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2. DEBATE ENTRE ARTIGOS

2.4. Por favor, não falem mais sobre Objetividade

2.4.1. Críticas a um Dworkin imaginário?

Dworkin contra-argumenta pontualmente Fish tentando mostrar que as críticas não cabem a ele, mas, sim, a algum Dworkin imaginado por Fish quando da leitura distorcida do artigo.

Dworkin nega, portanto, categoricamente que, durante a empreitada da interpretação, o texto force alguma interpretação particular nos intérpretes. É claro que essa negação, por si só, não nos garante que Dworkin deva estar a salvo de críticas nesse sentido vez que está é tão somente a leitura do próprio Dworkin sobre a sua obra. E, conforme nos ensina o próprio Dworkin e Fish, a intenção do autor e a interpretação que ele confere para a sua própria obra é apenas um aspecto que deve ser levado em conta, não sendo, porém, o mais relevante, nem possuindo tal interpretação um local argumentativo privilegiado. Deste modo, é preciso que consideremos de que modo Dworkin consegue argumentar contra essa crítica de Fish – relembro que no tópico passado já desenvolvi raciocínios que minavam as críticas de Fish, pois este realmente não compreendia o pensamento de Dworkin; veremos, a seguir, que Dworkin se aproxima, e muito, da minha análise desenvolvida na seção anterior, apesar de não se harmonizarem completamente, de forma que nesta seção não repetirei extensamente os raciocínios que são semelhantes e já desenvolvidos anteriormente.

87 Retomando: trata-se das ressalvas sobre as possíveis discordâncias entre os autores/romancistas, bem como

ressalvas sobre modos mais “estranhos”, não usuais, de se interpretar um texto, ressalvas contra a divisão forte entre casos fáceis e difíceis, e ressalvas contra a diferença entre o romancista no começo e ao final da cadeia.

Dworkin, pois, diz que não caracteriza, identifica ou interpreta uma obra de arte como um “fato bruto”; nem compreende a natureza de uma obra de arte como independente do intérprete ou tampouco que as constrições da interpretação executam-se por si próprias.

Dworkin diz que um dos maiores pontos de discordância com Fish é que este não compreende o seu projeto. Dworkin está tentando mostrar como a prática da interpretação ocorre e é compreendida na própria prática. Ou seja, Dworkin está a falar sobre as crenças de segunda-ordem, as quais compõem um quadro de interpretação “certo-errado”, “firme- inconsistente”, “melhor-pior”, o qual viabiliza essa empreitada.

Esse quadro, pois, não é uma imposição filosófica de fora (campo externo, para o qual Fish tenta arrastar Dworkin), mas, sim, mostra como é a prática que constitui a instituição da interpretação.88 Intérpretes, em sua grande parte, assumem que interpretar

88 Esta é uma importante nota de rodapé, que visa elucidar pontos que normalmente causam dúvidas e

estranhamentos: Vejam que as crenças de primeira-ordem e segunda-ordem não se confundem, respectivamente, com o interno e externo que eu discriminei anteriormente. Algumas pessoas podem realizar esse salto argumentativo, mas isso não foi dito em momento algum. Tanto as crenças de primeira-ordem quanto as de segunda-ordem estão dentro do ponto de vista interno, tendo em vista que elas não se auto- questionam com argumentos que não fazem parte deste jogo comum, baseado em determinados modos de discutir (quando passam a se auto-questionar fora deste jogo, como que o suspendendo, então viram questões externas). [Dworkin, pois, está, na maioria dos seus argumentos nestes artigos em questão, tomando uma postura interna de segunda-ordem. Porém, quando ele fala sobre o nosso Direito à pornografia ele está tomando uma postura de primeira-ordem] Rapidamente, podemos dizer que: as de primeira-ordem emitem uma opinião descritiva ou um comando, por exemplo, ao dizermos: “essa personagem é louca e está fingindo” ou “não fure a fila, pegue uma senha” ou “o direito diz que”. Os de segunda-ordem tornam possíveis algumas discussões sobre os de primeira-ordem sem ainda sairmos do jogo, por exemplo, ao dizermos: “esta interpretação é melhor do que aquela, é mais sólida e não altera o texto” ou “você deve obedecer essa norma, pois se trata de uma lei e, mais, de uma norma sem vícios de legalidade ou de constitucionalidade”. Uma postura externa diria, por exemplo: “o que você entende por alterar? Isso é algo que realmente faz sentido ser dito? Não seriam todas as falas uma tentativa de alterar ou construir o texto, vez que não há texto em si?” ou “qual é a definição de norma? Não seriam todas as nossas falas normas, um dever-ser, um comando prescritivo lançado para o mundo, tendo em vista ser impossível uma descrição, uma afirmação sobre o ser das coisas?”. Por fim, é preciso constar que essa divisão entre interno e externo nem sempre é fácil de ser percebida e nem sempre é possível percebermos olhando-se rapidamente para as frases, pois, mais do que o tema em debate no campo interno e externo, o mais importante é o modo, o enfoque, o propósito como qual se debate. [Por exemplo, uma teoria sobre interpretação pode ser tanto interna, de segunda-ordem, quanto externa a depender do enfoque. Alguém pode realizar uma teoria sobre interpretação (interna e de segunda-ordem) ao falar sobre o modo como ela se dá na prática, como nos sentimos quando interpretamos, sobre quais os pressupostos implícitos existentes durante a prática. de outro lado, outra pessoa pode realizar uma teoria sobre interpretação (externa) ao se perguntar sobre o que “realmente” é interpretar.] Tentando facilitar um pouco a visualização de discursos interno e externo, vejamos: (i) exemplo de dever-ser em um âmbito interno lato sensu: quaisquer fala e posicionamento no mundo, vez que é a postulação de um dever-ser, de uma postura que se pretende a melhor, mais interessante; (ii) exemplo de ser em um âmbito externo stricto sensu: “a verdade não existe”, “não existe objetividade”; (iii) exemplo de dever-ser em um âmbito externo stricto sensu: “nós devemos compreender que, na prática, o uso do termo ‘objetividade’ e ‘verdade’ não deve significar algum tipo de realidade ou verdade superior, pois, mesmo que tais termos nem sempre intentem designar esse patamar superior, o uso displicente pode sugerir essa intenção; (iv) exemplo de ser em um âmbito interno stricto sensu: “o Direito diz que”; “não é permitido pisar na grama”; “isso é (in)constitucional”. Exemplo de dever-ser em um âmbito interno stricto sensu: “nós devemos obedecer essa norma, pois ela está no código e é constitucional, sendo a melhor interpretação do Direito.”

um texto é diferente de mudá-lo; que uma interpretação pode ser melhor que outra mesmo o tema sendo controverso; que argumentos existem a favor e contra uma interpretação; que alguns argumentos são fortes, mais fundamentais que outros; que alguém pode ser persuadido e não somente passar ou ser forçado a outra interpretação; e assim por diante. 89

Dworkin, portanto, alega estar olhando para a prática social e tentando compreendê-la. Desta forma, ele está tentando compreender sobre o quê as pessoas que discordam estão discordando. Dworkin enxerga o seu projeto não como uma postura filosófica com pretensões de discutir sobre realmente “o que é interpretar”, “o que é descrever” ou “o que é explicar”, posturas estas de um pensador externo. Mas, sim, como uma postura que eu designei no tópico anterior como sendo interna.

Ele justifica o porquê de seu projeto ao elencar dois problemas recorrentes às teorias de interpretação. (i) Se as pessoas em geral fazem uma distinção entre interpretar e inventar, isso quer dizer que elas acreditam que conseguem, de algum modo, realizar essa distinção. Assim, a pergunta de Dworkin é “Como nós distinguimos entre interpretar e inventar?”. Se nós descobrirmos, pensa Dworkin, ao estudarmos essa topologia mental sobre julgamentos interpretativos, que há diferentes tipos e níveis de interpretação (sendo “inventar” um deles), então temos que continuar estudando no intuito de tentar identificar a estrutura dessas diferenças e perceber de que modo um nível e tipo se relacionam entre si e de que modo são distintos de outros.90

Dworkin está dizendo algo como: “Usarmos dois termos diversos, “interpretar” e “inventar”, mostra que entendemos essas práticas de um modo diverso. Assim, mesmo se, no fundo, após realizarmos estudos reveladores de que o modo como tratamos esses termos está sempre relacionado com interpretação, ainda teremos que explicar como e o porquê ainda usamos esses dois termos e não somente um. Algo precisa ser diferente porque nós sentimos e nos comportamos diferentemente quando usamos e quando vemos outras pessoas empregando tais termos.” Nesse sentido, a intuição de Dworkin, a meu ver, está correta, pois, para além dos termos, há um sentimento envolvido nas práticas sociais que nos faz continuar perquirindo o modo como tratamos de forma diferente essas práticas no mundo.

O outro problema é (ii) a questão da objetividade. As perguntas ligadas a essa inquietação nos fazem querer saber se o quadro certo-errado está correto e se é possível julgamentos de interpretação serem verdadeiros ou falsos, firmes ou inconsistentes. Ou

89 DWORKIN in MITCHELL (1983: 289) 90 DWORKIN in MITCHELL (1983: 289-290)

seja, a interpretação seria realmente diferente da invenção, como a maioria dos intérpretes pensa comumente, ou isso seria algum tipo de ilusão compartilhada, assim como a verdade e a solidez de um raciocínio?

Para Dworkin, enquanto a primeira questão levantada (i) está relacionada com um olhar interno, dentro da prática, para o estudo de como sentimos e para o significado que gostaríamos de conferir aos termos que usamos; a segunda questão (ii) também se relaciona com a prática, porém, ela tenta dar um passo atrás e se perguntar sobre o próprio sentido desta prática, ou seja, é uma pergunta que se enxerga como externa a própria prática.