pinho Pessoa Filho, aposentado, 86 anos,

em Viçosa do Ceará, no dia 29 de outubro de 2005.

52 Balancete Geral do Gabinete de Leitura Ipuense a contar de Novembro de 1918 a Dezembro de 1919. Correio do Norte, Ipu, 08 jan. 1920, p. 4.

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“Esquecidos” porque sua presença nas fontes aparece sempre enviesada, exigindo uma leitura atenta a fim de não passarem despercebidos. A presença do trabalhador braçal afasta um pouco aquela aura de glamour

Sabemos tratar-se de trabalhadores autônomos, provavelmente muito pobres, cuja única ferramenta de trabalho era uma espécie de carroça construída em madeira — o carreto. Os mais abonados conseguiam ter um burro para puxá-la, mas a maioria tracionava com sua própria força. Temos, nessa etapa da circulação do livro, a presença marcante de um trabalho corporal, feito por homens pouco ou nada familiarizados ao mundo da leitura, excetuando a possibilidade da audição de uma leitura em voz alta de textos como o Carlos Magno e os

Doze Pares de França.

Os livros que fomos encontrar acomodados nas estantes que um dia pertenceram aos gabinetes de leitura foram ali depositados à custa de trabalho corporal humano. Sempre que se pensa no livro e no trabalho a ele associado, logo nos vem à mente a ideia do trabalho espiritual, envolvendo a leitura; o trabalho corporal associado ao livro e aos trabalhadores braçais envolvidos no processo de circulação das ideias ainda permanece no limbo do esquecimento.

Mapear os caminhos do livro e os operadores de seu transporte enumerando individualidades, traçando perfis, constitui tarefa impossível, dadas as limitações das fontes de que dispomos. Nosso objetivo, aqui, é detectar os rumos do livro, as categorias de trabalhadores envolvidos no seu manejo enquanto mercadoria a ser conduzida, acondicionada, percorrendo etapas até chegar ao destino final. Indo nessa direção, deparamo-nos com os problemas do sistema postal do período. O cargo de agente ou estafeta dos Correios, embora menos importante na grade de serviços públicos presentes nas cidades e vilas, garantia ao seu ocupante algum prestígio, o que podia desembocar em conflitos políticos.

Um episódio dessa natureza ocorreu na zona norte em 1915, tendo como protagonistas o estafeta Paulo Furtado, destacado na Vila de Santa Cruz, e o jornalista Vicente Loyola. Paulo aplicara ao jornal O Rebate multa no valor de Rs 50$000 (cinquenta mil réis) após encontrar algumas cartas ocultas dentro do pacote de jornais, vistoriado na estação de Santa Cruz. Tal prática constituía infração ao regulamento postal, pois gerava o não pagamento do selo, aproveitando-se o remetente da existência de tarifas diferenciadas para impressos54.

Ressentido, Vicente Loyola não assumiu a infração e afirmou tratar-se de um

em torno do livro e sua história. Às vezes, é preciso lembrar que a história do livro não concerne apenas ao uso que dele era feito, à leitura, às trocas, aos empréstimos, às trocas de impressões de leitura. O livro, enquanto objeto material manejável, era objeto de trabalho braçal e, quando se trata de sua circulação, os operadores desse tipo de trabalho, fundamental para a viabilização de um circuito do livro, não podem ser negligenciados, ainda que a limitação das fontes impeça de se chegar a nomes e individualidades. Partimos de DARNTON, Robert. Os intermediários esquecidos da leitura. In: O beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 150-167.

embuste da parte de seus adversários políticos, dos quais Paulo Furtado era um dos representantes em Santa Cruz. Usando de sua posição de jornalista, acusou o estafeta de praticar atos violentos na vila, sob proteção de líderes influentes do PRC naquela localidade e em Sobral. Paulo Furtado, à frente de um destacamento de soldados, teria cometido violento atentado contra pessoas inocentes enquanto buscava prender José Borges, comboieiro contrato por ele para fazer o transporte das encomendas entre Santa Cruz e a vila do Campo Grande, sobre a Ibiapaba. A altercação entre os dois teria surgido após uma tentativa de calote da parte do primeiro e as insistentes cobranças por parte do segundo. O comboieiro Borges acabou preso após feroz perseguição comandada por Paulo Furtado, apoiado pelo intendente da vila55.

O caso nos interessa não pela violência, mas pela associação entre um comboieiro e um agente postal, demonstrando a dependência do sistema postal brasileiro do auxílio desses ofícios tradicionais. A logística da época, da qual dependia o funcionamento do circuito livreiro, envolvia estas várias categorias de trabalhadores. Desde a mão de obra assalariada de ferroviários, os autônomos estivadores e comboieiros e os funcionários públicos, representados pelos agentes dos correios e estafetas, auxiliados pelos pobres carreteiros, uma variedade de profissionais operava a circularidade do livro e da informação impressa.