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Ainda errado após todos esses anos?

2. DEBATE ENTRE ARTIGOS

2.6. Ainda errado após todos esses anos?

Em um artigo intitulado Ainda errado após todos esses anos (Still Wrong after all these years), 1989, Fish decide comentar o livro “O Império do Direito”, 1986, sob o aspecto da discussão que travaram até então ao longo dos anos por meio de artigos.

Dworkin cita, diretamente, duas vezes Fish neste livro. Primeiro, para rememorar os debates que travou com o crítico envolta da dicotomia interpretar/inventar e todas as questões relacionadas a essa problemática172. Segundo, no intuito de remeter a toda troca de artigos entre ambos e caracterizar Fish como um crítico contrário à ideia de uma interpretação poder ser melhor do que outra.173

Os outros assuntos deste central livro de Dworkin, correlatos à discussão entre ambos, não desenvolvem argumentos novos, nem trazem novas defesas ao ponto de vista já extensamente trabalhado nos artigos passados e já analisados nesta dissertação – inclusive pelo fato deste livro ser um esforço bem realizado de Dworkin para tratar temas, que outrora vinha desenvolvendo em artigos e palestras, de um modo organicamente costurado em uma só obra; propósito isso que se repetirá em seu último livro Justiça para

Ouriços (Justice for Hedgehogs).

Poderíamos destacar, neste livro, o enfoque dado ao direito como integridade, aos convencionalistas e pragmatistas, aos céticos internos e externos, ao juiz Hércules e as aos positivistas, bem como a temas afins. Porém, essas problemáticas específicas escapam do âmbito de análise desta dissertação e tratar-se-ia de uma fuga desviante de nosso foco principal, caso decidíssemos nos debruçar sobre elas. Tanto é assim que Fish, em sua renovada gana de crítica presente no artigo “Ainda errado após todos esses anos”, também reitera os seus argumentos, adaptando-os no que é necessário para as novas roupagens a velhos problemas trazidos por Dworkin, escolhendo, inclusive, um título debochador para criticar Dworkin.

172 DWORKIN (1986: 66) 173 DWORKIN (1986: 77)

No entanto, ainda há alguns pequenos pontos que merecem atenções, pois esclareceram ainda mais a postura que venho defendendo nesta dissertação, sobre a má- compreensão entre ambos e não propriamente uma discordância. Vamos a eles.

2.6.1. Aparando arestas

As discussões envolta do direito como integridade possuem os mesmos argumentos das discussões sobre a empreitada do romance em cadeia ou sobre a dimensão da adequação e propósito da prática analisada; bem como as discussões sobre convencionalismo e pragmatismo reputam, respectivamente, ao objetivismo e subjetivismo. Deste modo, Fish continua a sua crítica reiterando que Dworkin descreve tão somente o que os convencionalistas e os pragmatistas pensam estar fazendo, ou seja, Dworkin descreve a teoria deles e, depois, nos oferece o direito como integridade para escaparmos destes problemas. Porém, Fish pensa que esse é um esforço inútil – como já explicitou nos outros artigos quando tratava sobre os objetivistas, subjetivistas, relativistas e céticos – pois uma posição é tentar auto-descrever a sua ação no mundo e outra posição é, de fato, agir do modo descrito. E, para Fish, como o projeto destes grupos são não somente criticáveis, mas impossíveis, não há com o que se preocupar.

Deste modo, Fish reputa a Dworkin o seguinte erro: “…o erro de assumir uma relação direta e causal entre a opinião de alguém sobre a sua própria prática e a forma real desta prática.”174. Aqui parece, sim, existir uma discordância entre Fish e Dworkin. Trata-

se de uma discordância originada de uma má-compreensão, mas, ainda sim, uma discordância. Pois, como ressalta Fish, não se pode negar a postura interpretativa dentro das nossas práticas e as constrições existentes. Porém, isso não significa que seria impossível ser membro de um dos grupos mencionados. E isso é possível, pois estamos a falar sobre uma prática interna e não externa, como Fish entende. Ou seja, a fala deles pretende afetar também internamente, o modo como a nossa prática ocorre. Nós agimos diferentemente conforme compreendemos também diferentemente as nossas próprias ações, conforme nos narramos. Assim, quando se fala sobre os convencionalistas ou pragmatistas, não se discute o que os motiva ou influencia ou o que pode ter formado o seu

174Vejam a citação completa: “…the mistake of assuming a direct and causal relationship between one’s

account of one’s practice and the actual shape of that practice. The mere fact that a lawyer or a judge says that he is doing something impossible (acting freely and in disregard of the past) doesn’t make him capable of doing it. One can be a ‘self-conscious’ pragmatist only in the sense that one can sincerely believe oneself to be acting on pragmatist principles (or, from Dworkin’s perspective, nonprinciples), but self-conscious pragmatist action, as opposed to the philosophical action of thinking of oneself as a pragmatist, is not an available option, and therefore there is no need to counsel against it” FISH (2007: 361)

juízo – estando este, é claro, imbricado com a história, como Fish defende. Igualmente, não se critica somente a postura deles sobre o âmbito externo, críticas harmônicas entre Fish e Dworkin, mas, sim, os seus discursos sobre como eles se auto-narram, como eles descrevem a sua própria ação e modo de interpretar para o mundo, o que afeta diretamente a prática, pois se trata de diretrizes para ações dentro da prática. É, pois, neste âmbito que podemos mais claramente cobrar e exigir comportamentos e responsabilidades dos outros, principalmente em um âmbito público e, portanto, moral-político.

Então, vejamos: a re-caracterização que Dworkin defende não implica, automaticamente, uma mudança de atitude, de ação e de modo-de-ser-no-mundo, mas, ao menos (e isso já é uma grande conquista), passaremos a discutir de outro modo, pois compreenderemos a discussão de forma diverso – e, ao agimos assim, iremos gradativamente modificando a prática como um todo.

Deste modo, por exemplo, um convencionalista que outrora pensava ser epistemologicamente possível uma posição não-interpretativista (nos termos de Fish e Dworkin), por acreditar que conseguia interpretar as instituições bem como a legislação com relativa facilidade, agora compreenderá que mesmo as interpretações “literais” ou “claras e óbvias” estão imbricadas com a linguagem e que isso tudo é indissociável de um projeto político maior. Todavia, mesmo após isso, ele pode pensar: “Ok, compreendo e concordo com tudo isso. Mas eu simplesmente não me importo com tudo isso, com esse pensar político, nem com o aumento da tomada de responsabilidade política ou moral. Agora, compreendo, inclusive, que essa minha não-tomada-de-posição é, inclusive, uma tomada de posição inevitavelmente política, moral, estética, ética etc. dentro do mundo. Porém, ainda a sustento, pois dou valor a outras diretrizes e não pretende despender maiores energias minhas com tais empreitadas.” Vejam que esse tipo de fala seria muito direta e sincera de uma pessoa nessa posição e vejam também que ela não necessariamente, por concordar epistemologicamente, teve que concordar eticamente e politicamente com o projeto de Dworkin ou com qualquer outro que não seja aquele que ela pensou ser mais interessante para ela.

“E, então, o que isso tudo isso muda”, alguém poderia perguntar? E continuar indagando: “por que estamos discutindo sobre tais questões, se nada, na prática, irá ser diferente? Não voltamos à estaca zero? Não estaria, portanto, Dworkin já falando o que todos nós já fazemos ou simplesmente dando um colorido a mais para o que nós já estamos

fazendo?” Fish responde afirmativamente algumas dessas perguntas críticas175. Porém, não

compreendo o que se passa desta forma. Não se trata de um mero “colorido a mais” ou uma “descrição interessante, porém inútil na mudança da prática”, como venho tentando mostrar, pois redefinir o modo como enxergamos o debate é redefinir o próprio modo como o debate ocorre e, portanto, alterar as nossas práticas sociais e argumentações. E, espero, que isso tenha ficado um pouco mais claro com o exemplo que eu trouxe acima, do “convencionalista sincero”. Vejam que, após a fala dele, o debate passa para outro nível. É claro que dificilmente alguém tomaria uma posição tão aberta quanto esse convencionalista, pois ele seria, no mínimo, criticado político e moralmente pela sua postura de descaso, além de poder ser criticado quanto à sua coerência. E é justamente isso que Dworkin espera. Conforme formos aceitamos e tornando mais evidente as nossas próprias posições e posturas diante do mundo, nós estaremos tomando maiores responsabilidades na medida em que nos abriremos para um campo de discussão mais político e, no fundo, moral, o que fará com que a sociedade melhore em seu todo, pois estaremos mais expostos à críticas ao invés de nos esconder por detrás de teorias não- interpretativas.

Deste modo, não se trata, como deseja Fish, de uma descrição ou projeto que supõe ser possível agir a parte de uma história institucional, de uma comunidade interpretativa ou de princípios.176 Se trata, pois, de nos posicionarmos sobre quais princípios e quais rumos acreditamos ser os melhores a serem trilhados em vista de nossa visão sobre a história e sobre o que julgamos ser mais correto em vista dos valores que nós consideramos como sendo corretos. Isso, todavia, não pode gerar um individualismo nem egoísmo de tentar defender os próprios valores e interesses, em um sentido restrito e pejorativo. Mas, em valores que se consideram mais dignos para todos e que respeitem o direito de todos de possuírem os próprios valores em seu âmago de realização existencial de sua vida no mundo.

O irônico é que Fish percebe isso ao dizer: “O conflito, então, nunca é entre preferência e princípio, mas entre preferências que representam diferentes princípios...”177

Todavia, ele não percebe que Dworkin está justamente entrando neste jogo e tentando nos convencer a adotar outros preferências, as quais representam diferentes princípios, os quais são interpretados e defendidos pela ideia do Direito como integridade.

175 FISH (2007: 357) 176 FISH (1989: 363-364)

177“The conflict, then, is never between preference and principle, but between preferences that represent

Mais curioso do que esse quase encontro de ambos, é o elogio de Fish à descrição que Dworkin realiza entre ceticismo interno e externo, a qual já fora feita por Dworkin, mas com outra roupagem, nos artigos que estamos discutindo aqui. Afirma Fish:

O ponto de Dworkin [diferença entre ceticismo interno e externo e críticas contra eles] não é novo, mas nunca é demais repeti-lo. Infelizmente, é também um ponto que enfraquece o seu próprio projeto no exato molde que eu delineei aqui. A desnecessidade do “ceticismo externo” é precisamente a desnecessidade do “Direito como integridade”.178

Vejam, portanto, que, se analisarmos bem, Fish concorda com Dworkin, porém, por interpretar o projeto deste como uma postura externa, em vez de uma atitude interna dentro da prática, tacha-o de incoerente e padecendo dos mesmos erros que acusa o ceticismo externo. E, de outro lado, Dworkin continuou a caracterizar Fish como um relativista, por tentar enquadrar o projeto deste dentro de uma postura interna, ainda em seu último livro “Justiça para Ouriços”179.

178“Dworkin’s point [difference between internal and external skepticism and critics against them] is not

new, but it is one that cannot be made too often. Unfortunately, it is also one that undercuts his own project in exactly the ways I have here outlined. The superfluousness of ‘external skepticism’ is precisely the superfluousness of ‘law as integrity’.” FISH (1989: 371)