• Nenhum resultado encontrado

ALÉM DO ESTADO NACIONAL NO LIMIAR DO SÉCULO

TRANSFORMAÇÃO SOCIAL

As cidades no século XIX ganham um espaço importante na transformação da sociedade global. Com um expressivo aumento popula- cional em cidades como Londres (já no século XVIII), Viena, Lisboa, Madri, Frankfurt, Roma, São Paulo, Buenos Aires, Nova Iorque, Rio de Janeiro etc. J. Osterhammel enfatiza que o século XIX fora marcado pela “memória organizada” com a criação de instituições de representação da memória como museus, arquivos públicos, bibliotecas nacionais, fotogra- fia, estatísticas sociais etc.36. A esses centros de memórias deve-se acres-

centar o surgimento de cafés, teatros, academias e círculos de leituras. Enquanto que no interior, no campo, nas vilas e vilarejos havia sempre uma ligação forte entre os indivíduos e a tradição e as cidades – com suas insti- tuições – propiciavam âmbitos de experimentação para além da tradição.

Esse abertura para o novo, ou seja, a experimentação além da tradição, pressupõe um processo de dissolução da corte real enquanto estrutra centralizada da forma de representação social e, com isso, um deslocamento para uma nova infraestrutura impessoal das cidades. J. Brewer descreve essa transformação social elucidando o surgimento da “high culture” e o descobrimento do gosto, que representam nada mais do que a difusão para um público maior por meio da instituições impessoais da cidade – galerias, cafés, museus – a cultura em constante transforma- ção que ficara, até então, aprisionada ao pequeno círculo da corte.

35 Para o conceito de técnicas culturais ver, entre outros, STEINHAUER, Fabian. Vom

Scheiden. Berlin, 2014. p. 11ss.

36 OSTERHAMMEL, Jürgen. Die Verwandlung der Welt. Eine Geschichte des 19.

Nesse contexto, a cidade pode ser entendida como meio37, onde

diferentes tipos de redes se interpõem, se cruzam e se sobrepõem. A ci- dade cria um campo no qual articula-se uma subjetividade assentada em instituições com tendências não centralizantes. O surgimento de profis- sões autônomas – não mais dependentes da corte –, profissionais liberais como o livreiro, editor, vendedores, intermediadores, músicos, artistas etc. é uma expressão dessa nova dimensão do novo. Com a urbanização acelerada, mais pessoas trabalhavam em indústrias, comércio, negócios, e serviços do que na agricultura. Essa nova dinâmica do século XIX é que difere a cidade moderna da cidade antiga.

Somente nesse contexto de uma estrutura descentralizada da ci- dade – frente à centralização da corte – que se pode falar em uma circula- ção reflexiva de interpretações de realidade, uma realidade coletiva difusa dentro da relação entre constituição da esfera pública e âmbito social concreto. Não só é característico o surgimento de estruturas impessoais na cidades, mas também – acima de tudo no século XIX – a maior cone- xão entre as cidades globais. As cidades passam a ser o ponto de cruza- mento ou entrelaçamento intenso de consumo, imigração em massa, de ideias etc. C. Bayly acentua crescente uniformização de diversas institui- ções sociais no século XIX como igrejas, cortes reais, sistemas de justiça e práticas corpóreas (“bodily practices”). Por outro lado, essa uniformiza- ção projeta um processo de hibridização na translação dessas práticas sociais, ou seja, criação de políticas híbridas, ideologias misturadas e formas de atividades econômicas complexas. A interdependência dos eventos globais se torna realidade nesse século.

Somente nesse contexto de autotransformação social e intensa interdependência é que se pode contemplar mudanças tão importantes dentro do direito como a difusão do Estado como pessoa jurídica pelo globo, surgimento do direito internacional enquanto disciplina acadêmica nos currículos das faculdades etc. Todas essas transformações contribuí- ram para a queda do ius publicum europaeum e sinalavam já para o nas- cimento do mundo moderno.

Se a queda dos ius publicum europaeum resultou na pluralidade de Estados Nacionais modernos globo afora, não tardou para uma nova onda de transformação social exigir das instituições sociais em geral – incluídas nela o direito – uma nova complexidade adequada de institui- ções. Inovações como estradas de ferro, telefonia e telégrafo, circulação

37 KITTLER, Friedrich A. Die Stadt ist ein Medium. In: GUMBRECHT, Hans U. (Org.).

Die Wahrheit der technischen Welt. Essays zur Genealogie der Gegenwart. Frankfurt am Main, 2013. p. 181 ss.

de jornais entre estados nacionais, fotografia etc. clamam por uma orga- nização social além dos estados nacionais. A era do “Direito dos Estados” acentuada nessa dinâmica dá sinais de uma necessidade de suplementação de organizações transestatais, onde novos problemas advindos do surgi- mento de novas técnicas extrapolam as estruturas criadas pelo Direito dos Estados como a proteção diplomática ou diplomacia tradicional. Questões decorrentes da relação entre direito e parâmetros universais técnicos para diversas áreas como trilhos de trens, circulação de energia, padronização de cartas etc. abrem caminho para a criação de uniões ou organizações administrativas ou de direito administrativo supranacionais para a orde- nação de temas que ultrapassam o direito estatal38. Com isso abre-se uma

nova era na forma de produção e reprodução do direito global: a era do “Direito das Organizações”.

6 REFERÊNCIAS

ANGHIE, Antony, Imperialism. Sovereignty and the Making of International Law. Cambridge, 2004.

ASSMANN, Aleida. Einführung in die Kulturwissenschaft. Grundbegriffe, Themen, Fragestellungen. Berlin, 2011. p. 116.

BALKE, Friedrich. Der Staat nach seinem Ende. Die Versuchung Carl Schmitt. Munique, 1996. p. 344 ss.

_____. Der Staat nach seinem Ende. Die Versuchung Carl Schmitt. Munique, 1996. BAYLY, Christoph. The Birth of the Modern 1780-1914. Global Connections and Comparisons. Oxford, 2004.

BLANNING, Tim. The Romantic Revolution. London, 2011.

BLUMENBERG, Hans. Die Legitimität der Neuzeit. Frankfurt am Main, 1988. p. 75 ss. Sigrid Weigel, Walter Benjamin. Frankfurt am Main, 2008.

BÖCKENFÖRDE, Ernst Wolfgang. Die Entstehung des Staates als Vorgang der Säkularisierung. In: Ders. Recht, Staat, Freiheit. Frankfurt am Main, 1991.

_____. Politische Theologie. In: TAUBES, Jacob (Org.). Der Fürst dieser Welt. Carl Schmitt und die Folgen. Munique, 1983.

HERMANN, Hans-Georg et al (Org.). Von den Leges Barbarorum bis zum ius barbarum des Nationalsozialismus. Festschrift für Hermann Nehlsen zum 70. Geburtstag, Köln. Weimar e Vienna, 2008.

KAHN, Victoria. The Future of Illusion. Political Theology and Early Modern Texts. London, 2014.

KANTOROWICZ, Ernst H. The King’s Two Bodies. Study in Mediaeval Political Theology, Princeton, 1997.

38 VEC, Milos. Recht und Normierung in der Industriellen Revolution. Neue Strukturen

der Normsetzung in Völkerrecht, staatlicher Gesetzgebung und gesellschaftlicher Selbstnormierung. Frankfurt am Main, 2006.

KITTLER, Friedrich A. Die Stadt ist ein Medium. In: GUMBRECHT, Hans U. (Org.). Die Wahrheit der technischen Welt. Essays zur Genealogie der Gegenwart. Frankfurt am Main, 2013.

KOSELLECK Reinhart. Das 18. Jahrhundert als Beginn der Neuzeit. In: Epochenschwelle und Epochenbewußtsein. Politik Hermeneutik XII. München, 1987. KOSELLECK, Reinhart. Einleitung zu Geschichtliche Grundbegriffe. In: BRUNNER, O.; CONZE, W.; KOSELLECK, R. (Org.). Stuttgart 1972, t. 1, XIII.

LEFORT, Claude. Permance of the Theologico-Political. In: VRIES, Hent de; SULLI- VAN Lawrence E. (Orgs.). Political Theologies. New York, 2001.

LETHEN, Helmut. Verhaltenslehren der Kälte. Frankfurt am Main, 1994. MEHRING, Reinhart. Carl Schmitt: Eine Biografie. Tübingen, 2010.

OSTERHAMMEL, Jürgen. Die Verwandlung der Welt. Eine Geschichte des 19. Jahrhunderts, C.H. Beck. München, 2011.

PALYI, M. (Hrsg.). Hauptprobleme der Soziologie. Erinnerungsgabe für Max Weber. Munique e Leipzig, 1922. t. 2.

POCOCK, J. G. A. The Machiavellian Moment. Florentine Political Thought and the Atlantic Republican Tradition. Princeton: Oxford University Press, 1975.

SCHLUCHTER, Wolfgang. Religion und Lebensführung. Frankfurt am Main, 1991. SCHMITT, Carl. Der Nomos der Erde im Völkerrecht des Jus Publicum Europaeum. Berlin, 1997.

_____. Theorie eines Partisanen. Zwischenbemerkung zum Begriff des Politischen. Berlin, 2006.

_____. Römischer Katholizismus und politische Form. Stuttgart, 1925. p. 31 ss.

_____. Völkerrechtliche Großraumordnung mit Interventionsverbot für raumfremde Mächte. Ein Beitrag zum Reichsbegriff im Völkerrecht. Berlin, 1991. SCHUPPERT, Gunnar Folke. Verflochtene Staatlichkeit. Globalisierung als Governance- Geschichte. Frankfurt am Main, 2014.

SCHWINN, Thomas. Differenzierung ohne Gesellschaft. Umstellung eines soziologischen Konzepts. Weilerswist, 2001, p. 154 ss.

SHEEHAN, Jonathan; WAHRMAN, Dror. Invisible Hands. Self-Organization and the Eighteenth Century. Chicago/London: Chicago University Press, 2015.

STEINHAUER, Fabian. Vom Scheiden. Berlin, 2014.

THOMA, Jan. Auctoritas legum non potest veritatem naturalem tollere. Rechtsfiktionen und Natur bei den Kommentatoren des Mittelalters. In: SCHIAVONE, Aldo. Ius. La invencion del derecho en Occidente. Cordoba, 2009.

VEC, Milos. Recht und Normierung in der Industriellen Revolution. Neue Strukturen der Normsetzung in Völkerrecht, staatlicher Gesetzgebung und gesellschaftlicher Selbstnormierung. Frankfurt am Main, 2006.

VESTING, Thomas. Medien des Rechts. Buchdruck. Weilerswist, 2013. ZIEGLER, Karl-Heinz. Völkerrechtliche Geschichte. Munique, 2007.

UMA LEITURA CONTEMPORÂNEA DA