• Nenhum resultado encontrado

Pedro Fortes

AGRUPAMENTO ESTRUTURAL

Niklas Luhmann defendeu o fechamento operacional do direito, argumentando que “só o próprio sistema jurídico pode efetuar o seu en-

cerramento, reproduzir suas operações, e definir seus limites”5. Na sua

visão do direito como um sistema social, Luhmann explica que o sistema jurídico é programado através de uma comunicação codificada particular, que proclama o que é “legal” e “ilegal” de acordo com uma rede recursi- va de operações normativas6. Uma cadeia auto-referencial de comunica-

5 LUHMANN, Niklas. Law as a Social System. OUP, 2004. p. 100. 6 Idem, p. 98-99.

ção interna dentro do sistema jurídico produz enunciados normativos na sequência de um regime binário que decide o que é “legal” ou “ilegal”, operando de uma maneira normativamente fechada7. Se legal/ilegal é

caracterizado como uma comunicação normativa resultante das operações internas do sistema jurídico, o direito opera de forma circular porque as estruturas jurídicas determinam o seu caráter como parte integrante do sistema jurídico também, proclamando o que é legal/ilegal8. Valendo-se

da terminologia do biólogo chileno Maturana9, Luhmann considera o

sistema jurídico como sendo autopoiético, operando dentro de si para especificar as suas operações como sendo jurídicas através da auto- referência e da diferenciação com o ambiente10. Neste sentido, “autopoe-

se significa que um sistema pode gerar as suas próprias operações ape- nas por meio da rede de suas próprias operações”11. Portanto, este encer-

ramento operacional dos sistemas implica a necessidade de formação interna das estruturas jurídicas e as próprias operações do sistema geram estas estruturas através da auto-organização12.

No entanto, o sistema jurídico está relacionado ao meio ambien- te e aos outros sistemas, operando com abertura cognitiva e interconexão sistêmica13. O conceito de acoplamento estrutural explica essas relações

entre sistemas e ambiente14. Luhmann explica que os sistemas são seleti-

vos e é importante observar o que está incluído e excluído, porque esses acoplamentos estruturais simultaneamente filtram e desencadeiam as influências externas nas operações internas de um sistema15. Particular-

mente em relação ao sistema jurídico, Luhmann analisa o acoplamento entre direito e economia e direito e política. Segundo ele, o reconheci-

7 LUHMANN, Niklas. Law as a Social System. OUP, 2004. p. 106. 8 Idem, p. 86.

9 MATURANA, Humberto. Autopoieses, Structural Coupling, and Cognition: A

History of These and Other Notions in the Biology of Cognition. Cybernetics & Human Knowing, v. 9, n. 3-4, p. 5-34, 2002; MATURANA, Humberto. The Organization of the Living: A Theory of The Living Organization. Int. J. Man- Machine Studies 7, p. 313-332, 1975.

10 LUHMANN, Niklas. Law as a Social System. OUP, 2004. p. 90.

11 LUHMANN, Niklas. Introduction to Systems Theory. Polity, 2013. p. 76. 12 Idem, p. 70.

13 Veja os vários estudos de caso reunidos em FEBBRAJO, Alberto; HARSTE, Gorm

(Eds.). Law and Intersystemic: Understanding ‘Structural Coupling’. Ashgate, 2013.

14 LUHMANN, Niklas. Law as a Social System. OUP, 2004. p. 380.

15 LUHMANN, Niklas. Introduction to Systems Theory. Polity, 2013. p. 85-7; LUH-

MANN, Niklas. Law as a Social System. OUP, 2004. p. 382-3. Niklas Luhmann se refere a irritações, surpresas e distúrbios, mas Gunther Teubner uma vez me explicou que todas estas expressões podem muito bem ser substituídas por influências.

mento jurídico de interesses como legalmente protegidos/desprotegidos resulta de uma estrutura operacional construída dentro do sistema jurídico como uma estação de recepção e transmissão de informação econômica16.

A relação constitutiva entre a economia e o direito é clara na observação de institutos como propriedade e contrato17. A propriedade é uma transa-

ção, mas o sistema econômico observa-a como um investimento rentável, enquanto que o sistema jurídico observa a coerência das decisões que asseguram legalmente os interesses envolvidos nessa transação18. E a

institucionalização da liberdade contratual permite transações econômicas sem limitações impostas por uma disciplina restritiva de determinados tipos de contratos19.

Analisando o acoplamento estrutural entre o direito e a política, Luhmann enfatiza o surgimento do Estado como estrutura fundamental gerada por esta influência recíproca entre o sistema político e o sistema jurídico20. É importante ressaltar que a Constituição transformou direito

positivo em um instrumento de organização política e tornou o direito constitucional um instrumento de disciplina jurídica da política21. Curio-

samente, a Constituição tem um significado diferente em cada sistema, sendo observada como um estatuto supremo na ordem jurídica e como um instrumento de política no sistema político22. Luhmann observa que

“a positivação do direito e da democratização da política apoiam-se

reciprocamente e deixaram uma marca significativa tanto no sistema político e do sistema jurídico atual”23. E, no entanto, ele explica que am-

bos os sistemas permanecem separados, com suas próprias operações, comunicações e codificação internas24.

Luhmann normalmente examina essas influências recíprocas entre sistemas observando acoplamentos estruturais, como o direito e a política ou direito e economia. Portanto, essa hipótese de relações estrutu- rais que conectam três, quatro ou mais sistemas simultaneamente pode parecer heterodoxa à primeira vista. Talvez também a expressão agrupa-

mento estrutural ou poligamia estrutural possa parecer incomum para

16 LUHMANN, Niklas. Law as a Social System. OUP, 2004. p. 390. 17 Idem, p. 390. 18 Idem, p. 392. 19 Idem, p. 399. 20 Idem, p. 404. 21 Idem, p. 404. 22 Idem, p. 410. 23 Idem, p. 364. 24 Idem, p. 367.

Luhmannianos ortodoxos. No entanto, uma análise atenta de sua obra sugere que as relações intersistêmicas podem gerar estruturas complexas entre múltiplos sistemas interligados. Por exemplo, suas análises de con- trato e da propriedade não estão limitados à dupla influência de direito e economia, também referindo-se a dimensão do poder político encontrada na propriedade da terra, na tributação e na execução dos contratos25.

Além disso, seu estudo sobre a constituição do estado não se restringe apenas à influência recíproca entre o sistema jurídico e político, mas tam- bém inclui considerações econômicas relacionadas com as condições para o funcionamento do estado de bem-estar social26. Em suas observações

sobre as operações dinâmicas de acoplamento estrutural, Luhmann parece admitir a possibilidade de existência destas relações estruturais múltiplas entre mais do que dois sistemas, declarando que “os sistemas de funcio-

namento da política, direito e economia (os outros não foram discutidos aqui) esgotam os limites de suas possibilidades, e sua irritação recípro- ca intensiva assegura a manutenção da compatibilidade suficiente”27.

Parece que essas relações intersistêmicas não são necessariamente limi- tadas a estruturas dualistas, mas podem surgir através das múltiplas estruturas que eu denomino agrupamento estrutural ou poligamia estru-

tural.

As múltiplas influências do direito, política e economia sobre o estado constitucional contemporâneo são muito nítidas. Afinal, a Consti- tuição é simultaneamente a lei suprema do país, a decisão política funda- mental, e a moldura institucional necessária para a economia de mercado. Além disso, as constituições não são mais observadas apenas como con- tratos sociais, mas sim como mecanismos de ampla coordenação institu- cional e como declarações de missão para o desenvolvimento da socieda- de28. Em sua discussão sobre a crise financeira numa perspectiva consti-

tucional, Teubner também se refere à constituição econômica como a articulação estrutural da economia, direito e política, explicando que “numerosos acoplamentos estruturais da política institucionalizada e da

economia e do direito existem, por exemplo, o sistema de tributação ou de lobby das organizações econômicas”29. Teubner refere-se a estas es-

25 LUHMANN, Niklas. Law as a Social System. OUP, 2004. p. 393 e 400. 26 Idem, p. 412.

27 Idem, p. 422.

28 GALLIGAN, Denis J.; VERSTEEG, Mila (Eds.). Social and Political Foundations

of Constitutions. CUP, 2013.

29 TEUBNER, Gunther. A Constitutional Moment? The Logics of Hitting the Bottom.

truturas como ‘acoplamentos estruturais trilaterais’30, mas a expressão

‘agrupamentos estruturais’ ou’ poligamia estrutural’ parece não apenas ser mais precisa, mas também destaca a complexidade destas estruturas particulares. Em suma, os interesses econômicos são estabilizados pelo direito e são protegidos pelo monopólio da força da política31. Em sua

defesa do transconstitucionalismo, Marcelo Neves também critica as limi- tações da formulação de acoplamentos estruturais como uma articulação mecânica bilateral entre dois sistemas, admitindo o entrelaçamento de mais de dois sistemas, em casos específicos, como a fiscalidade, a opera- ção bancária central, e eleições, por exemplo32.

Constituições contemporâneas também estabelecem a relação entre a Igreja e o Estado, articulando a separação e conexão entre o sis- tema religioso com os sistemas político, jurídico e econômico. Algumas constituições estabelecem teocracias, sem qualquer diferenciação funcio- nal clara entre política e religião – particularmente estados islâmicos re- sistem à secularização33. Porém, a maioria dos Estados separa a função de

formar decisões coletivas vinculantes da interpretação dos mistérios in- compreensíveis34. Em todo caso, o Estado constitucional é a estrutura que

articula essas relações, controlando as influências religiosas sobre as de- cisões coletivas vinculantes35. Esta diferenciação estrutural estabeleceu

uma separação entre as funções políticas e religiosas e a decisão de acre- ditar ou não acreditar se tornou uma questão de escolha privada36. Luh-

mann sugere que a religião ganhou autonomia estrutural ao custo de re- conhecer a autonomia dos outros subsistemas e de aceitar a secularização do mundo37. No entanto, vários exemplos indicam a influência duradoura

das crenças religiosas sobre os sistemas jurídicos, políticos e econômicos.

Crisis in Constitutional Perspective: The Dark Side of Functional Differentiation. Hart, 2011. p. 38.

30 TEUBNER, Gunther. A Constitutional Moment? The Logics of Hitting the Bottom.

In: KJAER, Paul; TEUBNER, Gunther, FEBBRAJO, Alberto (Eds.). The Financial

Crisis in Constitutional Perspective: The Dark Side of Functional Differentiation. Hart, 2011. p. 38.

31 Idem, p. 39.

32 NEVES, Marcelo. Transconstitutionalism. Hart, 2013. p. 35.

33 LUHMANN, Niklas. Society, Meaning, Religion: Based on Self-Reference. Sociological

Analysis, v. 46, n. 1, p. 15, 1985.

34 Idem, p. 13, 1985.

35 LUHMANN, Niklas. Differentiation of Society. The Canadian Journal of Sociology,

v. 2, n. 1, p. 35, 1977.

36 LUHMANN, Niklas. Society, Meaning, Religion: Based on Self-Reference. Sociological

Analysis, v. 46, n. 1, p. 13, 1985.