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2. DEBATE ENTRE ARTIGOS

2.4. Por favor, não falem mais sobre Objetividade

2.4.2. Críticas a um Fish imaginário?

Tendo isso em vista o final do último sub-tópico, Dworkin passa a construir o seu diagnóstico sobre o porquê Fish não consegue ler bem o seu ensaio. Para Dworkin, Fish reverte a ordem de resposta destas perguntas, iniciando-se pela segunda e, portanto, não conseguindo adentrar bem na primeira – ou seja, começa externamente e acaba por minar as suas relações com o interno. Dworkin diz que Fish retira sua teoria daquilo que os filósofos chamam de uma teoria da verdade-cópia (“copy” theory of truth), a qual dispõe como o mundo deveria ser para que o quadro certo-errado pudesse ser acurado. Não adentrarei aqui na discussão se Fish realmente pertence a uma tradição de teoria da verdade “cópia”, pois isso demandaria maiores explicações sobre os argumentos e defesas dos seguidores desta teoria, bem como uma acareação com a própria filosofia de Fish, esforço esse que nos retiraria o foco. Basta, portanto, entender que a crítica de Dworkin realiza contra Fish pretende mostrar que este não se atenta para o modo como as práticas sociais ocorrem no mundo, afirmando que Fish cria algum tipo de ideal de verdade ou coisa em si não atingível e, logo, passa a pensar a realidade e as condições de verdade a partir desta criação. Dworkin critica, pois, Fish, por este acreditar que, devido ao fato de não ser possível que o significado esteja “simplesmente aí” ou “auto-executável” ou “auto- compreensível” ou “independente” ou “já presente” no texto, o quadro certo-errado deve ser falso. Em vista disso, Fish, alega Dworkin, não conseguiria enxergar que há uma interpretação melhor do que outra, vez que ele nega uma distinção genuína entre interpretação e invenção.91

Pausemos um pouco e façamos a nossa pergunta: Dworkin está descrevendo bem as críticas de Fish ou ele o está compreendendo mal? Vejamos, pois: o que Fish critica é a possibilidade de uma teoria que se reputa a melhor de todas e, ao mesmo tempo, pense estar fora do jogo interpretativo, ou seja, ele critica uma teoria que alega ter os seus fundamentos calcados em algum terreno privilegiado em relação a outras teorias de interpretação ou em algum terreno mais sólido ou firme que estaria, pois, além da própria interpretação, algum terreno, por assim dizer, fora do mundo, metafísico e objetivo (no sentido de não se levar em conta a subjetividade e as construções das práticas sociais envolvidas no processo de formação da interpretação).

Diante disso, percebemos que Dworkin também não entende bem o projeto de Fish nem o objetivo das críticas dele e isso fica claro tanto nessa passagem, quanto no início do artigo quando aquele reputa este como um cético (ou quasi-cético). Trata-se, portanto, da caracterização de um Fish imaginário que perpassa o seu artigo-resposta. É bom deixar claro que, para Fish, uma interpretação pode ser melhor do que outra. Aliás, ele afirma que isso é muito comum no dia a dia, conforme diz Dworkin, sendo que o próprio Fish possui posturas que considera melhor do que as de outras pessoas, as quais, assim como Dworkin também admite, podem sofrer alterações no futuro – ambos são abertos para mudar as suas opiniões sobre algo, se outra interpretação for melhor.

É essencial, portanto, reafirmar: Fish e Dworkin podem aparentar estarem distantes, mas isso ocorre por um descompasso terminológico e não por um descompasso entre os seus pensamentos.

O desgosto tanto de Dworkin quanto de Fish em relação ao ceticismo é tão grande que ambos tendem a ser bem melindrosos e receosos quanto à possibilidade do outro ser cético sem estar percebendo, ou seja, criticam-se e analisam-se excessivamente para não correrem o risco de deixar alguém sem uma boa auto-crítica e auto-narração do seu próprio projeto. Assim, a crítica de ambos, quando bem lida em detalhes, conforme estou intentando realizar nessa dissertação, serve para mostrar que, sim, estão preocupados com o ceticismo e ambos pretendem mostrar que não é possível alguém se arrogar a postura de cético externo. E os argumentos são incrivelmente harmônicos. Enquanto Fish diz que é impossível sair das estruturas de constrição e das práticas sociais que constituem a própria linguagem, Dworkin nos mostra que a postura do cético é já também uma postura interpretativa no mundo. Ou seja, ambos nos mostram que não conseguimos sair do jogo nem do mundo, pois o mundo é a nossa linguagem e as posturas estão sempre dentro do jogo. A questão é que cada um costuma focar mais em um ponto do que em outro, mas, no

todo, os seus discursos são harmônicos, conforme venho tentando mostrar nessa dissertação.

Voltemos, pois, ao artigo-resposta de Dworkin. Percebemos que ele reputa a não- compreensão de Fish pelo fato deste pensar que ele estaria falando sobre o “puramente objetividade” e sobre “realmente verdadeiro falso”. Porém, esse não é o objetivo de Dworkin declarado desde o início no seu artigo inicial. Conforme expus na seção anterior, concordo com isso. As críticas de Fish erram o alvo por supor que Dworkin está realizando o seu projeto em determinado âmbito (externo).

Dworkin percebe e também destaca o descompasso terminológico sobre o qual eu falara há pouco:

Ele [Fish] reconhece que eu nego que todos concordam sobre questões de interpretação. Mas, por eu utilizar um vocabulário certo-errado, o qual assume que interpretações estão “simplesmente lá” [no texto], ele pensa que eu não posso negar isso consistentemente.92

A isso, eu acrescentaria que não se trata somente de termos, mas também de modos de argumentação e de estrutura de raciocínio, o qual pode, deveras, enganar um leitor apressado ou ávido por “localizar o cético e o positivista”.93

É por isso que Dworkin gostaria que Fish se atentasse para compreender a sua teoria em vez de criar um Dworkin imaginário: “Fish não é o único acadêmico literário que comete o erro de trazer uma teoria a priori de objetividade para a empreitada da interpretação em vez de compreendê-la a partir da empreitada.”94. Porém, de sua parte,

como já dito acima, Dworkin também erra ao interpretar Fish quando diz: “…a visão dele [Fish] de que uma interpretação pode ser melhor do que outra somente SE significados estivessem ‘simplesmente lá’.”95 Fish não diz isso nem concorda com essa afirmação. Uma

interpretação pode, sim, ser melhor do que outra. O próprio Dworkin percebe esse seu erro e, logo em seguida, diz que Fish está do lado “menos radical” deste tipo de pensamento, apesar de ainda estar dentro dele. Essa postura de Dworkin parece demonstrar justamente

92 “He [Fish] acknowledges that I deny that everyone agrees about issues of interpretation. But since I rely on

a right-wrong vocabulary, which itself assumes that interpretations are ‘just there’, he thinks I cannot deny this consistently.” DWORKIN in MITCHELL (1983: 291)

93 Este defeito, ocorre tanto na leitura de Fish de Dworkin, quanto na leitura de Dworkin de Fish, pois este

usa uma terminologia e raciocínios que podem lembrar céticos ou quasi-céticos. E, no mais, Dworkin tende a lançar vários céticos no mesmo saco e isso desconsidera características importantes entre eles – e Dworkin é bastante criticado por isso por diversos comentadores. E este erro é tão condenável quanto lançar Dworkin e outros intérpretes do quadro certo-errado para dentro do mesmo saco.

94 “Fish is not the only literary scholar who makes the mistake of bringing an a priori theory of objectivity to

the enterprise of interpretation instead of taking it from the enterprise” DWORKIN in MITCHELL (1983: 291)

95 “...his [Fish] view that one interpretation could be better than another only IF meanings were ‘just there’.”

certa falta de sensibilidade para distinguir entre pensamentos próximos mais diferentes (os de Fish e os de outros pensadores). De qualquer modo, vejamos como Dworkin o caracteriza.

Dworkin percebe, corretamente, que Fish não deseja se entregar completamente para o quadro certo-errado nem está disposto a cair para o campo “totalmente subjetivo”. Porém, Dworkin enxerga que Fish sucumbe à ideia de tradições e convenções de uma “comunidade de profissionais, de experts”, a qual forneceria uma forma pálida de constrição, os quais poderiam ser fornecidos pelo quadro certo-errado, se este quadro não fosse absurdo. E aqui podemos notar uma nova má-compreensão. As constrições não são pálidas, vez que elas não possuem o mesmo significado que Dworkin enxerga quando está tratando com o quadro certo-errado. Fish entende as constrições sob um ponto de vista estrutural, diferentemente de Dworkin que já os entende sob o ponto de vista de influências ou limites mais tangíveis de diversas escolas ou experts96. Novamente, há um descompasso linguístico, ocasionando, desta vez, uma má-interpretação de Dworkin.