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O MINISTÉRIO DA CURIOSIDADE EUROPEIA (OU: A ‘PARTILHA DA ÁFRICA’ REALMENTE ACONTECEU? II)

A intrepidez de um grupo de homens europeus do início da era moderna autocognominados exploradores, os pioneiros na expansão do sistema-mundo capitalista para fora da Europa, pôs em curso um processo paradoxal em que o seu propósito original, aumentar as fronteiras do mundo conhecido, se converteu na realidade em sua diminuição, abolindo as distâncias. Como pondera Hanna Arendt, “nada que possa ser medido pode permanecer imenso; toda medição reúne pontos distantes e, portanto, estabelece proximidade onde antes predominava a distância” (ARENDT, 2010, p. 312). De maneira que, na era moderna, o que fora considerado por homens como o filósofo francês Michel de Montaigne, na década de 1580, a “descoberta de um paìs infinito” (as Américas), chegando a afirmar que não se podia “garantir que no futuro não se faça outra” descoberta semelhante (MONTAIGNE, 2009, p. 45), passou a fazer parte de uma cotidianidade; o mundo deixou de ser um mistério para o homem europeu e passou a ser uma bola, onde qualquer ponto do espaço terrestre poderia ser atingido em uma parcela insignificante de uma vida humana, do ponto de vista temporal: “o mundo já foi grande”, afirma Júlio Verne em 1874 pela boca de Phileas Fogg, aquele excêntrico personagem que aposta uma fortuna na possibilidade de se dar a volta ao mundo em apenas oitenta dias, e vence (VERNE, 2006, p. 21).

Os viajantes que tornaram isso possível eram membros dos mais variegados estratos da fauna humana europeia, e são figuras centrais na constituição da visão do Outro eurocêntrica, sendo incontestavelmente os portugueses os pioneiros nesse processo. Como afirma A.J.R. Russel-Wood, as viagens de exploração portuguesas, iniciadas em 1419, configuraram “um esforço prolongado no tempo, mantido por mais de um século”, atingiram “todos os continentes à excepção da Antártida e, possivelmente, da Austrália”, fizeram com que os portugueses se confrontassem “com uma grande diversidade de regimes polìticos e de práticas comerciais, bem como todas as principais religiões”, e fizeram com que os portugueses fossem “protagonistas de uma série de “encontros” (...), durante mais de um século, em África, na Ásia e na América” (RUSSEL-WOOD, 1998, pp. 21,22). Foram os portugueses os primeiros a contar o mundo para a Europa moderna, tomando como referência em suas descrições todos os padrões que a racionalidade europeia desenvolvia para ordenar o mundo. Mas com o papel cada vez menos relevante de Portugal na expansão do sistema-

mundo moderno, os viajantes dos países líderes dessa expansão ocuparão paulatinamente o lugar dos portugueses na descrição do mundo para o europeu.

Eu recuso usar o termo “exploradores” por pressentir que há algo de elogioso em tal classificação, como define Felipe Fernández-Armesto: “os viajantes se autodenominam exploradores quando pensam pertencer a uma cultura superior à do povo entre o qual estão viajando” (ŻERNÁNDEZ-ARMESTO, 2000, p. 28). Esses viajantes, mais do que homens, foram uma função: foram os olhos do império, como M.L. Pratt os nomeia no estudo que fez dos seus relatos. Relatos de viagem são produzidos constantemente durante todo o processo de expansão do sistema-mundo moderno, mas o século XIX representa o auge desse gênero de literatura. Nesse século, vai se consolidar uma “vìvida retórica imperial” dos viajantes, que passam a descrever as “descobertas” geográficas que faziam como “vitórias” inglesas, ou de seus respectivos países, e incluíam assim a população em geral – para quem não faria a menor diferença saber onde diabos fica a nascente do Nilo – no empreendimento imperialista (PRATT, 1999, p. 339,340).

Essa retórica é tão poderosa que é adotada por uma gama de escritores, literatos que farão uso dos relatos dos viajantes como fonte para empolgantes aventuras de grande apelo popular nos últimos anos do século XIX e no começo do século XX, como demonstram as citações de alguns deles no início deste capítulo. Homens que participaram em pessoa do empreendimento colonial, como o anglo-polonês Joseph Conrad, exercem uma autoridade narrativa similar à de outros que nunca colocaram sequer um dos pés em solo africano, como o estadunidense Edgar Rice Burroughs, que é ironicamente o responsável pela imagem mais solidificada do continente: a casa de Tarzan, o “detestável ìcone colonialista que assinala, metaforicamente, a suposta incapacidade dos povos africanos de se governarem e de serem senhores do próprio destino”, nas palavras de Serrano e Waldman, uma vez que “Tarzan simboliza o homem branco que não sucumbe à selva e cuja índole o transforma no senhor do meio natural em que vive” (SERRANO & WALDMAN, 2997, p 207). Tarzan, que é o segundo personagem mais utilizado em filmes na história do cinema, atrás apenas do conde Drácula. Cinema, indústria que manteve em uso a retórica imperialista nas descrições que fez da África ao longo do século XX e a trouxe para o século XXI. Detenhamo-nos um pouco nas descrições imperialistas, a fim de poder ter um parâmetro de comparação com a imagem da África apresentada pelos filmes contemporâneos, comentada no capítulo anterior. Marc ferro nos informa que

o slogan imperialista teve sucesso (...) porque afagava o amor-próprio e o orgulho dos que nada possuíam. De sorte que observamos um contraste: a opinião pública inglesa, que no início do século XIX havia sido cada vez mais hostil à expansão colonial, constantemente identificada com o tráfico de escravos e com as humilhações sofridas pela criação dos Estados Unidos, tornou-se favorável ao imperialismo na medida em que ele glorificava e defendia os interesses ingleses (FERRO, 1996, p. 32).

J. Ki-Zerbo usa uma expressão alegórica para se referir à rede informacional, fundamentada em descrições etnológicas, criada na era imperialista para trazer os „exotismos‟ das fronteiras imperiais para o alcance do europeu comum: “a etnologia recebeu procuração geral para ser o ministério da curiosidade europeia diante dos “nossos nativos”” (KI-ZERBO, 1982, p. 33. żrifo meu). Essa rede incluìa os escritos propriamente „cientìficos‟, os relatos dos viajantes, a imprensa de grande circulação, as grandes exposições coloniais e os romances. Em todos esses suportes, prevalecia o discurso etnológico na descrição do Outro, sendo este, como afirma Ki-Zerbo, “um discurso com premissas explicitamente discriminatórias e conclusões implicitamente polìticas”, cujo principal pressuposto era a concepção de “evolução linear: à frente da caravana da humanidade ia a Europa, pioneira da civilização, e atrás os povos “primitivos” da Oceania, Amazônia e África” (KI-ZERBO, 1982, p. 33). O objetivo geral de todo esse esforço intelectual, de modo consciente ou não, era tornar as viagens pelas imensidões africanas (dentre outras „imensidões‟ percorridas pelos viajantes europeus) um tema atraente para o cidadão comum. Não se tratava este de um objetivo exatamente fácil de ser alcançado, mas sem dúvida era um bocado atraente: os viajantes já haviam percebido que “rios de dinheiro e prestìgio dependiam do crédito que conseguissem fazer com que outros lhe atribuìssem” (PRATT, 1999, p. 343). Porém, os „grandes momentos‟ dessas viagens, como a „descoberta‟ de um lago ou a confirmação da direção para a qual um rio vira em determinado lugar, constituem na maior parte das vezes simplesmente um não- evento. A viagem continha obviamente uma materialidade que, no contexto de superação de barreiras geográficas, logísticas, políticas e físicas empreendida, poderia ser pintada com as cores do heroísmo clássico; mas a descoberta em si, nos modelos narrativos consagrados pela cultura europeia, era basicamente uma experiência passiva: ver.

Dessa “irrelevância” narrativa decorrem a criação e o uso de um arsenal retórico pesado, pois como M. L. Pratt explica, os viajantes precisavam atribuir a maior relevância possível para cada uma dessas descobertas, e essa relevância em parte vinha do reconhecimento público de tais feitos para o engrandecimento da nação. Ou seja, mesmo que “o sofrimento exigido para se alcançar a descoberta seja inesquecivelmente concreto, neste paradigma de meados do perìodo vitoriano, a própria “descoberta” (...) não existe em si

mesma. Ela apenas se “torna” real quando o viajante volta para casa e a evoca através de textos” (PRATT, 1999, p. 342). É fundamental atentar para o que a análise de Pratt significa. A “descoberta” em si não é nada, o relato da “descoberta” é tudo: “eis aqui a linguagem encarregada por si só de fazer o mundo, e com altos interesses em jogo” (PRATT, 1999, p. 343). Sobre o poder das narrativas, Tzvetan Todorov afirma:

Um fato pode não ter acontecido, contrariamente às alegações de um cronista. Mas o fato de ele ter podido afirmá-lo, de ter podido contar com a sua aceitação pelo público contemporâneo, é pelo menos tão revelador quanto a simples ocorrência de um evento (...). A recepção dos enunciados é mais reveladora para a história das ideologias do que a sua produção (TODOROV, 1999, p. 64).

M.L. Pratt lista os três meios mais convencionais utilizados para criar valor qualitativo e quantitativo para a „conquista‟ do viajante: 1) a paisagem é estetizada, descrita como uma pintura cujo prazer estético que proporciona compensaria por si só o esforço da viagem; 2) se procura obter uma densidade semântica nessa passagem, utilizando uma adjetivação valorativa repleta de referentes conhecidos da cultura do viajante; e 3) a relação de domínio predicada entre quem vê e o visto, a transmitir a sensação de que o observador pode dominar e/ou avaliar o que é visto. A missão civilizatória como um projeto estético “é uma estratégia muito utilizada pelo Ocidente para estabelecer que outros estão abertos a – e carentes de – sua influência benigna e embelezadora” (PRATT, 1999. p. 345). Pratt chama essas descrições de metáfora do “monarca-de-tudo-o-que-vejo”, denominação autoexplicativa, e afirma que elas demonstram de modo particular a ligação entre estética (ocupando o lugar que eu anteriormente atribuì à racionalidade) e ideologia europeias, uma „retórica da presença‟: “as qualidades estéticas da paisagem constituem o valor social e material da descoberta para a cultura de origem do explorador, ao mesmo tempo em que suas deficiências estéticas sugerem uma necessidade de intervenção social e material pela cultura de base do explorador” (PRATT, 1999, p. 345).

Nesse momento podemos fazer uma breve pausa nas considerações sobre as descrições imperialistas e recordar as descrições contemporâneas feitas nos filmes, vistas no capítulo anterior, apenas a título de comparação e para não perder de vista o que se busca analisar. As cenas panorâmicas de „pôr-do-sol africano‟ na savana, por exemplo, tão recorrentes, seguramente podem ser classificadas como releituras da cena do „monarca-de- tudo-o-que-vejo‟. Tais cenas, de óbvio apelo estético para os padrões „ocidentais‟, podem ser classificadas, em si mesmas, como simples elementos identificadores da paisagem africana; mas se forem levadas em conta as outras mensagens a elas agregadas, podem também ser

classificadas como sugestões para a necessidade de intervenção estrangeira em território africano, como já visto anteriormente. Lembremos a descrição feita por Richard Burton do lago Tanganica: sua exposição sugere a ausência de algo, de elementos que a presença europeia poderia trazer para “melhorar‟ a paisagem africana; Richard żrant, outro viajante do século XIX, escreveu que gostaria de ter feito uma pintura do Vitória Nyanza “incluindo nele vapores e navios ancorados na baìa” (PRATT, 1999, p. 345). Também exatamente como vimos anteriormente que os filmes mostram o africano contemporaneamente, nos relatos de viagem os africanos sempre são retratados como eternamente disponíveis às necessidades do estrangeiro, “referidos apenas como “um (uns)/o(s)/meu(s) hotentote(s) (ou simplesmente omitidos, como em “nossa bagagem chegou no dia seguinte”), todos são intercambiáveis (...) e sua presença, sua disponibilité e estado subalterno, são tidos como certos” (PRATT, 1999, p. 100). Não é a primeira vez nessa dissertação que se fala em descrições de africanos que envolvem disponibilidade e estado subalterno; é exatamente assim que o cinema contemporâneo permanece retratando-os.

Resumindo, estes recursos descritivos – “aparatos padronizados do relato de viagem” – literalmente “produziam temas não europeus para a audiência doméstica do imperialismo” (PRATT, 1999, p. 118). O processo de homogeneização da África a que já foi feito referência é apenas a repetição do que a etnografia começou a fazer no século XIX, quando as descrições do povo a que interessava subjugar apresentavam-no como um sujeito coletivo, „eles‟, “que se resume ainda mais a um icônico ele (= espécime padrão adulto e macho)” (PRATT, 1999, p. 119). O termo „espécime‟ não é usado à toa por Pratt; os itálicos oriundos da padronização lineana eram correntemente aplicados aos povos „inferiores‟, imersos, por causa do tempo verbal utilizado nas descrições, em um eterno “presente atemporal”, que coincide com as descrições da África sem temporalidade específica, mas em permanente decadência, feitas pelos filmes contemporâneos. Sobre essa prática textual, Pratt diz que esse “ele” “é uma entidade sui generis, frequentemente apenas uma lista de características, situada numa ordem temporal diferente daquela do sujeito perceptual e narrador” (PRATT, 1999, p. 119). Os recursos descritivos usados pelo viajante colocam-no numa posição de autoridade tanto em relação à população nativa que ele descreve quanto ao leitor europeu: “O leitor não conhece a Índia, e os indianos reconhecem-no como senhor. Não importa de fato a relação entre a descrição de Burton e a realidade observada, é o autor do texto que domina a cena e confere- lhe significação. A imagem oferecida da população colonial está, certamente, submetida a essas prerrogativas” (żEBARA, 2010, p. 28). Mais uma vez recorrendo à análise que A.

Gebara faz dos relatos de Richard Burton, portanto, podemos concluir que os viajantes criam a paisagem que descrevem, inventam a África e todo o resto do mundo para o europeu comum.

Quem eram esses viajantes que abriram caminho para a invasão da África pelos europeus e tornaram possível o Imperialismo? J. Ki-Zerbo nos diz que “as três figuras principais desta cadeia de acontecimentos [i.e., a intervenção imperialista em África] são os missionários, os mercadores e os militares” (KI-ZERBO, 2002, p. 68), continuando que “poder-se-ia fazer uma galeria de retratos bastante característicos destes pioneiros, que vão do missionário a arder de compaixão ao inadaptado social mais ou menos desequilibrado, passando pelo colecionador de troféus de caça e pelo pesquisador de ouro” (KI-ZERBO, 2002, p. 68). O avanço europeu no interior do continente africano só foi possível em virtude das atividades de tais homens. Um exemplo é o “jovem médico escocês de vinte anos” (KI- ZERBO, 2002, p. 71), Mungo Park, que viajou para o interior da África nos últimos anos do século XVIII e nos primeiros do XIX e escreveu um livro de viagens de grande sucesso à época. Financiado por uma aliança de aristocratas e homens ricos sediada em Londres, sugestivamente chamada „Associação para a Promoção da Descoberta das Áreas Interiores da África‟, que foi a responsável pela exploração britânica da África em fins do século XVIII e nas primeiras décadas do século XIX (mais tarde incorporada à Royal Geographical Society), Park foi encarregado (em 1795) de descobrir o percurso do rio Níger e estabelecer contato diplomático e comercial com quem quer que habitasse a região. A associação Africana, abreviatura pela qual era conhecida, não escondia seus interesses práticos no financiamento das viagens – o próprio Park escreveu que “receberia de seus financiadores o salário de quinze xelins por dia “somente caso conseguisse fazê-los conhecer melhor a geografia da África, abrir-lhes à ambição, ao comércio, à indústria novas fontes de riquezas”” (Apud ŻERRO, 1996, p. 31); o que interessava era estabelecer contatos comerciais, e interesses científicos não são sequer mencionados em seu manifesto:

Não obstante o progresso da descoberta nas costas e fronteiras daquele rude continente (i.e., a África), o mapa de seu interior ainda não é mais do que um extenso vazio (...). Atentos a esse problema e desejosos de resgatar esta era do peso da ignorância que, em outros aspectos, é tão oposta a seu caráter, uns poucos indivíduos, profundamente convictos da praticidade e utilidade de assim desenvolver o acervo do conhecimento humano, arquitetaram uma Associação para a Promoção da descoberta das regiões interiores da África (Apud PRATT, 1999, p. 128).

A tarefa de Mungo Park era tão ingrata que Pratt diz não saber se o mais impressionante é o fato de ele ter assumido a missão para o Nìger “ou que tenha sobrevivido a

ela” (PRATT, 1999, p. 131) 41. Diversas expedições anteriores fracassaram, e o próprio Park,

do ponto de vista prático, falhou tanto em descrever o curso no Níger quanto em atingir Timbuktu, importante centro comercial da África ocidental. A sua vitória foi não ter morrido no decurso de uma série de agruras e escrito um relato peculiar a respeito da sua viagem, relato que marca a “erupção do estilo sentimental na narrativa europeia sobre a zona de contato” 42 (PRATT, 1999, p. 137). De fato, Mungo Park inaugura o estilo do relato de

viagem do oitocentos, trazendo a fronteira imperial, sob uma ótica sentimental, para perto do leitor comum. Ele “não escreveu uma narrativa de descoberta, observação ou de coleta geográfica, mas sim uma narrativa pessoal e de aventura” (PRATT, 1999, p. 137); Park descreve sua própria experiência corporal e emocional diante dos muitos momentos de crise que enfrentou (torturado durante um mês por um potentado fulani, abandonado à morte no deserto, etc.) recorrendo sempre a uma autodramatização extrema. Pratt avalia que o relato sentimental, assim como o científico, por mais diferenças que possam ter entre si, têm em comum a construção da presença europeia no território do Outro: “o expansionismo europeu é tão esterilizado e mistificado na literatura sentimental quando no modelo cientìfico/informacional” (PRATT, 1999, p. 142). Estão sempre presentes as noções preconcebidas de superioridade europeia sobre todos os elementos nativos encontrados – a medicina versus a superstição, por exemplo –, e a atribuição de inferioridade ao Outro, bem como a ausência de crítica às ideologias europeias, por mais incompatíveis que fossem com as ações de viajantes como Park. Não obstante seu caráter sentimental, o relato de Park também possui um lado informacional importante que o tornou valioso para os homens de negócios que financiaram sua aventura, dando „nova intensidade‟ às fantasias mercantis da Associação Africana: “Park fez contato de primeira mão com os vastos e prósperos reinos Żulani e

41 Ki-Zerbo aponta as razões de tal dificuldade: “O principal enigma geográfico do interior era então o curso do

Níger, que, por causa do relevo, nasce a algumas centenas de quilômetros da costa, mas faz uma curva de 4000 quilômetros pelo interior, antes de atingir o golfo da Guiné. Os geógrafos europeus só conheciam deste grande rio aquilo que dele havia dito Plínio, que falara de Nigir, depois Idrisi e Leão-o-africano. Ora este último complicara as coisas, pretendendo que o Níger corria para o ocidente. Chocavam-se as hipóteses mais fantasistas (...). Ora, as embocaduras do delta do Níger, onde os barcos europeus aproavam desde há séculos, eram consideradas simples entrelaces de cursos de água costeiros. Era um quebra-cabeças no qual entravam as controvérsias sobre a velha cidade sudanesa de Tomboctu. Ora, tendo em vista o crescimento do “comércio legìtimo”, era vital, sobretudo para a żrã-Bretanha, o conhecimento desta via natural de comunicação (...). Ora, a curva do Níger era defendida pelo deserto e pela hostilidade dos Mouros ou dos sultões muçulmanos do norte, enquanto, ao sul, a grande floresta lhe levantava uma barreira” (KI-ZERBO, 2002, pp. 70,71).

42 M.L. Pratt elabora alguns conceitos a fim de abordar os relatos de viagem de maneira dialética e historicizada;

um destes é a expressão Zona de Contato, que a autora utiliza para se referir ao “espaço de encontros coloniais, no qual as pessoas geográfica e historicamente separadas entram em contato umas com as outras e estabelecem relações contínuas, geralmente associadas a circunstâncias de coerção, desigualdade radical e obstinada” (PRATT, 1999, p. 31).

Bambara da África do Centro-Oeste” (PRATT, 1999, p. 132), o que, nas palavras entusiasmadas dos membros da Associação, significava o seguinte:

Pelas descobertas do Sr. Park, uma porta foi aberta para toda nação mercantil entrar e comerciar da extremidade ocidental à oriental da África. (...) Com as devidas informações e empenho do crédito e iniciativa britânicos, é difícil imaginar a extensão potencial a que pode chegar a demanda pelas manufaturas de nosso país, por parte de países vastos e populosos (Apud PRATT, 1999, p. 133).

No início do século XIX as viagens ao interior da África permanecerão escassas, pelas razões apontadas por Pratt: “A exploração do interior era bloqueada pela doença em boa parte do mundo tropical e pela resistência indìgena” (PRATT, 1999, p. 134), e, especialmente no caso da África: “żraças à malária, febre amarela e disenteria, a exploração do rio Nìger, nas cinco décadas seguintes [à viagem de Park], foi esporádica até que o Dr. William Bailkie decidiu testar a eficácia do quinino contra as febres mortais que haviam ceifado todos os sonhos de expansão naquela área” (PRATT, 1999, p. 153).

Park sucumbiu na sua segunda expedição à África, em 1806, junto com todos os companheiros. Expedições irregulares são enviadas até a metade do século XIX, quando as