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II. A PRESENÇA JUDAICA NO BAIRRO DA BOA VISTA

4. A ESCOLHA: A EXPERIÊNCIA DO CONTATO

4.6. ALÉM DA BOA VISTA: A NÃO-ESCOLHA

Mesmo que tivessem diferentes histórias pessoais, os imigrantes compartilhavam o iídiche como idioma, a experiência de vida nos shtetlech, a necessidade de migrar imposta pelo anti-semitismo crescente na Europa, e o fato de serem judeus, portadores de uma bagagem cultural comum. Como judeus, consideravam a solidariedade e a educação, respectivamente a tzedakah e o estudo da Torah, como práticas sociais obrigatórias. Antes de morarem juntos no bairro da Boa Vista, houve outras experiências de moradia, também coletivas, no Recife e em outras cidades do estado de Pernambuco. Há relatos de uma pequena comunidade judaica fora da Boa Vista. Rosa Bakansky cita que o marido morou com outros judeus “numa vila, só umas casinhas muito pobres, em Afogados. Mas quando eu cheguei, em 1921, eles já estavam na Boa Vista”.

Detalha Clara Sirkis:

Antes da gente chegar, eles moravam perto da Fábrica Yolanda, no lado direito, no caminho para o Barro. Era uma fila de casinhas pobres, eles iam num bonde puxado por burros. Eram solteiros ou não tinham trazido a família, ainda. Todos os idn moravam lá em Tejipió. Mas quando chegamos – em 1919 – o lugar dos idn já era a Rua da Glória, a Rua Velha, da Matriz, da Alegria.

As experiências de assentamento em cidades do interior do estado foram igualmente curtas. A falta de minian, de infra-estrutura social e de escolas, juntamente com a vontade de “estar entre os nossos” fez migrarem os outros judeus para a Boa Vista.

Segundo José Rotman, a experiência agrícola na plantação de girassóis, da colônia de judeus em Barreiros, não poderia das certo.

Tentamos, lá, ver se a gente se adaptava. Mas não tinha escola, não tinha nada. Como é que as famílias iam se adaptar? Era até difícil se encontrar gente. O terreno, o governo dividiu em dois grupos para plantar girassol. Já viu, né? Passamos pouco tempo, todos foram saindo, eu vim logo para a Rua Velha, meu cunhado me apresentou a alguns fregueses, estava em casa! Trabalhei vendendo à prestação, mas logo parti para fazer o salão para o teatro.

Em algumas cidades, sem constituir uma comunidade judaica ampla, juntaram-se famílias que observavam as práticas judaicas, reproduzindo a escala de muitos shtetlech.

Diz Guita Charifker:

Em Carpina, a gente tinha uma vida muito feliz. Meus avós paternos moravam em frente, minha avó Ana era uma pessoa muito forte, bonita, lembro do cheirinho da casa dela. Lembro também da alegria dos meus pais, Salomão e Rosa, e meu irmão Fernando pequenininho. ... De repente minha casa ficou triste, meu pai ficou rouco e ele e minha mãe sumiram. Fiquei com meus avós. Um dia estava na escola, brincando, bateram no portão e corri pra atender. Era a empregada da minha casa chorando, dizendo que meu pai tinha morrido. Foi um momento dramático. Depois já me vi em Recife andando com meu irmão numa rua, acho que era a casa de tia Sabina. ... Por que Carpina? Porque minha mãe sofria do pulmão, e Carpina tem clima muito especial, acho que por isso nós morávamos lá.

Minha mãe, que era frágil, quando ficou viúva virou uma leoa, pegou os dois filhos e foi se juntar a seu clã, a família Mandel em Natal. Lá, vivi outras coisas: a sinagoga, as festas em família, a chegada dos americanos e alguns judeus entre eles, enfim, é outra história. A gente não estava só. Era uma vida em comunidade. A gente ocupava praticamente uma rua inteira chamada Marechal Deodoro, em Natal; perto morava a família Ferman – Besser e Beila são meus amigos de infância. A gente brincava nos quintais, subia nas árvores e estudava. Eu me lembro, estudava iídiche, só não sei com quem. A família era animada e a gente vivia os Seder, aquelas festas, tudo era diferente da feliz solidão da minha pequena família em Carpina. Depois, viemos para Recife, Boa Vista.

Alguns poucos judeus moraram muitos anos nas cidades do interior. Seus filhos, entretanto, tão logo concluíam o ensino disponível, mudavam-se para o Recife. Moravam em pensões de estudantes ou com familiares. Conta-nos Maria Luterman como seu pai, Ramiro Beker, trouxe a família para a Boa Vista:

Meu pai tinha movelaria em Timbaúba e Nazaré. Quando eu e minha irmã terminamos o curso primário, não tinha mais como estudar em Nazaré, a família toda veio para o Recife. Seu Saul Goldman, que morava em Limoeiro, era amigo do meu pai e veio para a Boa Vista. Papai pediu a ele que

arrumasse uma casa para nós. Moramos na Rua Velha, numa casa comprada aos Rubinsky. Eram muitos os vizinhos judeus, todo mundo se conhecia na rua. Como muitos judeus, eu estudei no Colégio Americano Batista.

Diz Mote Keimer:

Nasci em 1931, em Timbaúba. Meus pais Sônia e Samuel vieram da Bessarábia, da mesma Sukuron, mas se conheceram em Recife, na Rua da Alegria, na pensão da minha avó Helena. ... Meu pai chegou em Recife e saiu procurando uma cidade para trabalhar e, não sei como, chegou em Timbaúba. Só sei que com oito anos eu já trabalhava. Família grande, seis irmãos, a gente lutava. Nita, minha irmã, era minha sócia. Tinha um mercado, nós compramos uma lojinha e ajudávamos papai todo o sábado. Vivi em Timbaúba até os treze anos e não tinha mais como estudar lá. Vim estudar em Recife e morava com minha avó num quarto. Depois consegui trazer toda a família para Recife. Compramos uma casa na Rua Velha, na frente da casa de tio Ramiro.

Israel Averbuch sintetiza a importância da educação para os judeus, para quem nem sempre é possível transportar, nas tantas migrações, as estruturas materiais. Ele é conciso. “Aonde for, levar seus conhecimentos, não é isso?”

Segundo Tamara Jacobovits Grinfeld:

Meus avós e meus pais eram imigrantes da Polônia. Eu nasci aqui no Brasil em 16 de março de 1929. Meu pai chegou no Brasil em 1923 e voltou para buscar minha mãe em Lodz em 1927. ... Uma parte da minha família foi para Palmares ... porque houve uma época que ofereceram terras para serem colonizadas, mas isso deu em nada e, quem ficou, ficou por conta própria. ... Outros foram para Garanhuns, onde já estava um amigo, Yusseph Gorenstein. Apesar de não ser o foco desse trabalho, investigamos algumas razões possíveis para a não-escolha de outros espaços da cidade. Nos anúncios de jornais, os preços de locação e aquisição de imóveis em diversos bairros eram semelhantes, bem como a disponibilidade de transporte público e a proximidade do potencial mercado de trabalho. Nos bairros de Santo Antônio e São José, entretanto, havia uma notória concentração de congregações e irmandades católicas citadas em raros depoimentos dos imigrantes, às quais os judeus, tendo experimentado recentemente, em seus locais de origem, violentos preconceitos religiosos, atribuíram significados desagradáveis. No Bairro do Recife, onde no século XVII se instalou uma comunidade judaica, as grandes demolições e reformas definiam o quadro de modernização e elevação de preços, tornando-o inacessível aos imigrantes que aqui chegaram com pequeno capital financeiro.