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E qual é a diferença, ao final das contas?

2. DEBATE ENTRE ARTIGOS

2.1. Direito como Interpretação

2.1.3. E qual é a diferença, ao final das contas?

Compreender que as teorias de interpretação não são empreitadas independentes das empreitadas que pensam sobre o que significa interpretar, sendo, portanto, dependentes de teorias normativas, é aceitar que essas teorias são vulneráveis para argumentos contra a teoria normativa sobre as quais elas se baseiam.

Dito de outro modo: passa-se a questionar se a teoria normativa é boa e em que medida é interessante se pensar a arte e a interpretação deste modo sugerido por determinada teoria. Ao invés de simplesmente focalizar na própria interpretação, questiona-se o próprio objetivo desta interpretação e o valor do propósito interpretativo elencado por essa teoria como valioso. Dilui-se, assim, a dicotomia entre descrever e prescrever.

26 “This [mutual dependency] seems to be the burden of slogans like ‘interpretation creates the text’, but there

is no more immediate skeptical consequence in the idea that what we take to be a work of art must comport with what we take interpreting a work of art to be than in the analogous idea that what we take a physical object to be must sit well with our theories of knowledge…” DWORKIN in MITCHELL (1983: 257)

Lancemos, pois a pergunta: “Qual é a diferença, ao final das contas?” A diferença está em compreendermos melhor o que se discute quando estamos discutindo. Ganha-se, portanto, em termos de compreensão do que é uma discussão e do que está indissociável das opiniões dos dialogantes. E o que está indissociável é sempre uma teoria – um modo de ver – valorativa do mundo, vez que interpretativa.

Vejamos, na prática, como isso se aplica. Há teorias, por exemplo, as quais supõem que o valioso em uma obra de arte está limitado à intenção do autor, compreendida esta em um sentido estreito e restrito.

Esses intencionalistas dizem que a teoria deles não é sobre o que é valioso em uma obra, mas somente sobre o que esta obra significa. Alegam, pois, que é necessário, anteriormente, entendermos o que algo significa para depois avaliarmos se o objeto analisado é valioso e sobre o que o seu valor repousa.

O que ocorre, portanto, na atitude dos intencionalistas diante da hipótese estética dworkiniana? De que forma estão propondo o que propõem e sobre o que estão discordando?

Segundo Dworkin, a primeira objeção dos intencionalistas (“estamos discutindo o que uma obra significa e não o valor dela”) revela que a auto-descrição deles os faz pensar que possuem uma discordância com a hipótese estética, colocando-os como rivais. Os intencionalistas pensam estar propondo uma melhor teoria sobre o que é interpretação: uma teoria que considera a análise da intenção do autor como uma teoria melhor do que a hipótese estética.

E não seria justamente isso o que Dworkin gostaria que eles admitissem? Não, pois o argumento dos intencionalistas não reconhece que eles possuem uma teoria sobre a interpretação, mas, sim, uma teoria de interpretação – pois se eles assim argumentassem, eles compreenderiam que não estariam fora da hipótese estética, mas, sim, dentro dela e propondo um modo de interpretação. Ou seja, eles ainda não superaram a dicotomia descrever-prescrever, pois consideram estar falando sobre o que uma obra significa (o que ela é) sem precisar tecer nenhum comentário maior sobre o valor dela (o que entendo que ela seja com base nos meus valores que acredito que devam ser considerados como os melhores, mais corretos, mais coerentes etc.).

Por que isso é criticável? Vejamos: os próprios intencionalistas compreendem que existem diversas outras escolas que se posicionam diferentemente sobre o que é interpretar. Assim, a defesa deles sobre a intenção do autor como um método de interpretação não pode pretender tão somente estar “falando sobre o que uma obra é”, mas, sim, precisam

justificar – e deveras tentam – o porquê interpretar valendo-se da interpretação do autor é melhor. Deste modo, os intencionalistas devem, então, ser incluídos pela hipótese estética, por estarem justamente tentando provar que o seu modo de interpretação é melhor do que outras teorias, ou seja, a sua teoria também não consegue deixar de ser uma teoria sobre interpretação.

Os intencionalistas, é claro, não aceitariam essa descrição e poderiam simplesmente rebater: “o que estou pretendendo é somente descobrir a intenção do autor e isso é uma questão importante, mesmo que ela seja preliminar e mesmo que haja outras questões também importantes que também contribuem para o significado e valor de uma obra”. A pergunta remanescente para Dworkin, porém, é “por que a intenção do autor é importante?”.

Compreendem, portanto, a questão de fundo aqui. O ponto é mostrar que há uma discussão prévia – ou, ao menos, maior. A teoria intencionalista não pode se arrogar o direito de ser neutra ou preliminar a qualquer tipo de valoração da obra de arte por estar “somente” olhando para a intenção do autor. É como se eles gritassem: “ora, deixem-nos em paz! Estamos aqui só querendo pensar, analisar e escrever sobre a intenção do autor!”, ao qual poderíamos rebater “Mas porque vocês estão fazendo isso e porque pensam que isso é importante?”.27 Vejam que esta pergunta não está desconsiderando, no todo, a

intenção do autor. Qualquer teoria minimamente estruturada leva a intenção em conta, v.g., no uso de determinados termos ou construções de frases. Porém, saber o que Shakespeare pensava sobre Hamlet – um louco ou um são pretendendo ser louco28 – é algo cuja

importância não está clara, nem tão-pouco evidente, sendo, pois, algo passível de discussão. Para os intencionalistas, é importante sabermos essa intenção de Shakespeare para com Hamlet para pensarmos sobre o quão boa é a peça. E é justamente por isso que a teoria de interpretação dos intencionalistas não é uma rival da hipótese estética, mas, sim, um exemplo que a afirma, pois eles estão precisamente tentando defender o porquê a

27 No fundo, este debate acaba sendo também um debate ético sobre o melhor modo de se viver e despender o

tempo e sobre a melhor contribuição para a cultura, como um todo, pois se trata de compreender que qualquer ação no mundo é um se-colocar-no-mundo e influenciá-lo/afetá-lo de algum modo. A possibilidade de encarar os debates e discussões, inclusive “teóricas”, sob um ponto de vista ético parece começar a se despontar no Justice for Hedgehogs, mas Dworkin ainda não parece assumir isso tão claramente – ele dirá, sim, que os debates e discussões são éticas e morais, mas não que necessariamente as discussões estão sendo confrontos éticos-existenciais-estéticos, conforme eu estou buscando destacar aqui.

28 A frase deste mesmo artigo re-publicado no livro Matter of Principle é “sane or a madman pretending to be

mad", utilizada por Dworkin para ilustrar esse ponto. Porém, verificando no artigo publicado no The Politics

of Interpretation (que estamos tomando como base) esta mesma passagem vem escrita como “mad or sane

pretending to be mad” e, por esta fazer “mais sentido”, optei por ela. Ironicamente, Dworkin está tratando neste trecho justamente sobre a intenção do autor ao escrever palavras e frases em um texto, sendo justamente isso que eu tive que recorrer para optar pelo melhor modo de entender esta frase escrita por ele.

interpretação que eles defendem torna a obra melhor – apesar de eles não reconhecerem isso nos moldes dworkinianos.

A segunda objeção dos intencionalistas é considerar o estado mental (state of mind) do autor como central para a interpretação. Porém, segundo Dworkin, eles confundem e falham na apreciação de como intenções e crenças sobre uma obra interagem. E isso pode ser observado quando, após criarmos uma obra, percebemos algo que não sabíamos previamente que estava ali. Trata-se do famoso, mas ilustrativo, clichê de alguns autores afirmando que os seus personagens possuem opinião ou vida própria. Os intencionalistas elencam dois contra-argumentos contra este caso: (i) ou o autor reconhece uma “intenção subconsciente prévia”; (ii) ou ele mudou a sua intenção depois.

Para Dworkin, essas explicações não são satisfatórias, pois, de qualquer modo, as decisões do autor não consistem nem estão baseadas em qualquer descoberta sobre essa intenção prévia. Usando o exemplo do autor John Fowles, Dworkin diz que o autor/criador, na verdade, faz uma interpretação do seu próprio personagem e da história até então escrita como um todo para tentar escrever melhores ações e pensamentos. Além disso, um autor consegue fazer novas percepções estéticas e interpretativas sobre o seu trabalho, mesmo depois de escrito, tratando a obra como um objeto a ser interpretado e analisado. Um autor pode ver outras perspectivas depois de observar os seus escritos serem adaptados para uma peça ou um filme, por exemplo. Desta forma, o grande ponto defendido por Dworkin é que: qualquer descrição sobre a “intenção” de um autor deve pensar que ele intentou criar algo que pudesse ser analisado e interpretado de diversos modos, por ele mesmo e por outros, ou seja, há também a intenção o autor de criar algo independente da sua intenção.

Podemos, todavia, para estimular o debate, pensar que essa autoanálise não seja geral para todos os autores e podemos, inclusive, imaginar alguns autores mais teimosos ou um autor que seja também partidário de uma escola intencionalista. E aí, nesse caso, deveríamos interpretar a intenção do autor e supor que esta define melhor o caráter e o valor da obra? Creio que não. Por quê? Pois, ainda assim, nós poderíamos interpretar a sua obra independente da sua vontade, porque o que se está em disputa é o melhor modo de se pensar uma obra de arte, sendo a intenção ou opinião do autor tão somente mais uma possível defesa teórica sobre tal obra, a qual, portanto, também precisa ser argumentada e justificativa diante das tantas outras teorias, análises e, enfim, interpretações possíveis.

Ou seja, não basta um autor dizer “não, eu não fui preconceituoso” ou “não, essa personagem não é, na verdade, refinada nem culta, mas sim uma esnobe e arrogante” ou “ele, na verdade, possui uma natureza ruim, não se tratando de uma influência perversa do

meio no qual foi criado”. O autor terá que argumentar sobre o “preconceituoso”, “nem refinada nem culta”, “esnobe e arrogante” e “natureza ruim”, pois a percepção do autor sob as ações, gestos e motivos das personagens são passíveis de interpretações e devem ser justificadas e não tão somente “declaradas”, em uma suposta “descrição de intenções” pelo autor, o qual não se pode alçar para um patamar de destaque.

As opiniões, pois, estão todas dentro do mesmo jogo, sendo o autor um intérprete, um importante intérprete, porém não é nenhuma autoridade a priori sobre a sua obra. Aliás, não é estranho críticos enxergarem maior valor em uma obra do que o próprio autor. Nesses casos, temos a tendência a dizer que os críticos estão “alterando, distorcendo, adulterando, inventando” a obra, porém, o que eles estão fazendo é simplesmente interpretá-la, assim como todos nós estamos fazendo, não existindo uma interpretação mais crua ou direta ou menos “interpretativa” do que outras. Não conseguimos sair do jogo da interpretação e é isso que Dworkin tenta mostrar neste seu texto. É claro que críticos podem estar dando uma ênfase ou interpretação com a qual não concordamos, mas isso não quer dizer que a nossa interpretação seja “menos interpretativa” ou “mais objetiva” ou “menos subjetiva” ou “menos inventiva” do que a deles29. Todos estamos no mundo da

interpretação. A discussão, portanto, deve se pautar em outro campo, superando-se esse ponto – ou, ao menos, compreendendo-o melhor, o que já é superá-lo.

Outrossim, a intenção do autor, diz Dworkin, não é algo conjuntivo, meramente ligado aos personagens, como a intenção que possuímos quando vamos ao mercado adquirir os itens de uma lista de compras30. A intenção aqui é estruturada no todo da obra e no todo dos personagens. Portanto, entender a intenção do autor como central ou como algo simplório ou evidente por si só, como se esta pudesse ser captada da forma como os intencionalistas gostariam, é fazer o valor de uma obra de arte ser estreito e restrito, inclusive pela própria visão do autor, que não costuma desejar que sua obra de arte seja limitada a esse tipo de interpretação.31

29O uso dos termos “verdadeiro”, “objetivo” e outros serão grande objeto de discussão dentro desta troca de

artigos e Dworkin reserva uma parte do seu último livro, Justice for Hedgehogs, para se dedicar a incompreensões envoltas destas palavras.

30 Apesar desta intenção de ir ao supermercado e adquirir os itens também conter complexidades, as quais

poderiam ser analisadas por um observador curioso e conhecedor do contexto anterior a ida da pessoa ao supermercado.