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Quero aqui apresentar uma argumentação em favor de uma metodologia de análise dos filmes que vá além do estudo dos estereótipos, mas sem deixar de levar em conta a importância destes. Em primeiro lugar, ressaltarei a relevância do estudo focado nos estereótipos, em seguida suas limitações e, em virtude dessas, a minha opção metodológica. Deixar nítido o terreno onde pisaremos na discussão sobre a imagem de África na produção cinematográfica hegemônica do século XXI é fundamental para que essa discussão seja o mais frutuosa possível.

Iniciei esse capítulo remetendo à sequência inicial de O rei leão, cuja representação de África remete a uma figuração de memória minha. Mas devo remeter a filmes que dizem respeito ao recorte cronológico proposto pela pesquisa; portanto, o farei em relação à sequência inicial de um filme também destinado ao público infantil, e que provavelmente marcará as figurações de memória que muitas crianças carregarão sobre o continente africano: Madagascar (Madagascar, Eric Darnell e Tom McGrath, 2005). A abertura desse filme remete aos mesmos elementos de O rei leão: um sol enorme e laranja e uma „selva‟, a vida selvagem, o contato com a natureza, a paisagem, os sons. Uma zebra corta a paisagem numa paródia da imagem clássica de Tarzan gritando enquanto cruza a floresta balançando num cipó. Enquanto a zebra corre livre pela paisagem e animais fazem coreografias à sua volta, um leão aparece de trás de uma moita, ameaçador, mas, ao invés de atacar a zebra, dá-lhe um susto que a acorda do devaneio. Tudo não passava da imaginação de Marty, uma zebra do zoológico da cidade de Nova Iorque, onde tem como companheiros inseparáveis um leão, chamado Alex, além de uma girafa macho, Mellman, e de um hipopótamo fêmea, Glória. Todos “domesticados”, com gírias e hábitos urbanos e característicos da cultura estadunidense, que contrastam com o anseio de Marty por conhecer „a natureza‟, que será o motivo condutor do filme. Não há dúvidas quanto à intencionalidade do filme em „pregar uma peça‟ no espectador, dando a entender que o filme se passará em África desde o começo, nem quanto ao processo de reconhecimento por parte dos espectadores, o mesmo que citei antes em relação a O rei leão: certamente ninguém acha que o filme se passará na China. Sem saber exatamente por que, sabemos automaticamente que o que estamos vendo e ouvindo na tela se passa em território africano.

Esse processo de reconhecimento automático a que venho me referindo é o mesmo que ocorre quando identificamos uma imagem de mulheres seminuas sambando e usando

plumas na cabeça com uma festa chamada carnaval, comemorada no Brasil; ou então uma imagem de mulheres seminuas dançando a „dança do ventre‟ com véus no rosto com algo que chamamos invariavelmente de harém e o situamos em uma região indistinta que chamamos de Arábia. Com esses exemplos, quero afirmar, desde já, que não considero o continente africano uma „vìtima‟ isolada da ação de estereótipos negativos. Como dito anteriormente, a construção de estereótipos está relacionada com a própria inteligibilidade das realidades simbólicas, sendo inerente à condição intelectual humana.

Porém, a força de estereótipos negativos é de difícil mensuração, em virtude de suas contrapartidas nas realidades sociais que lhes dão sustentação. O preconceito talvez possa ser citado como consequência primária dos estereótipos negativos, e as ações que ele provoca, tais como a intolerância para com o „Outro‟ que é vìtima dos estereótipos negativos, não se se justificam sob aspecto algum. O combate a essas ações, que, apesar de terem suas raízes no universo simbólico, são extremamente nocivas no mundo „real‟, tem que passar, necessariamente, pela desconstrução dos estereótipos que lhe dão a força para existirem. Como são consequências, é preciso combater o que as causa. Puderam ser vistas nas últimas décadas diversas frentes de batalha, no campo da cultura, que iniciaram e têm tido relativo sucesso na desconstrução de estereótipos negativos contra diversos setores da sociedade, e como consequência tiveram participação decisiva nos rumos das práticas sociais em relação aos grupos submetidos a tais estereótipos. Um exemplo, que talvez seja suficientemente grandioso nesse sentido, é a luta dos movimentos negros estadunidenses em busca de direitos civis. Como é notório, já avançando na segunda metade do século XX a população negra dos Estados Unidos era alvo de estereótipos degradantes, como o da inferioridade intelectual e estética em relação aos „brancos‟. O combate a tais clichês mentirosos foi fundamental para as conquistas políticas de todos os negros que vivem sob a desigual democracia daquele país: pode-se conjecturar que se Stokely Carmichael não tivesse proclamado que “nós somos negros, nossos narizes são largos, nossos lábios são grossos, nossos cabelos são duros, e nós somos lindos!”, trazendo à agenda polìtica daquele paìs as noções de „poder negro‟ e „beleza negra‟, talvez um homem negro não tivesse sido eleito para a presidência dos EUA menos de meio século depois. Ou, exemplificando com um produto cultural, é difícil crer que, sem os esforços desmistificadores citados, a mesma Disney que produziu Branca de neve e os sete anões (Snow White and the seven dwarfs, David Hand,1937), cujo ideal de beleza pressupõe a alvura da pele, tivesse produzido, 72 anos depois, A princesa e o sapo (The princess and the frog, Ron Clements e John Musker, 2009), animação que tem como heroína uma jovem negra.

Desse modo, a análise de estereótipos sobre o continente africano, a que se propõe este estudo, não implica num entendimento de que é ele o único aspecto da nossa realidade vítima de estereótipos negativos e, portanto, de preconceitos, mas se configura simplesmente como uma opção e como um recorte, com intenções políticas definidas. O poder do cinema, enquanto construtor e consolidador de estereótipos negativos, posto que veículo privilegiado de discursos políticos, é muitas vezes subestimado. W. Lippmann lembra a tendência que existe, secularmente, de que as características atribuídas a certos grupos na ficção sejam transferidos para a realidade, e a esse respeito assevera:

Não pode haver dúvida de que o cinema esteja construindo constantemente imagens que são, depois, evocadas pelas palavras que as pessoas leem nos jornais. Em toda a experiência da raça, ainda não houve ajuda à visualização comparável à do cinema (LIPPMANN, 1972, p. 157. Grifo meu).

Muito ainda será dito a esse respeito nesta dissertação. É muito simplista atribuir os „avanços‟ citados no que diz respeito à imagem dos negros estadunidenses a uma „evolução‟ ou „progresso‟ do gênero humano como um todo. É como as falas que podemos ouvir cotidianamente de que em pleno século XXI não há mais lugar para preconceitos, sexismo, racismo, homofobia etc., que a humanidade já „superou‟ tais coisas, e que a existência de tais elementos se deve unicamente ao atraso de indivíduos específicos. Enquanto historiador, e principalmente como humanista, é difícil não reconhecer a falácia desse argumento, bastando citar alguns exemplos das permanências (e mesmo do perigo de revivência institucional) desses preconceitos, para deitá-lo por terra. Se não fosse a luta histórica dos movimentos negros, feministas e pelos direitos dos homossexuais, certamente não teria havido „avanço‟ algum, e o fato de esses „avanços‟ estarem sob constante ameaça mostra a necessidade, em contrapartida, de constante vigilância por parte desses grupos. O que quero dizer é que não se há de cair do céu a desmistificação do continente africano, se faz necessária uma luta intelectual consciente e consistente nesse respeito; este trabalho se insere num contexto maior de esforço nessa direção.

Assim, contribuindo no esforço de desmistificação de grupos específicos, estudos de estereótipos negativos como o de David Bogle, no livro (ainda não traduzido para o português) Toms, Coons, Mulattoes, Mammies, and Bucks: an interpretive history of Blacks in

American films19, tem o mérito de explicitar as maneiras pelas quais estes estereótipos negativos são enxertados na indústria cinematográfica de maneira quase imperceptível. Em seu estudo, Bogle demonstra que vários estereótipos racistas preexistentes foram reutilizados nas representações de negros no cinema hollywoodiano,20 remetendo cada um desses estereótipos a um personagem-padrão evocado no título de seu livro: Tom, o empregado servil; Coon, o negro ingênuo; o “mulato trágico” ou demonizado; a Mammy (“figura feminina da empregada gorda, falante, mas de bom coração”); e Buck, o negro brutal e hipersexualizado (SHOHAT e STAM, 2006, p. 286). De abordagens como essa, centradas na análise de estereótipos e de “constelações repetidas e perniciosas de traços de personalidade”, Ella Shohat e Robert Stam apontam inegáveis méritos, pois elas

têm feito uma contribuição indispensável ao:

1. Revelar padrões opressivos de preconceito no que à primeira vista poderia parecer um fenômeno aleatório e esporádico;

2. Enfatizar a devastação psíquica infligida através dos retratos sistematicamente negativos sobre suas vítimas, seja através da internalização do estereótipo, seja através dos efeitos negativos de sua disseminação; e 3. Assinalar a funcionalidade social dos estereótipos, demonstrando que eles não constituem erros de percepção, mas uma forma de controle social, exemplos do que Alice Walker chamou de “prisões de imagens” (SHOHAT e STAM, 2006, p. 289).

Já vimos que pode ser feita uma distinção entre estereótipo „puro e simples‟, que preenche os espaços entre o conhecido e o desconhecido, e o estereótipo explicitamente, propositalmente ou não, negativo, assim como os méritos de estudos com foco no segundo tipo. Agora se faz necessário tecer algumas considerações sobre as limitações de uma abordagem calcada na análise unicamente dos estereótipos. Uma primeira objeção que se poderia fazer remete à inegável existência de características negativas na África (atendo-me ao objeto da dissertação), por exemplo. Qual o problema em os filmes retratarem as guerras, a fome, a corrupção e a vida selvagem na África, se essas coisas de fato existem? Deveríamos todos começar a procurar ou inventar coisas boas na África para serem retratadas? Seria o caso de buscar ou militar a favor da construção de imagens artificialmente positivas sobre o

19 Disponível para consulta parcial no site Google Livros, onde pode ser encontrado no seguinte link:

http://books.google.com.br/books?id=Sz7K1c9QSoMC&printsec=frontcover&dq=Toms,+coons,+mulattoes,+m ammies,+and+bucks&hl=pt-BR&ei=-

Q5UTp63BZDBtgf11ejdBQ&sa=X&oi=book_result&ct=result&resnum=1&ved=0CCoQ6AEwAA#v=onepage &q&f=false (Acesso em 20/08/2011)

20 Ella Shohat e Robert Stam citam diversos outros estudiosos, cujas obras também em sua maioria não estão

traduzidas para o português, que estudam os estereótipos dessa mesma perspectiva, entre eles Daniel Leab, James Snead, Jim Pines, Jacquie Jones, Pearl Bowser, Clyde Taylor e Thomas Cripps (SHOHAT e STAM, 2006, p. 286).

continente africano? A resposta para todas essas perguntas parece indicar que se os africanos pudessem retratar a si mesmos (como se eles não pudessem e o fizessem), a imagem da África seria muito diferente.

Mas essa perspectiva é enganosa, e esse engano parte de um entendimento errôneo da natureza e poder do estereótipo. Elucidando a questão, Shohat e Stam sentenciam a respeito da relação entre controle da representação e produção de “imagens positivas”: “filmes africanos como Laafi (1991) e Finzan (1989) não oferecem imagens positivas da sociedade africana, mas perspectivas africanas críticas sobre sua própria sociedade” (SHOHAT e STAM, 2006, p. 297). Ora, lembremo-nos do Brasil. O crescimento da violência urbana em nosso país, infelizmente, é um fato. Impossível simplesmente ignorá-lo. Quando uma representação estrangeira e estereotipada dessa violência veio à tona, no filme Turistas (Turistas, John Stockwell, 2006), que mostra jovens „mochileiros‟ estadunidenses às voltas com exploração sexual, favelas, assaltos, sequestro e comércio ilegal de órgãos humanos numa viagem turística ao Brasil, as reações foram diversas, mas quase que totalmente negativas. Foi expresso medo, por exemplo, de que o fluxo de turistas estrangeiros para o Brasil diminuísse em função do retrato grotescamente estereotipado feito pelo filme. O mesmo se deu em relação ao polemizado episódio Blame it on Lisa (2002), da série animada Os Simpsons, em que o Brasil, especialmente o Rio de Janeiro, é representado de forma caricatural (o personagem Homer Simpson é sequestrado, há macacos e cobras pelas ruas, programas infantis sexualizados na TV etc.), inclusive com tomadas de posição de autoridades governamentais contra o desenho e o canal de televisão que o veicula. Porém, representações dessa mesma violência em filmes como Tropa de elite (José Padilha, 2007) ou Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2002) são objeto de culto, e o fato de receberem indicações para prestigiosos prêmios internacionais não causa nenhum temor parecido com aquele causado por Turistas ou pelo episódio citado de Os Simpsons. A diferença reside no fato de que aqueles conduzem, ou intencionam conduzir, a uma reflexão crítica sobre o tema, ao contrário destes.

Centrar a análise unicamente nos estereótipos pode promover o risco de individualizar e moralizar o problema. Vejamos rapidamente um exemplo de discussão pública contemporânea que pode evidenciar essa armadilha teórica: as acusações de homofobia e racismo feitas contra o deputado federal Jair Bolsonaro depois de uma polêmica entrevista concedida por ele a um canal de TV em março de 2011, onde fez afirmações consideradas

ofensivas por diversas organizações de defesa dos direitos humanos21. Acusado de quebra de decoro parlamentar, sua defesa pública incluiu a alegação de que o irmão de sua esposa é negro e de que ele tem entre seu pessoal funcionários homossexuais. Acusações em termos pessoais e defesa em termos pessoais caracterizaram todo o processo, do qual o deputado acabou absolvido. A grande oportunidade perdida nesse episódio foi o que Shohat e Stam chamam de uma pedagogia anti-racista, e no caso anti-homofóbica, também: uma questão que é largamente política e social, que envolve todo o conjunto da sociedade brasileira, foi ideologicamente reduzida a um debate sobre a ética pessoal de um único indivíduo. O sensacionalismo midiático que permeou a cobertura televisiva do episódio, ao dar atenção quase que exclusivamente à moralidade individual, e quase nada discutir acerca das configurações de poder que engendraram as afirmações alegadamente racistas e homofóbicas do político, repetiu o que esses autores chamam de “premissa oculta da análise do estereótipo”: o individualismo. Na análise centrada nos estereótipos, o ponto de referência é um personagem individual, ao invés das categorias sociais mais amplas em que ele está inserido – “raça”, classe, gênero, nação, orientação sexual etc. (cf. SHOHAT e STAM, 2006, p. 293). No caso da análise de um filme, pode-se acabar conjecturando a respeito da moralidade de um personagem, um indivíduo que sequer existe, e perder de vista os elementos gerais mais relevantes apontados por Shohat e Stam. Esse individualismo, que caracteriza a análise centrada nos estereótipos, faz com que tais estudos busquem estabelecer uma essência, tentando simplificar, enquadrar, “tipificar” os estereótipos. O exemplo do livro de D. Bogle, independentemente de seus méritos, demostra isso claramente: ele estabelece cinco tipos de estereótipos negativos que seriam modelo de todas as representações negativas dos negros no cinema hollywoodiano, e busca enquadrar todos os personagens negros do cinema em algum deles. Bogle pode ter realizado essa operação com maestria, mas esse tipo de análise ignora o fato de que, nas palavras de H. Bhabha,

o estereótipo é um modo de representação complexo, ambivalente e contraditório, ansioso na mesma proporção em que é afirmativo, exigindo não apenas que ampliemos nossos objetivos críticos e políticos, mas que mudemos o próprio objeto da análise (BHABHA, 1998, p. 110).

21A citada entrevista foi concedida pelo deputado ao quadro “O povo quer saber”, do programa humorìstico

“Custe o Que Custar”, da Rede Bandeirantes de Televisão, em 28 de março de 2011. Segundo notìcia no site da própria emissora, durante a entrevista, “o deputado foi perguntado pela cantora Preta Gil qual seria sua reação caso seu filho se apaixonasse por uma negra e respondeu que não “corria risco” porque os filhos foram “muito bem educados” e não viveram “em ambiente de promiscuidade”, como o dela. Também declarou que não participaria de uma parada gay porque tal evento “promove os maus costumes”. “Acredito em Deus, tenho uma famìlia, e a famìlia tem que ser preservada a qualquer custo, senão a nação simplesmente ruirá”, completou.” Fonte: www.band.com.br/noticias/brasil/noticia/?id=100000417073 Acessado em 04/02/2012.

Entre as muitas consequências teóricas e políticas de não se levar em conta a complexidade que H. Bhabha aponta no estereótipo, salta aos olhos em primeiro lugar a perda de sua dimensão contraditória e historicamente instável. As tentativas de aprisionar numa jaula conceitual um estereótipo cinematográfico de Hollywood sobre o que seria a maneira “errada” de se vestir, por exemplo, se perderiam entre os filmes que ridicularizam e/ou criticam a falta de roupa dos indígenas de vários continentes e aqueles que ridicularizam e/ou criticam o excesso de roupas das mulheres árabes/muçulmanas (cf. SHOHAT e STAM, 2006, p. 290). Uma abordagem que conte com a existência (ou, não a encontrando, tente estabelecê- la) de um padrão fixo de coerência para os regimes de estereotipias, de uma essência que os caracterize, “acaba gerando uma certa a-historicidade: a análise tende a ser estática, não permite mutações, metamorfoses, mudanças de sinal, alteração das funções e ignora a instabilidade histórica dos estereótipos” (SHOHAT e STAM, 2006, p. 289). Como no exemplo do livro de D. Bogle, há presente o risco de se forçar a acomodação do objeto de estudo na categoria que se estabeleceu como premissa, “levando a um tipo de simplificação reducionista que reproduz justamente o essencialismo que deveria ser combatido” (SHOHAT e STAM, 2006, p. 289).

Em segundo lugar, a preocupação exclusiva com a questão de imagens positivas versus imagens negativas, focando em personagens e situações individualizadas, ao invés de estruturas sociais e políticas amplas, acaba por lançar indiretamente sobre a parte oprimida e estereotipada a responsabilidade pela sua própria representação negativa. Em termos simples, o argumento oculto que essa abordagem fornece para a parte que constrói o estereótipo negativo é uma mensagem do tipo “se quiser que eu mostre seu lado bom, seja bom”. Ou seja, supostamente não haveria nenhuma subjetividade em se mostrar a “selvageria” da África, pois o estereótipo criado em torno disso seria decorrente da existência objetiva dessa “selvageria” naquele continente. Essa limitação é ampliada ainda se levarmos em conta a questão da relatividade do que vem a ser “positivo” e “negativo” e da própria noção de moralidade. Além disso, mas diretamente ligada a essa transferência de responsabilidade, há a questão da função, que é ignorada pela análise centrada nos estereótipos. Determinada imagem “positiva” pode ocupar uma função subalternizada em um quadro mais amplo, reforçando, assim, um preconceito. Em um filme sobre a África, a imagem “positiva” de um “nativo” geralmente acarreta o fato de que ele foi cooptado para a causa expansionista europeia, por exemplo. Assim, o fato de um personagem africano não estar caracteristicamente estereotipado como um “selvagem” membro de uma tribo de canibais não implica, necessariamente, numa quebra

do paradigma geral de inferioridade atribuído pelo cinema hegemônico à África e aos africanos.

Por fim, e esta não tenciona ser uma lista exaustiva das limitações da abordagem centrada nos estereótipos, cabe lembrar que “os procedimentos eurocêntricos podem caracterizar fenômenos culturais complexos como práticas grotescas sem utilizar estereótipos” (SHOHAT e STAM, 2006, p. 295). Isto é, se for entendido que a única maneira de se combater o preconceito é isolando e destruindo estereótipos negativos, muita coisa certamente vai escapar a esse filtro. Uma instituição social, uma prática cultural, uma região geográfica ou uma característica histórica é passível de um retrato preconceituoso e ofensivo sem que obrigatoriamente hajam personagens ou situações estereotipadas na narrativa. Nas palavras de Shohat e Stam,

A mimese problemática de muitos filmes de Hollywood que lidam com o Terceiro Mundo (...) tem menos a ver com os estereótipos em si e mais com a ignorância tendenciosa do discurso colonialista. As instituições sociais e práticas culturais de um povo podem ser aviltadas sem que estereótipos negativos sejam mobilizados (SHOHAT e STAM, 2006, p. 293).

Tendo isso em vista, concordo com H. Bhabha quando afirma que, para além dos estereótipos, “o que precisa ser questionado é o modo de representação da alteridade” (BHABHA, 1998, p. 107). Recorrendo, mais uma vez, a Shohat e Stam, acredito que “uma