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ESTEREÓTIPOS DE ÁFRICA 1 – O TROPO DA INFERIORIDADE

O primeiro e mais evidente de todos os tropos sobre África, do qual decorrem os outros, é a atribuição de inferioridade nata que lhe é feita em uníssono por todos os filmes que lhe fazem referência. Mesmo que seja com a “melhor das intenções”, de denunciar determinada prática desumana ou de fazer um „registro histórico‟ de certo acontecimento relevante, o que desejo sublinhar aqui é que invariavelmente tais filmes recorrem a maneiras depreciativas e subalternizantes de descrição. A situação de território onde a ação de estrangeiros – leia-se euro-estadunidenses – pode ocorrer livre, numa eterna revivência do passado colonial, se torna inescapável em função de um eterno jogo de metáforas e tropos que a estigmatizam de uma ou de outra maneira (SHOHAT e STAM, 2006 p. 211). Deixemos que os filmes nos digam como fazem isso.

Falcão negro em perigo (Black hawk down, Ridley Scott, 2001) é um dos filmes que mais motivaram a escrita desta dissertação, em parte por ser tão gritantemente panfletário, e em parte por estigmatizar de modo tão contundente o continente africano. Difícil escolher outro filme para começar a falar do tropo da inferioridade africana quando se tem em mente uma sequência inesquecível desse filme para ilustrar o tema. Falcão negro em perigo é inspirado numa operação malsucedida do exército dos EUA em território somali, em 1993, fazendo parte, portanto, da tradição hollywoodiana de ganhar nas telas as guerras que seu país perde nos campos de batalha – vide Os boinas verdes e a cine-série Rambo, por exemplo. O tropo da inferioridade, onipresente na produção, aparece com destaque quando a presença de militares estrangeiros em território africano é legitimada, em um diálogo que precede a enxurrada de violência que caracteriza esse filme, uma vez que se trata de um „thriller de ação ininterrupta‟.

Nessa sequência, que mostra os soldados aquartelados e o suposto clima de companheirismo e descontração que permeia os momentos em que não estão em combate, um soldado lê um material não identificado, evidentemente explicativo sobre a cultura somali, e então fala para os demais que “se um somali mata outro somali, o clã dele fica devendo cem camelos ao clã do morto”. A admiração é geral, e entre comentários como “acho que tá faltando camelo pra pagar” e “eu não pagaria um camelo” (pela vida de um somali, obviamente), e ante a dúvida se a afirmação procede, um soldado diz, referindo-se ao protagonista encarnado por Josh Hartnett: “Pergunte ao sargento Eversmann, ele gosta dos somalis.” Dizer que alguém gosta dos somalis é aparentemente uma afirmação ofensiva no

universo diegético do filme, pois os outros perguntam, numa reação entre caçoada e sobressalto, ao sargento em questão: “Sargento, o senhor gosta dos somalis?!” A resposta evasiva do sargento, dizendo que “não é o caso de gostar deles ou de não gostar, eu respeito eles”, dá ensejo para a pergunta que traz à tona a fala do sargento que sublinha o paradigma da inferioridade. Recorrendo ao único meio que disponho para introduzir a narrativa cinematográfica no texto escrito, substituo imagens em movimento e sons pela escrita: “Olhe, o que vocês não se tocam é que o sargento ali é muito idealista. Acredita nessa missão até a raiz do cabelo, não é, sargento?” E temos então a emblemática resposta, o detalhe corroborativo: “Escutem, essas pessoas não tem trabalho, não tem emprego, nem comida e nem educação. Não tem nenhum futuro. Eu só acho que temos duas opções: ou a gente ajuda, ou senta e fica vendo o país se destruindo pela CNN.” Após essa „defesa‟ do povo somali, a conversa continua: “Não sei vocês, mas eu fui treinado para lutar. Foi treinado, sargento?” “Eu acho que fui treinado para fazer a diferença, Kurt.” “É como o homem disse, é um idealista”.

Os diálogos dessa sequência são bastante explícitos, mas, em todo caso, permita-me apontar o tropo da inferioridade gritando nessas falas. Em primeiro lugar, uma aura de exotismo e curiosidade pitoresca é lançada sobre as relações sociais, jurídicas e políticas africanas: a referência à organização em clãs e à prática „bizarra‟ de camelos serem utilizados como pagamento por homicídios obviamente contrasta com o ordenamento racional da sociedade de onde aqueles personagens são originários. O fato de o perpetrador do crime aparentemente não ser punido, mas sim o seu „clã‟, distancia ainda mais a suposta realidade africana do individualismo que caracteriza a „civilização ocidental‟. Um tom de sarcasmo e desprezo permeia toda a sequência, em que os soldados se indagam sobre as peculiaridades daquela gente pitoresca que obviamente não possui recursos intelectuais para cuidar dos próprios assuntos, e necessita da presença deles ali para colocar ordem na situação. É o tropo da inferioridade por meio da infantilização, não referida aqui a um indivíduo específico, mas a todo o povo. Esse tropo é deslocado, logo em seguida, para um personagem individual, o somali „bom‟ que está trabalhando como espião para as forças militares estadunidenses. Diante do acovardamento do espião de seguir diante com a missão, por medo de ser baleado, o comandante afirma pelo rádio que se ele não fizer o combinado “eu mesmo vou dar um tiro nele”, e que se ele não cumprir a tarefa não receberá o pagamento. Quando o espião leva adiante o plano, o comandante comenta sarcasticamente com seu staff na sala de comando que “o último informante deu um tiro na cabeça brincando de roleta russa em um bar”. Essa

informação se soma a muitas outras, nesse e em outros filmes, que estabelecem como característica intrínseca dos africanos uma incompetência sistemática. Em Falcão negro em perigo, em diversas ocasiões é feita caçoada da capacidade militar dos somalis, por exemplo: “eles têm péssima pontaria”, “cuidado com os somalis que atiram pedras”.

Como eu disse, os tropos sobre a África se interpenetram, e os fortes tons de inferioridade com que ela é pintada servem de gatilho para o próximo tropo, o da intervenção. Ora, crianças precisam ser tuteladas. A fala do ídolo juvenil Josh Hartnett/Eversmann explicita essa concatenação de modo estupendo, ao afirmar categoricamente que se essas pessoas não tem trabalho, não tem emprego, não tem comida nem educação e nem futuro, a lógica é que “nós”, que temos todas essas coisas, carregamos o responsabilidade de “ajudar”. O argumento do personagem prescreve que a presença de forças militares interventoras dentro das fronteiras de um país soberano é a única alternativa a ficar assistindo pela TV essas pessoas, que são em diversos aspectos inferiores, matarem-se umas as outras. E essa não é uma opção válida, pois ele foi treinado para „fazer a diferença‟.

Em Falcão negro em perigo a inferioridade africana é patente desde a sequência inicial. Nas longas cenas de combate, é interessante perceber como as baixas infligidas pelos somalis aos estadunidenses são sempre por meio de traição, de ardis, de modos sorrateiros e desonestos de combate, como emboscar e atirar pelas costas, enquanto os soldados dos EUA seguem rigidamente a regra de só atirar se em revide, e é sempre de modo triunfal e heroico que combatem, enquanto somalis morrem como moscas diante da sua artilharia de última geração. A marcante sequência inicial consiste numa longa contextualização histórica, feita pela apresentação de longas legendas explicativas, do evento retratado no filme. Enquanto letreiros vão informando que “anos de guerra civil entre clãs rivais causam fome em proporções épicas” e que “o mundo reage” “para restaurar a ordem”, vão sendo mostradas imagens desoladoras de corpos e pessoas desnutridas numa região desértica, castigada por rajadas de vento arenoso. A paisagem sonora que compõe a sequência de abertura, somando- se às legendas que falam de guerra e fome e às imagens de corpos num deserto, é caracteristicamente „africana‟. Com isso quero ressaltar que nos filmes que retratam a África os sons exercem papel fundamental, uma vez que o som que se pode grosseiramente classificar como de „tambores‟ serve de elemento de identificação, e o espectador se sente prontamente familiarizado; a África é sempre identificada com „sons primitivos‟, „sons ancestrais‟, „sons bárbaros‟, „brutos‟, „não lapidados‟ ou „não refinados‟. As cenas protagonizadas pelos euro-estadunidenses são invariavelmente compostas com a inserção de

uma paisagem sonora de sons de música sinfônica europeia e sons „amenos‟. Em Falcão negro em perigo, os militares estrangeiros são mostrados ao som de música moderna como Elvis Presley e Jimi Hendrix, – Voodoo child toca enquanto seus helicópteros decolam, numa sequência alternada que mostra “enquanto isso” os „rebeldes‟ somalis emoldurados por sons de tambores e vocalizações lamentosas, entrecortados por riffs de guitarra que sublinham a tensão dos preparativos deles para o combate. Essa mesma trilha sonora acompanha situações de suspense, medo e ameaça aos personagens estadunidenses durante o filme.

Essa guerra de sons, que seguramente é apreendida, mas não percebida, pela maioria dos espectadores, é a transfiguração máxima do tropo da inferioridade: a África é representada por sons considerados (dentro do nosso universo cultural regido pela memória discursiva eurocêntrica) „primitivos‟, que supostamente não exigem grandes recursos intelectuais para serem executados, enquanto os estrangeiros são representados por sofisticados sons „modernos‟, que denotam um suposto refinamento e capacidades „intelectuais‟ avançadas. A pecha de música „tradicional‟ sempre é utilizada em relação à musicalidade africana, como se todos os países do mundo não tivessem as suas próprias canções „tradicionais‟, e na África não existisse outro tipo de música. Essa descrição pode ser considerada um exagero, mas quero lembrar toda a questão que envolve a memória discursiva, já abordada. Muito embora aqui esteja sendo feita apenas a descrição dos tropos usados pelos filmes para contar a África, e a análise vá ser realizada adiante, é impossível não descrevê-los nos termos da memória discursiva, segundo a qual, na diegese fílmica, está colocado que à inferioridade dos somalis em outros aspectos correspondem os sons de tambores e cantos tradicionais, e à superioridade euro-estadunidense correspondem a guitarra elétrica e o piano de cauda. É através de tal memória introjetada que essa guerra de sons (presente não apenas em Falcão negro em perigo, mas na maioria dos filmes aqui analisados), conjuntamente com outros recursos descritivos, transmite a mensagem de suposta inferioridade intrínseca do continente africano. Desde o começo do filme, se não por outro recurso narrativo, a música nos faz saber quem são os „bandidos‟ e quem são os „mocinhos‟ do universo diegético, e indica do lado de quem devemos (na intenção dos realizadores) ficar.

Essas falas de „apresentação‟ da África, como o diálogo entre soldados antes do começo da „ação‟ em Falcão negro em perigo, são constantes, são um recurso (pobre, convenhamos) utilizado para situar o espectador na „realidade‟ africana. Eu chamaria de verdadeiros momentos didáticos, sequências encaixadas nos filmes muitas vezes aparentemente sem propósito algum para o desenvolvimento da narrativa ou a compreensão

da diegese, mas com uma às vezes explícita função pedagógica. Primitivo (Primeval, Michael Katleman, 2007) brinda o espectador com um exemplo notável de momento pedagógico, uma apresentação pedagógica da África. O filme narra a história de uma equipe de jornalistas estadunidenses que são enviados ao Burundi para fazer uma reportagem sobre um crocodilo gigantesco que há anos vem vitimando pessoas naquele país. Enquanto sobrevoam a vegetação exuberante da África em um pequeno avião, Aviva Masters (Brooke Langton), jornalista de quem partiu a iniciativa para o trabalho, e caracterizada como ingênua e fútil, comenta que o país é lindo. Então explode mais uma pista infinitesimal a corroborar o nosso tropo da inferioridade. O protagonista Tim Manfrey, interpretado por Dominic Purcell, astro de uma das séries da TV dos EUA mais bem sucedidas comercialmente, Prison Break, dispara acidez e dá uma „lição‟ de „realidade‟ na frivolidade de sua colega: “É lindo visto aqui de cima. Burundi é o país mais pobre do mundo, é o número um. Nos últimos quarenta anos estão em guerra civil entre hutus e tutsis. Você tem fome, doenças, terrorismo, corrupção, mas tirando isso é um paraíso.” A óbvia inferioridade com o que o país é descrito se estende à toda África, e pode-se dizer que serve apenas de entrada para um desfile de representações estigmatizadas do continente, confirmando em todos os aspectos a descrição de Manfrey/Purcell.

A simples sequência da chegada dos protagonistas ao aeroporto burundiense, irrelevante no que diz respeito ao tema central do filme, confirma em vários e sutis aspectos a afirmação de inferioridade feita pelo protagonista: nela vemos pessoas desesperadas sendo acuadas em uma parede, ameaçadas e revistadas por soldados armados; o funcionário público destacado para auxiliá-los tenta retardar o trabalho com trâmites burocráticos claramente corruptos, respondendo à solicitação de ajuda imediata que “isto é a África, cara. Nada acontece imediatamente”, mas suas intenções escusas são desmascaradas pelo jornalista que finge falar ao telefone e então informa ao funcionário que vai ter a ajuda que precisa no Sudão, fazendo-o voltar atrás em suas chantagens. O título do filme, de fato, já remete à descrição da África feita pelo protagonista, e logo a narrativa passa a traspor a suposta ameaça do primitivismo africano do reino animal para as relações humanas, pois os aspectos políticos da África, também mostrados como „primitivos‟, são misturam, quase imperceptivelmente, à trama. A presença, em um segundo plano narrativo, de soldados-mirins, “senhores da guerra”, execução sumária de opositores no meio do mato por decapitação, e outros elementos de uma polìtica „primitiva‟ correlatos, logo se tornam tão aterrorizantes quanto Gustav, o crocodilo assassino. Os estadunidenses se veem às voltas não apenas com o problema de capturar “a

máquina assassina mais perfeita da natureza”, mas de enfrentar o dilema ético de decidir se devem envolver-se com as questões locais. À exemplo do Sargento Eversmann, em Falcão Negro em Perigo, decidem não ficar de braços cruzados e deixar os africanos se matarem, e quando passam a intervir na política também precisam escapar da ira assassina de um tiranete local. Não há um momento no filme, praticamente, em que a inferioridade africana não esteja sendo ressaltada. Por exemplo, na afirmação do câmera da equipe, Steven Johnson (Orlando Jones), não por acaso um negro que exerce a função de personagem secundário ajudante do protagonista branco, quando, fugindo do crocodilo e dos „rebeldes‟ ao mesmo tempo, é vìtima de uma desventura após outra, e então exclama: “Eu odeio essa droga de África!”

Ora, nesses filmes o elemento “primitivo”, “ancestral”, “tradicional”, é fartamente alegorizado como sinônimo de inferior, de atrasado em relação aos „avanços‟ „ocidentais‟. Tanto a paisagem sonora como a propriamente dita, a visual, remetem a um primitivismo insuperável e, portanto à inferioridade. Momentos como a sequência da amputação de mãos e braços, em Diamante de sangue (Bloody Diamond, Edward Zwick, 2006), ou a amputação de seios, em Lágrimas do sol (Tears of the sun, Antoine Fuqua, 2003), revelam o primitivismo das práticas polìticas africanas, que não sabendo lidar de modo „democrático‟ com as diferenças, precisam reprimi-las brutalmente. A vida sob ameaça constante é um tema recorrente, mostrado como uma cotidianidade a que os africanos estão habituados e encaram com naturalidade, sendo também uma medida de inferioridade; esse tema é largamente utilizado em Primitivo, e exemplificado nas pessoas que tomam banho no rio Ruzizi mesmo sabendo que o crocodilo Gustav, na narrativa fílmica, habita aquelas águas. Essa narrativa mostra os habitantes da África como pessoas primitivas, do ponto de vista dos interlocutores estrangeiros, ao ponto de colocar um pequeno cão em uma balsa no rio como oferenda para Gustav, mas tal costume é prontamente quebrado por uma revoltada Aviva Masters, que tira o cãozinho da água: “eu respeito a tradição, mas não vou deixar ele lá!”. Essa ameaça constante paira em Falcão negro em perigo tão intensamente advinda das circunstâncias político-militares, que parece desnecessária a afirmação de um personagem, ao sobrevoarem de helicóptero uma praia, de que “a água está infestada de tubarões”. É o processo inverso de Primitivo, onde a desgraça natural ganha o primeiro plano, mas é essencialmente o tropo da inferioridade gritando mais uma vez que em território africano nunca se está seguro. Outros filmes exploram essa vertente da inferioridade decorrente da selvageria, e um bom exemplo é Caçados! (Prey, Darrel Roodt, 2007), em que uma família de turistas estadunidenses passando férias na África é aterrorizada por leões assassinos.

O último rei da Escócia (The last king of Scotland, Kevin McDonald, 2006) (que apesar de alegar ser “inspirado em pessoas e eventos reais” logo no primeiro minuto, tem como protagonista um personagem fictício), pode parecer, a um primeiro contato, quebrar essa repetição de tropos negativos. Apenas parece. O filme começa na Europa, com a formatura de um jovem médico escocês fictício que decide fugir do tédio familiar burguês aventurando-se como médico voluntário em África. É através de seus olhos e de sua perspectiva, obviamente de estranhamento e fascinação com o exotismo, que o continente africano é apresentado. Não é grande a surpresa de que a paisagem seja constituída de imagens canônicas sobre a África, como estradas poeirentas, ônibus velhos apinhados de pessoas negras “entre cabras e muito suor”, veículos de guerra ocupados por militares e notícias de um golpe militar, tudo ao som dos indefectíveis tambores. Uma pista infinitesimal do tropo da inferioridade está em uma das pequenas cenas que compõem a sequência que acompanha sua viagem de chegada à África, enquanto passam os créditos do filme, quando ele chama a atenção por ser o único passageiro branco do ônibus e acaba indo para a cama com uma passageira negra em uma das paradas. Na cena, durante o ato sexual, o médico Nicholas Garrigan (James McAvoy) grita triunfante para o teto: “Sou um oficial médico no exterior!”.

A pretensão do filme é contar a história do pós-ascensão ao poder de Idi Amin Dada e do regime que esse militar de carreira implantou em Uganda. Em sua primeira metade, aproximadamente, o filme tenta apresentar um lado positivo da África, mesmo estando embutida a noção de inferioridade óbvia inferida da necessidade de médicos estrangeiros para atender a população ugandense, por exemplo. A essa inferioridade estrutural presumível são acrescentadas outras, como a inferioridade cultural na afirmação do médico a quem Nicholas vai ajudar de que, apesar de seus esforços, “80% da população local ainda prefere os curandeiros”, o que o faz pensar que “talvez tudo seja em vão”, e a breve cena em que Nicholas observa um desses rituais mágicos.

O lado pretensamente positivo vem do contato de Nicholas com o próprio Idi Amin, cuja interpretação deu a Forest Whitaker o prêmio da academia de cinema de Hollywood de melhor ator em 2007. Amin é mostrado como um político excêntrico, genial e fascinante, que defende apaixonadamente a África e tem hábitos pessoais peculiares, e essa personalidade ganha a admiração incondicional de Nicholas. A decepção deste com o trabalho de médico no posto de saúde, atendendo a população negra pobre, é realçada para reforçar o motivo de ele aceitar o convite de Amin para ser seu médico particular – a cena em que ele observa a fila de

pessoas pobres doentes esperando atendimento e expira pelo canto da boca fazendo uma careta demonstra seu descontentamento. Já Amin parece representar outra África, longe do tédio modorrento dos doentes da aldeia. O realce de uma África positiva é demonstrado na sequência de um jantar de luxo para autoridades políticas, quando Amin profere um discurso em que, com a interrupção constante de entusiásticos aplausos, afirma o seguinte:

“A civilização iniciou-se aqui. Aqui na África. Foi daqui que os gregos roubaram sua filosofia e os árabes levaram sua medicina. Nós, ugandenses, devemos nos orgulhar mais dessa história. Nós somos uma nação africana independente. Vivemos em paz e temos poder econômico. Poder negro. Exatamente como vocês [dirigindo-se aos europeus presentes] imaginavam não ser possível. Agora nós vamos jantar. O cardápio é da nossa culinária local, comida especial. E nenhum prato será de carne humana.”

O poder de concisão histórica de sequências como essa, que resumem muitas páginas de livros sobre a história africana, é um dos pontos fortes desse filme. Mas a afirmação de que O último rei da Escócia apenas parece ir contra as representações negativas da África se deve principalmente ao fato de que as maravilhas do país, apresentadas na primeira metade do filme, são sistematicamente desconstruídas na segunda. Todas as frases „positivas‟ sobre a África ditas por Idi Amin soam como pantomima ou como piada de mal gosto a partir da segunda metade do filme, quando passamos a descobrir aos poucos, junto com o obtuso „doutor‟ żarrigan, a “verdadeira” face de Amin: as acusações dos jornais de que Amin pratica canibalismo, comendo a carne dos perseguidos políticos mortos, inevitavelmente soam como