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Sanando derradeiras incompreensões

3. ESTAR NO MUNDO É INTERPRETAR

3.3. Sanando derradeiras incompreensões

O que quero dizer quando afirmo “Dworkin concordaria com Fish” ou “Fish/Dworkin concordaria com esse pensamento”? Certamente, não tenho a intenção de afirmar que se chegássemos diante deles e os indagássemos, tais autores falariam

183 E uma crítica externa pode ser mais sedutora na medida em que passa a tentar englobar raciocínios

internos do outro a fins de convencê-lo, postura intentada por Dworkin ao englobar os céticos dentro de um mundo dworkineano do qual não pode fugir, pois não poderiam fugir da moralidade.

184“In ordinary contexts, talk is produced with the goal of trying to move the world in one direction rather

than another. (...) You assert, in short, because you give a damn, not about assertion – as if it were a value in and of itself – but about what your assertion is about.” FISH (2012: 107)

exatamente o que eu estou dizendo e, nem mesmo, que eles realmente afirmariam e “confessariam” concordar com o que eu digo que eles concordam. Porém, pelo ensino dos próprios autores, limitarmos a nossa visão à intenção do autor é algo por demais estreito e limitador na empreitada sobre o interpretar. Deste modo, o meu intuito é projetar o que Dworkin e Fish pensam e concordariam levando-se o em conta todo o debate em questão da melhor forma possível. E, para tanto, o propósito desta dissertação foi o de tentar – por meio da re-construção do pensamento de ambos autores presente nestes artigos – fornecer uma consistente interpretação sobre o modo como eles debateram, mesmo que eles não concordem com isso.

Deste modo, independentemente do que os autores, explicitamente ou não, alegam sobre as suas próprias teorias, essas alegações são somente uma interpretação possível. Aliás, por possuir justamente essa compreensão é que essa dissertação foi viável, tendo em vista que ela é, em seu todo, uma interpretação minha sobre ambos os autores, a qual em muitos casos entra em conflito com a auto-descrição proposta por ambos. E, na arena do debate, eles ou os seus seguidores não podem alegar “mas tal autor diz claramente o oposto”, pois nesta arena o que vale são os argumentos que subjazem e não o que os autores “claramente disseram”, não bastando uma mera auto-descrição ou “esclarecimento do autor” para sanar o debate. Assim, a minha interpretação está sendo avaliada pela minha capacidade de ter conseguido argumentar bem o suficiente minha posição e ter trazido elementos suficientes para comprovar o meu ponto nesta dissertação.

E, para tanto, precisei debruçar-me especialmente na leitura dos artigos. E é curioso, como já dito, pensar que a leitura desta sequência de artigos ocorre como um romance em cadeia. Eu estou lendo e me posicionando sobre a interpretação desta prática, desta troca de artigos, desta ação no mundo que ocorreu entre eles, sendo que Dworkin e Fish são os romancistas. A cada novo artigo, os autores tinham que compreender o que havia se passado até então e precisavam se posicionar, acrescentando um “novo capítulo”.

Outra questão importante a ser levantada é: em que âmbito(s) ocorre(m) o debate entre Dworkin e Fish? É preciso ressaltar que este debate ocorre, em sua grande parte, em um âmbito externo, apesar de Dworkin defender um posicionamento interno e apesar de Fish também se posicionar internamente em alguns momentos, nem que seja simplesmente para provar um ponto. Dworkin se posiciona externamente para poder criticar determinado modo de se olhar externamente a interpretação.185 Assim, o que eu posso concluir é que

185 Igualmente, Hart toma um ponto de vista externo sobre o Direito para poder explicar o que é o ponto de

Dworkin não critica qualquer tipo de postura externa, mas, sim, uma postura externa que seja cética. Talvez devamos encarar Dworkin como alguém que considera um pensamento externo importante do mesmo modo como devemos encarar Wittgenstein e seus escritos: como uma cura, uma terapia, contra tipos danosos de se pensar externamente.

É claro que Dworkin não admitirá que sua postura é externa, pois ele diria que nunca se pode ser externo – uma vez que seria impossível. Mas, lembremos aqui, estou a falar da minha caracterização sobre este debate e não sobre o modo como Dworkin utiliza o termo externo. Desta forma, na figuração que busquei trazer para elucidar essas incompreensões, há um externo, stricto sensu, dentro de um interno lato sensu, ou seja, realmente não há um externo lato sensu, como defende Dworkin.

E o que eu quero dizer com este “realmente não há”? Estaria eu caindo em contradição ao afirmar que não existe “realmente” um externo, como se eu estivesse fora do mundo? Não, compreender bem o modo como usei o termo “realmente” é compreender que este uso significa que, segundo a minha postura interpretativa moral sobre o mundo, a melhor descrição da nossa prática é de que “realmente” não há um externo lato sensu, porém, é claro, essa minha defesa está inescapavelmente dentro de um discurso interno,

lato sensu.

E o que é este posicionamento meu? Trata-se de um ato moral? Sim, é um posicionamento moral no sentido de que toda postura e interpretação no mundo é uma postura inescapavelmente moral, pois ela defende um dever-ser, um modo como a vida deve ser vivida e compreendida. Esta, sim, é uma grande contribuição de Dworkin para a teoria sobre o Direito – influenciando na prática jurídica – e que Fish parece não a ter captado tão bem. Porém, isso não necessariamente demonstra que Fish está errado em sua posição, mas tão somente mostra que Fish não compreendeu bem como ele está agindo quando ele age como age.

E o que é o meu posicionamento sobre este meu posicionamento? Ou seja, o que é a minha narração sobre o meu posicionamento? Eu escrever essas linhas sobre moral quer dizer que suponho estar em um ponto de vista externo, do qual posso observar que tudo no mundo é moral? Não, isso quer dizer tão somente que eu defendo esse modo de narrar o mundo e interpretá-lo, pois creio que isso confere um melhor modo de vivermos em sociedade. Associar o termo moral ao dever-se que ocorre ininterruptamente em nossas ações é conferir um maior valor aos nossos atos e isso é conferir maior responsabilidade

the law, though here external means theoretical and the particular theoretical stance is hermeneutic.” SHAPIRO (2006-2007: 1160)

para eles, o que nos faria melhor pensá-los e melhor ponderarmos em como as nossas atitudes no mundo afetariam os outros. Ou seja, não falo do meu ponto de vista externo e, é claro, a minha postura sobre “a moralidade estar presente em todos os atos” também é uma postura moral minha no mundo, a qual tenta tornar, pois, o mundo melhor nos termos daquilo que entendo o termo “melhor”. Assim, não faço algo além daquilo que todos fazemos sem mesmo admitir que fazemos: defender posturas que afetam o modo do outro valorar o mundo.

E não seria justamente nisto que Dworkin e Fish finalmente discordam? Fish e Dworkin discordam, pois, sobre como devemos narrar a prática (i) em vista do que eles entendem como a melhor narração, ou seja, em vista do que eles entendem como sendo o melhor modo do mundo ser narrado e, portanto, valorado e, portanto, vivido. Aqui, sim, eles discordam neste ponto.

Fish, mesmo admitindo, como Dworkin gostaria, que o seu posicionamento se trata de um posicionamento moral e interpretativo, poderia continuar defendendo que é melhor continuarmos a jogar dois tipos de jogos diferentes e termos noção deles – e não ser incoerente, ao contrário do que diz Dworkin. E é precisamente isso que Fish faz, apesar de nem sempre dito de um modo tão explícito quando Dworkin gostaria: ele defende que é interessante narrar que há um tipo de jogo, no qual falamos “sobre a moralidade/interpretação”, e outro jogo, no qual estamos “dentro da moralidade/interpretação”. Ou seja, conforme dividimos no ponto (2.3.)186 há um discurso

externo, stricto sensu, e um discurso interno, stricto sensu; e Fish diz que é importante existir esse modo diferente de tratar esses discursos e não simplesmente dizer que todo discurso é interno, lato sensu, tentando englobar todos os modos de interagirmos e discutirmos e esperar que isso resolva o problema.

De outro lado, Dworkin, como afirmado, critica posturas que defendem ser possível dividir o interno do externo, vez que, para o autor, a posição externa seria impossível porque toda interpretação é interna, no sentido de não conseguirmos escapar da empreitada interpretativa ou moral. E Dworkin realmente está certo no que tange às críticas à postura externa, lato sensu. Porém, ainda é possível, sim, uma postura externa, stricto sensu.

Devemos, portanto, re-pensar o modo como as discussões ocorrem e o que devemos compreender do uso de determinadas expressões em determinados contextos com determinados fins. Todos os assuntos e discussões podem ser qualificados como discussões

políticas, estéticas, morais, existenciais etc. E eu uso o termo “podem” não sob um ponto de vista abstrato da possibilidade de que “todos podem, eventualmente, dizer qualquer ideia que passar pelas suas cabeças e não há nada para impedi-los”, mas, sim, sob a perspectiva de que tudo está realmente relacionado com tudo e que todas as nossas ações podem, deveras, serem encaradas sob os diversos tipos de caracterizações, bastando um olhar atento e sensível para a multiplicidade do mesmo, o qual não é, pois, nunca o mesmo. Assim, pode-se dizer que tudo está relacionado com tudo e que tudo pode ser moral ou política ou estética etc. Mas não é para tanto que estou propriamente atentando, mas, sim, para o fato de que quando dizemos que algo é moral queremos destacar (ou desconsiderar) esse fator, esse aspecto deste ato/fato específico, e trazer uma maior (ou menor) atenção dos nossos interlocutores para essa questão. Quando alguém diz, no meio de uma discussão, "isso não é uma questão moral" ou "isso não é uma questão política", esta pessoa pode tão somente estar querendo dizer que ela gostaria que o seu ouvinte prestasse atenção em outros pontos a par das questões morais e políticas, as quais envolvem todo o nosso agir no mundo. Tal pessoa não quer dizer necessariamente que, no fundo e de forma absoluta, o debate em questão não tem nada que ver com política ou moral, pois tudo pode estar relacionado com tudo, bastando, para tanto, a capacidade do intérprete de enxergar.

Deste modo, o ensinamento de Dworkin me parece muito bom quando se trata de elucidar sobre todas as questões estarem envolvidas, de uma forma ou outra, com os diversos temas e posturas do homem no mundo – estética, filosófica, política, moral etc.187Porém, a par disso, temos que entender que os diversos termos e expressões, tais como “isso é uma questão estética” ou “isso é uma questão moral”, são ferramentas de comunicação das quais nos valemos para organizar o nosso conhecimento e, principalmente, direcionar as nossas discussões no intuito de sermos mais bem compreendidos e de utilizarmos melhor o nosso tempo. Desta maneira, assim como Dworkin acertadamente critica Fish quando se recusa a entender a distinção entre interpretar e inventar; também Fish acertadamente critica Dworkin quando este se recusa a entender a distinção sobre falar de dentro-da-moralidade e sobre-a-moralidade.

187 Encontramos nessa trocha de artigos uma percepção de Dworkin de que o modo como lidarmos com

Política, Arte e Direito é semelhante, estando todos unidos na Filosofia. O projeto de integração das várias áreas de atuação do homem no mundo ficará mais evidente no último livro seu, Justice for Hedgehogs, no qual a moralidade ganha maior relevo. De qualquer forma, como dito, o seguinte trecho do primeiro artigo que motivou este debate já mostra esse gérmen de integração: “...I end simply by acknowledging my sense that politics, art, and law are united, somehow, in philosophy.” DWORKIN in MITCHELL (1983: 270)

Para ambos saírem deste mal compreendido e se entenderem, eles devem, pois, adentrar no jogo linguístico do outro e compreender como os termos e as distinções são feitas lá. Isso não quer dizer que eles não possam discordar, como realmente discordam, no fundo, sobre se é bom ou não narrarmos o mundo do modo como cada um pretende narrar. Todavia, pouco foi debatido neste terreno entre os dois.

E o que seria um argumento neste terreno? Alguns argumentos, por exemplo, que pensassem sobre as vantagens e desvantagens dos usos de determinados modos de se jogar e de estar no mundo. Ou seja, o argumento teria que ser existencial – pois seria uma escolha singular singularíssima que afetaria o modo de se colocar no mundo, defendendo os benéficos efeitos políticos, morais, estéticos, filosóficos etc. que poderiam causar no mundo.