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II. A PRESENÇA JUDAICA NO BAIRRO DA BOA VISTA

6. A EXPANSÃO: NEGOCIANDO ESPAÇO, IDENTIDADE E

6.3. NEGOCIANDO A IDENTIDADE NACIONAL

Diz Anete Hulak

Toda sexta-feira fazíamos um programa musical ou conversa. Não no sábado porque tinha cobrança de klientelshk. Muitas moças naquele tempo estudavam piano. Outras declamavam. Benny Volkof tocava violino. Sempre tinha um programa e vinha gente. E se juntava e se falava de coisas fun der heim. Ainda estavam com saudades de casa.Tinham sofrido lá, tinham passado tantos anos aqui, ainda se falava assim. Era assim que a Vita Kempner se reunia no Centro Israelita.

A identidade nacional, seja para adquirir a proteção do Estado Brasileiro contra as atrocidades nazistas que vinham sendo cometidas contra os judeus na Europa, seja para manter crescente a assimilação cultural e a inserção social indispensáveis à sua permanência no Brasil e no Recife, foi sendo negociada através de diversos mecanismos. Expressou-se no comércio da Rua da Imperatriz e, depois e em sentido inverso, no uso da Praça Maciel Pinheiro. Muitas das características judaicas se mantiveram predominantes, não entre os judeus nascidos no Brasil, mas entre os imigrantes, aqueles que cultuavam suas saudades.

Apesar da tendência de estarem juntos, decorrente da política imigratória que exigia a Carta de Chamada, das instituições, representações sociais e necessidades comuns, a diversidade do perfil demográfico impunha a diversificação no uso dos espaços.

Os processos de naturalização que se multiplicavam, e o completo domínio do idioma – exigência para se naturalizar – tanto dos imigrantes como da geração nascida no Brasil, os diferentes status econômicos dos membros da colônia55, novamente se traduziriam em diferentes espaços. Além disso, leis e decretos impediram o uso público de idiomas estrangeiros, uma das mais importantes instituições judaicas.

55 Um judeu recém-chegado, conta Bernardo Dimenstein, agradeceu a seu pai a acolhida no Recife

e disse que preferia ir para São Paulo. “Como o senhor, fugindo de um campo de concentração, pretende se juntar aos ricos?” perguntou Dimenstein. “É que eu trouxe meu candelabro, as velas do shabat...” E abriu o candelabro, onde brilhavam os diamantes escondidos. Outros mal traziam o suficiente para custear a viagem.

JUDEU E CIDADÃO BRASILEIRO – O PROCESSO DE NATURALIZAÇÃO Era exigida a naturalização dos estrangeiros que pretendessem exercer funções ou cargos públicos. Diz Noel Nutels (Lessa, 1978) em conversa com José Borba, acertando sua nomeação para o Ministério da Saúde em 1937, no Distrito Federal do Rio de Janeiro:

- Você é naturalizado? - Eu?

- Já fez o serviço militar? - Eu?

- Para ser nomeado, Noel, é preciso ser naturalizado e estar em dia com o serviço militar. Condição “sine qua!”

Nunca lhe passara pela cabeça, pelo menos nos últimos dez anos, a condição de não ser brasileiro, praticamente despercebida também a seus amigos. Outros relatam a ansiedade durante o processo. Diz Germano Haiut:

Meu pai naturalizou-se brasileiro, tenho os documentos assinados por Getúlio Vargas. Lembro como se fosse hoje, nós escutávamos A Hora do Brasil, que era onde divulgavam as naturalizações. Lembro quando saiu o nome do meu pai e do choro que foi lá em casa. A emoção tomou conta de minha mãe. Eles tinham sido naturalizados. Enfim, brasileiros.

Beatriz Schvartz mostra os documentos de naturalização de seus pais.

Figura 42: Documento de naturalização “assinado por Getúlio Vargas” Cedido por Beatriz Schvartz

O TEATRO IÍDICHE – EM IÍDICHE

Através de algumas manifestações, podemos verificar o nível de assimilação cultural e os deslocamentos espaciais experimentados pela comunidade judaica no Recife. O teatro, desde sempre praticado pelos judeus, instalou-se na primeira década da presença da imigração judaica no Recife. Núcleo embrionário do Clube Israelita, depois Centro Israelita, o Club Max Nordau foi inicialmente no Cais José Mariano.

Diz Anete Hulak que “os imigrantes eram assim. Chegavam de um shtetl que às vezes não tinha nem ginásio, mas teatro tinha. Porque o povo judeu gosta de teatro, sempre gostou”.

Fala Isaac Posternak, imigrante em 1919:

O primeiro Clube Israelita, Clube da Juventude Israelita, foi no Cais José Mariano, junto dos Bombeiros, perto de onde está hoje o escritório de Getúlio Katz. Tem lá uma casa azul onde, no primeiro andar, funcionava o Clube. A freqüência era muito grande. Lá se rezava, era shul, escola, clube, nós já éramos uns 20 ou 25 rapazes mais ou menos.

Essa foi a primeira diretoria do Clube Israelita de Pernambuco. Eu vou lhe dizer o nome de cada um. Antes da fundação da Juventude Israelita, nós éramos 12 meninos em Recife e fundamos a primeira organização aqui, o Club Max Nordau – nome de um escritor. Olha aqui. José Simis, Arão Gorenstein, Pedro Krutman, Rafael Markman, Miguel Longman, esse sou eu. Digo mais. Simão Foigel, Samuel Guivertz, Isidoro Vaisman...

Na Rua da Imperatriz, 246, segundo andar, José Rotman trabalhou dias e noites para fazer um palco e um salão. Não havia ainda a orquestra de Sadigursky. Ele tocava violino... Um grande elemento. Naquela época não tinha gente na faculdade, eram todos imigrantes e, no entanto, as discussões eram fabulosas. Toda quarta-feira à noite, lá na Rua da Imperatriz, a gente fazia um kestlech, que é “caixa”. A gente botava uma caixa no meio da mesa, como se fosse uma urna, e cada um botava, nessa caixa, um assunto para discutir. A mesa era sempre composta por 10 ou 15 jovens de 20 a 25 anos, que discutiam assuntos fantásticos – sobre literatura, música, arte – e as discussões iam até mais de meia-noite.

Citado, José Rotman complementa:

Quando cheguei da Polônia, não queria ser mascate. Primeiro fui para Barreiros, trabalhei como agricultor numa colônia com uns 20 imigrantes judeus... não deu certo e um ano depois estava na Boa Vista. Trabalhei vendendo prestação, como todo mundo, mas fui construir um salão na Rua do Giriquiti, onde era o Colégio. Primeiro era na Rua da Imperatriz, depois fomos para a Conde da Boa Vista. Lá, tinha duas sociedades. Tinha a Juventude e uma outra lá. Ai eu disse: “Pra que? Vamos fazer a juventude se juntar”. Chamava-se Yungen Club – Clube dos Jovens – e foi assim. Juntamos tudo e fizemos uma biblioteca só. Eu e Adler comprávamos confeitos para distribuir,

para juntar o pessoal, de noite, fazer vida cultural. A comunidade toda ia ao teatro, nós vendíamos os ingressos nas casas. Era no salão ou era no Teatro Santa Izabel, o Samuel Campelo era o diretor. Um dia, eu pedi um cenário a ele e disse que ia encenar Madame X. Ele disse “Eu vi semana passada no cinema. Ah, eu vou assistir”. Eu respondi: “Mas não vai entender nada. A peça é em iídiche”. “Não se incomode, eu vou mesmo assim”. Em outra peça Elza tocava piano e Nair era um menino com peies. Era um esquete cantado e tocado. Sabe quem trabalhava? Não todo mundo junto, é claro. Éramos eu, José Adler, Natan Rosenthal, Anete Hulak, Polly Kirzner, Bronia Morgenstern, Bluma Lederman, tinha também o Anchel Morgenstern. Isaac Hulak, Abraão Hulak, os filhos dele também eram muito jeitosos.

O teatro iídiche em iídiche tinha, como característica, a encenação de peças que retratavam as circunstâncias de antes da migração, a vida nos shtetlech e o mundo estrangeiro que se abria. Era o teatro de estrangeiros para estrangeiros, falando das viagens, das saudades, do conflito “entre o paraíso perdido e o inferno abandonado”, da nova vida e do estranhamento. Na medida em que alguns desses temas passaram a ser não-pessoais para a geração dos nascidos no Brasil, o teatro iídiche passou a ser encenado em português, marcando o início da assimilação cultural, necessária e pretendida por muitos. No começo do “teatro novo” as peças eram de autores judeus, escritas em iídiche e, aqui, transliteradas para o único alfabeto que os mais jovens conheciam; um pouco depois, era necessário traduzir para o português; mas logo seriam as peças de cunho universal ou local que ocupariam os palcos judeus.

O TEATRO IÍDICHE – EM PORTUGUÊS: OS JUDEUS BRASILEIROS Segundo Salomão Serebrenick (1996)

No ano de 1933, a vida judaica no Brasil penetrou em nova fase, tumultuária e decadente. Como fator mais ponderável, é de se apontar o regime restritivo à imigração, instituído em 1931. Sem o constante refrescamento imigratório que caracterizou o decênio anterior, só a inércia fez com que a vida coletiva ainda prosseguisse viçosa. Em acréscimo, sobreveio no ano de 1933 o movimento nazista, cujo espectro acabou atingindo as plagas do Brasil; fascinados pelo prestígio alemão, alguns componentes de um partido brasileiro quiseram, numa imitação ingênua, disseminar pelo Brasil o mito racial mas, mesmo então, com todas as condições conjunturais favoráveis, tanto no país como no campo internacional, a tentativa fracassou redondamente, por falta de ressonância da parte do povo.

Liberta dos sobressaltos provocados por esse ensaio anti-semita, a coletividade judaica passou, entretanto, a sofrer os efeitos de certos atos legais restritivos às atividades de estrangeiros em geral, um de tais atos, baixado em 1939, exigindo que os jornais em língua estrangeira inserissem a tradução dos artigos publicados, e o outro, em 1941, interditando totalmente a publicação de jornais em línguas estrangeiras; além disso, ficou praticamente proibido usar o iídiche nas reuniões e assembléias.

A esses atos políticos, soma-se o fato de serem, alguns judeus do Recife de então, os nascidos na Boa Vista, alunos do Grupo Escolar Manoel Borba ou Maurício de Nassau, dos colégios Americano Batista, Oswaldo Cruz, Carneiro Leão, Pinto Júnior, do Ginásio Pernambucano e da Escola Normal. Se em casa falavam iídiche, se tinham freqüentado na infância o Colégio Israelita ou a yiddish schul, eles falavam português. Eram brasileiros natos e seus pais eram naturalizados. Eram judeus e não eram imigrantes – as histórias de viagem, da vida nos shtetlech, eram ouvidas com atenção mas não faziam parte da experiência pessoal.

Germano Haiut, representando esse tempo, relata:

Eu me lembro muito bem que dona Berta Margolis fazia traduções fantásticas de Scholem Aleichem para o português e me intimava. Em quase todas as festas da comunidade eu era obrigado a fazer um esquete, ou dizer uma poesia, ou ler um conto. Aquilo me dava muito prazer porque me dava acesso à cultura judaica, tão difícil da gente receber, porque era basicamente em iídiche e, mesmo quem falava bem, tinha dificuldade para ler os caracteres hebraicos com fluência. Ela tinha essa facilidade de traduzir e transliterar. Eu tive a oportunidade de fazer peças em iídiche que ela traduziu e colocou em caracteres latinos. Mas depois, nós passamos a encenar peças de autores nacionais e internacionais, não necessariamente judeus.

Diz Anete Hulak

Em 1958 levamos a última peça que meu marido escreveu. Foi “Remorso de um Traidor”. Quando comemoravam o aniversário de Israel, Gilda Kelner declamava em português e David Hulak em iídiche. Sempre tomavam parte, porque a gente sempre botava os filhos que depois nos substituíram. Formaram o Teatro dos Estudantes Israelitas de Pernambuco. Eram Haiut, Hulak, Jassa Lederman, Eva Cohen, outros. Eles apresentavam peças no Santa Isabel, muito boas, mas em português. Depois deste grupo não teve mais nada. Tem tanto jovem agora, e nada. Vocês, gente formada, gente com cultura, deviam formar um Centro Dramático, porque é muito importante. Em português mesmo, porque agora ninguém fala iídiche. Mas não existe comunidade judaica sem teatro, fique certa disso.

Do alto de seus mais de cem anos de vida, Anete conta uma estória, um texto que ainda pretende encenar. Sabe-se lá que verdade histórica há nisso? Segundo ela, essa história cabe “exatinho” na Boa Vista. “É a nossa história, em qualquer lugar, a história do nosso tempo. Todos nós perdemos nossos pássaros.”

O homem, já velho, chega de navio em Israel. Na alfândega, anotam o que ele leva na bagagem. Além de umas poucas peças de uso pessoal, leva uma cesta com pássaros. Pergunta o fiscal, espantado:

- Pássaros, sim. Na Polônia, as crianças costumavam dar comida aos pássaros. Como não tem mais crianças na Polônia, resolvi trazer os pássaros para que as crianças de Israel os alimentem. Assim, quem sabe, sobrevivam...

“É claro que ele não está se referindo aos pássaros. É uma metáfora, sabe? Os judeus são cheios de metáforas, têm que viver com elas”.

E o teatro iídiche foi sendo falado em português, depois pensado em português, tomando a face artística internacional. Para alguns era o fim, para outros o recomeço de Babel. Tempos mistos. Eram os descendentes dos imigrantes se inserindo na cena brasileira, fazendo parte de sua história. Eram os imigrantes que, ao se naturalizarem, demonstravam saber ler e escrever a língua portuguesa e declaravam “renunciar, para todos os efeitos, à nacionalidade anterior”.

Figura 43: Registro de naturalização: o naturalizado renuncia a sua naturalidade anterior Cedido por Beatriz Schvartz