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AINDA: AMPLIANDO A NOÇÃO DE ESTEREÓTIPO

Não acredito que a expressão “estudos da imagem” abarque a complexidade multifacetária da linguagem cinematográfica. A não ser, naturalmente, que o objetivo seja analisar especificamente determinadas imagens (fotogramas), a representação plástica de determinada coisa. Mas o fato é que a imagem pura e simples sequer se aproxima da especificidade da linguagem cinematográfica. O Cinema é imagem em movimento mais som mais palavra escrita e/ou falada, e essa especificidade torna necessário um tipo de aproximação mais ampla do que a ensejada pela simples categorização „estudos da imagem‟.

No mais das vezes, os estudos históricos tendem a analisar estereótipos de duas categorias: os verbais e os imagéticos. A proposta neste trabalho é buscar uma categoria diferente de estereótipos, os cinematográficos, que se apresentam numa forma audiovisual. Martine Joly já fez uma defesa da existência de estereótipos audiovisuais, que acredito estar condensada na seguinte assertiva:

no seguimento de determinados investigadores literários, nos propomos reconsiderar a noção de clichê e estereótipo, já não apenas como figuras imobilizadoras e modificadas, mas em primeiro lugar como modo de comunicação específico, como discurso social e individual, forçado por natureza a reativar modelos de aceitabilidade. Na nossa opinião, esta abordagem merece ser alargada ao audiovisual, mediante uma análise atenta da especificidade do estereótipo na TV (JOLY, 2002, p. 209).

A especificidade da linguagem cinematográfica é consideravelmente sublinhada na obra Audiovisão, em que Michel Chion desdobra o conceito criado por ele de que nossa percepção de um filme ou de um programa de TV está ligada à evocação de um sentido particular, em que estão unidos, de modo não comparável com outras experiências cotidianas, os sentidos da audição e da visão, de forma que não „vemos‟ um filme, mas o „audiovemos‟ (CHION, 2011). A importância do elemento sonoro na narrativa cinematográfica é muitas vezes negligenciada nos estudos históricos, e a ela este estudo pretende dedicar especial atenção. Por não ter encontrado definição mais adequada na literatura a respeito, chamarei simplesmente de estereótipos sonoros a presença marcante de elementos sonoros repetitivos nos filmes sobre África, como um elemento identificador crucial que não pode ser relegado a um segundo plano.

Recorrendo não só ao conceito de Audiovisão de M. Chion, mas também ao de Paisagem Sonora, expressão criada pelo teórico musical R. Murray Schaffer, pretendo estender as considerações sobre a relevância do processo de estereotipia de África para os

sons. O neologismo de Schaffer – soundscape no original em inglês, em analogia ao termo para paisagem naquele idioma, landscape, jogo impossível de traduzir para o português em uma única palavra – visa delimitar

qualquer campo de estudo acústico. Podemos referir-nos a uma composição musical, a um programa de rádio ou mesmo a um ambiente acústico como

paisagens sonoras. Podemos isolar um ambiente acústico como um campo

de estudo, do mesmo modo que podemos estudar as características de uma determinada paisagem (SCHAFFER, 2001, p. 23).

Enquanto a análise de Schaffer se atém primordialmente a ambientes „reais‟, seja a barulheira característica de um centro urbano ou algo sublime como o canto dos pássaros de um lugar específico, buscarei usar os recursos teóricos que ele disponibiliza para analisar a paisagem sonora interna dos filmes que se passam ou citam a África em suas narrativas. O som de tambores, por exemplo, é utilizado como elemento de identificação, a partir do qual o espectador se sente prontamente familiarizado com a África, como no exemplo da abertura de O rei leão. Nas trilhas sonoras de tais filmes é recorrente a presença de artistas tais como o sul africano Lebo M e o malinense Salif Keita, cujas músicas, a exemplo da que conduz a sequência de abertura de O rei leão, são caracteristicamente identificadas como “africanas”. Não convém subestimar importância da trilha sonora e da sonoplastia em um filme, a influência profunda e penetrante que elas podem exercer sobre o comportamento e o estado de espírito do espectador durante a sua execução (ou mesmo depois), e os usos que a indústria cinematográfica tem feito disso. Diz-se, por exemplo, que O exorcista perde praticamente toda sua célebre capacidade de causar medo se assistido com a função „mudo‟ ativada.

Como aponta de modo aguçado Todd Gitlin, a respeito do poder dos sons, “as instituições usam rotineiramente o som para orquestrar um sentimento coletivo, para “apor uma marca” ao espaço, explorando o fato de que podemos optar por não ver com muito mais facilidade do que não escutar” (żITLIN, 2003, p. 83). Podemos perceber a relevância das considerações de T. Gitlin se as deslocarmos da sociedade midiatizada em geral, que ele analisa, para o caráter comercial do cinema: “estados de espìrito tem valor monetário” e “estìmulos psicológicos podem ser cientificamente programados” (żITLIN, 2003, p. 85, 86). Se acontece de associarmos a imagem de uma determinada paisagem inconscientemente à África, essa reação pode ser potencializada pelos sons, tendo em vista que o ouvido discrimina menos do que o olho, sendo aqui, portanto, a utilização de metáforas auditivas e musicais objeto de atenção tanto quanto os estereótipos visuais.

Além disso, são-me caros dois conceitos, oriundos de escritos de dois historiadores brasileiros, que entendo como intimamente relacionados à ideia de estereótipo. Sendo desdobramentos dessa ideia central, pretendo utilizá-los no decorrer da dissertação. O primeiro é o de imagem canônica, apontado por Elias Tomé Saliba. Esse tipo de imagem constitui o que ele chama de “pontos de referência inconscientes sendo, portanto, decisivas em seus efeitos subliminares de identificação coletiva” (SALIBA, 2007, p. 88). Segundo ele, tais imagens podem ser também chamadas de “imagens coercitivas”, visto que estariam tão plenamente incorporadas em um imaginário coletivo que sua identificação seria praticamente instantânea, impondo uma determinada figura “reproduzida infinitamente em série, tão infinitamente repetitiva que não mais nos provocava nenhuma estranheza”, “não nos levava mais a distinguir, a comparar – em suma, não nos levava mais a pensar” (SALIBA, 2007, p. 88,89). É provável que fosse a esse tipo de imagem que Martine Joly se referia ao falar de “tudo aquilo que reconhecemos no tempo de um zapping, o tempo que demora a pressão do dedo sobre um botão, e que nos diz onde estamos”, constituindo um imenso e difuso “conjunto de imagens mediáticas memorizadas” (JOLY, 2002, p. 203).

O segundo conceito agregado a estereótipo é aquele a que me referi no início do capítulo, ao falar de O rei leão. Ele é trazido à tona por Eduardo França Paiva: são as figurações de memória. Em suas palavras, estas seriam

imagens de memória, aquelas que trazemos conosco, em nosso cotidiano, muitas vezes sem percebermos e que nem sempre têm uma representação plástica invariável. Por exemplo, nossas imagens de honestidade, de patriotismo, de dor, de fé, de sofrimento, de felicidade, entre tantas outras, estão associadas, quase sempre, a ideias e a representações que variam entre pessoas e grupos, assim como no tempo e no espaço (...). Elas também integram a base de formação e de sustentação do imaginário social. (PAIVA, 2004, p. 14).

A presença da palavra memória é importante nesse contexto, uma vez que remete a esse fator humano individual que é o modo como cada um conforma em si mesmo os estereótipos externos, pois “o estereótipo nos é transmitido com tal força e autoridade que pode parecer um fato biológico” (BOSI, 1977, p. 103), acrescentando contornos individuais ao fenômeno da memória discursiva. De certo modo, o conceito de figurações de memória parece apontar para o mecanismo que ativa e faz funcionar a identificação das imagens canônicas em cada pessoa. Seria, portanto, uma dimensão individualizada do funcionamento da engrenagem dos estereótipos, focada em um desdobramento específico, o visual, e configurando a maneira mais ou menos distorcida como cada pessoa constrói suas lembranças

no que diz respeito ao continente africano, por exemplo. Passemos agora, finalmente, à descrição dos grandes tropos de África encontrados no corpus fílmico estudado.