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II. A PRESENÇA JUDAICA NO BAIRRO DA BOA VISTA

5. A CONCENTRAÇÃO: A CONSTRUÇÃO DA APARÊNCIA

5.2. JUDEU, RUSSO, COMUNISTA: QUEM QUER UM VIZINHO ASSIM?

Desse modo o grupo de imigrantes judeus no Recife cresceu rapidamente ao final da Guerra. Diversificou-se, também. As famílias se recompunham. Chegavam os que vinham dos pequenos shtetlech, de cidades médias e grandes do leste europeu como Lvov, Lodz, Odessa e Viena. Chegavam

os que presenciaram as inovações da Grande Guerra para encontrar os que aqui estavam, na luta para ganhar a vida, sabendo pouco, muito pouco33 a respeito do que acontecia na Europa ou no resto do Brasil. Não havia uma grande imprensa iídiche; o rádio ainda não era, como logo viria a ser, o grande fornecedor de informações. A imigração, que antes era predominantemente individual, passou a ser familiar e apoiada por agências internacionais judaicas.

Enquanto a heterogeneidade do grupo vai se refletir nas diferenças de possibilidades de inserção, outro aspecto define a unidade do grupo: todos carregavam consigo a experiência de migrar, de serem fugitivos da mesma guerra ou dos mesmos preconceitos. O estranhamento entre imigrantes e recifenses foi recíproco.

Do crescimento demográfico do grupo decorre também uma nova relação entre os imigrantes e a sociedade local. Na medida em que se implantavam as instituições – idioma, culinária, religião e outras práticas sociais cotidianas – evidenciava-se a identidade cultural do grupo. Se antes eram “estrangeiros”, a partir desse momento passaram a ser claramente identificados como “judeus” e esse status estava associado a outros significados.

A imprensa publicava com insistência a teoria do deicídio segundo a qual os judeus eram responsáveis pela morte de Cristo, alimentando a convicção popular de que o judeu era mau. Nas tradicionais Procissões do Fogaréu, realizadas na Semana Santa, que marcaram a memória de várias gerações recifenses (Sette, 1948), havia uma enorme correria para se encontrar e queimar os judeus que mataram Cristo. Segundo Gilberto Freyre (1951), o ponto alto era a malhação e a queimação do Judas, emblemático representante de todos os judeus traidores.

Além de judeus, na voz popular esses imigrantes eram “russos” e “todo russo é comunista”, sendo o “comunismo”, como o “assassinato de Cristo”, também deplorável. Essa classificação de “judeu russo comunista”, que

33 Nessa época não existia no Recife uma imprensa em iídiche e os imigrantes, em sua maioria,

ainda não liam em português. A primeira transmissão radiofônica, experimental e inaugural segundo reportagem do Jornal do Brasil, aconteceu a 7 de setembro de 1922, no Centenário da Independência, no Rio de Janeiro, então capital federal. Só no ano seguinte o rádio passaria a fazer parte do cotidiano brasileiro.

persistiria34 por décadas seguintes, estava carregada de conotações políticas, sociais e religiosas que impunham claros limites entre “nós” e “os outros”.

Figura 33: Pixação fazendo associação entre judaísmo e comunismo. Viena, 1922 Fonte: American Jewish Press, 1927

“NÓS” E “OS OUTROS”

Uma parte do bairro da Boa Vista já havia sido escolhida pelas suas características de localização e delimitação e pela disponibilidade do estoque imobiliário necessário aos imigrantes judeus. Isso, entretanto, ainda não era suficiente para responder, espacialmente, à distinção entre “nós” e “os outros”. A escolha de certos imóveis e quadras, relatada como a principio aleatória, viria a se mostrar satisfatória e atrair, por esse motivo e pela prática judaica de residência compartilhada, um número cada vez maior de vizinhos conterrâneos.

Outra mudança importante no perfil do grupo se dá pela chegada das mulheres e crianças, pela recomposição ou nova composição de famílias. Até antes do final da Guerra, os rapazes desacompanhados se alojavam em quartos ou cômodos de aluguel ou, mesmo, em uma vila em Tejipió, na periferia do Recife. A chegada das famílias define novos modos de ocupação dos imóveis do Bairro da Boa Vista. Diz Isaac Posternak:

Encontramos meu pai feliz e vaidoso. Até fretou um automóvel do cais do porto para a Praça Maciel Pinheiro porque, para receber a família, ele alugou na Praça uma casa onde hoje é o Banco Nacional do Norte. No primeiro andar nós moramos, 342, não esqueço o número. Tivemos que saltar na esquina da

34 A Delegacia de Ordem Política e Social DOPS observava atentamente. Mantinha, em seus

arquivos (hoje depositados no Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano) listas de nomes, endereços e atividades dos judeus no Recife, como se pode conferir nos anexos 1 e 2.

Rua da Imperatriz quando estavam terminando de fazer o calçamento. Eu vi o Recife crescer comigo. Vi construir a Rua Manoel Borba, o Hotel Central. Ali era um chafariz de água...

A presença das mulheres dentro da nova composição demográfica faz- se modificadora, cabendo aqui salientar as diferentes noções de espaço público e privado. Descrevendo os contornos gerais dos papéis masculino e feminino dentro dos shtetlech, Barbara Meyerhoff, (citada por Ewen:1987) aponta suas atribuições.

Aos homens, cabiam as importantes decisões – quando o Messias chegará, quais os significados da Torah, quais os atributos divinos. As mulheres decidiam quanto e como gastar com cada necessidade da família, sobre a educação dos filhos, quando as filhas deveriam casar ou como preparar a alimentação kasher. Em última instância, os homens eram responsáveis pelas obrigações sagradas da família na esfera pública da sinagoga e as mulheres eram responsáveis pelas obrigações profanas da vida privativa da casa, obrigações que com freqüência mantinham os homens estudando longe da arena pública do shtetl enquanto as mulheres raramente ficavam confinadas no espaço privado do lar.

Ao relatarem as práticas cotidianas no Recife, as mulheres enfatizam os encontros nos pátios e quintais, onde “de tudo se dava conta, tinha sempre alguém para ajudar”. A grande diferença entre os judeus e os goim (em iídiche, não judeus), é, mais que religiosa, de cunho cultural. Judeus e não judeus procuraram deixar evidente a diferença entre “nós” e “os outros” no Recife.

OS CONTRABANDISTAS DA LIBERDADE

Sair de Ananiev era tão difícil quanto ficar em Ananiev. A Ucrânia não deixava sair, a Romênia não deixava entrar. Depois da carta do Brasil, homens misteriosos começaram a aparecer rondando a casa, sorrateiros. Eram os manipuladores da evasão, os contrabandistas da liberdade.

Orígenes Lessa (1978)

As circunstâncias que trouxeram os judeus para o Recife eram semelhantes – o longo medo dos pogroms e, para os que chegaram depois de 1918, o cenário da Europa combalida pela Grande Guerra. Aos medos anteriores somava-se, agora, a dolorosa experiência da viagem.

Cada viagem é misto de prazer e angústia, de deixar o velho conhecido e encontrar o novo desafiante (Rouanet, 1986). Para os imigrantes judeus, acrescentava-se deixar naquele lugar, dos pogroms e da guerra, ou os que não podiam trazer por serem velhos que não suportariam os perigosos caminhos da

fuga, ou por serem pobres que não podiam custear a viagem. Numa dolorosa seleção, “vinham os homens e mulheres jovens, ficaram os velhos, as viúvas, os órfãos e os pobres”.

Os que, no Recife, já haviam conquistado “meio de vida”, mandavam emissários, citados em diversos depoimentos, buscar as famílias, especialmente as mulheres que, desacompanhadas, eram as únicas responsáveis pela prole e pelos genitores do casal. Essas mulheres, velhos e crianças, os judeus dos shtetlech, dos pequenos povoados que às vezes não contavam com mais que meia dúzia de famílias, entraram em contato com outro tipo de gente, com a “banda podre do império russo desmantelado”, com os “contrabandistas da liberdade”. Eram os cossacos ou mujiques35, os mesmos agressores de longas datas, ainda não findas. E havia os guardas das fronteiras, a quem era necessário “compensar com largas gratificações”.

Diz Isaac Posternak:

Depois que terminou a guerra, levou quase um ano; só em 1919 recebemos a primeira correspondência, papai contando que estava preparando a nossa chegada, que ia um emissário dele até a Bessarábia se comunicar conosco. Realmente esse emissário chegou, trouxe algum dinheiro... Minha mãe vendeu a casa, que deu para atravessar a fronteira. Naquela época a Rússia não deixava sair e a Romênia não deixava entrar. Nós tínhamos que pagar às duas partes de contrabandistas para atravessar a fronteira, que era uma espécie de rio feito o Capibaribe, que separava uma cidade da outra, separava os países.

Em entrevistas recentes, realizadas com os que eram crianças quando imigraram para o Brasil, o tema só foi abordado quando, ao fim da parte formal, juntavam-se outros imigrantes e convidados. Certas palavras continuam ditas em iídiche. Em algumas circunstâncias, pediam que desligasse o gravador.

Não se utiliza, nesse trabalho, metodologia de análise do discurso. Cita-se, entretanto, uma justificativa apontada para as palavras ditas em outra língua.

Tem coisa que a gente quer esquecer, que nem me lembrava mais. Por todos esses anos, tinha esquecido do medo de ser apanhada no meio do caminho. Tanta gente foi apanhada... Antes de sair vi velhos chorando quando souberam que os contrabandistas, contratados para cuidar da fuga, tinham

35 Cossacos eram os aldeões ucranianos, por muitos séculos subjugados pelos russos e pelos

poloneses, que atacavam sistematicamente os judeus que eram empregados como coletores de impostos. Mujiques eram os camponeses da Polônia que, morando ou trabalhando lado a lado com os judeus nos shtetlech e nas feiras, com freqüência iniciavam pogroms ou ataques violentos, com ou sem estímulo das autoridades.

matado seus filhos... Sonhei com isso várias vezes. Mas, depois, passou. São só umas palavrinhas, deixa ficar em iídiche mesmo, que é a língua do outro tempo, da vida de que não era para ser a minha. É o medo da morte.

Você sabe de onde vem a superstição sobre sapato emborcado? Sabe aquela estória de que deixar o sapato emborcado chama a morte de parente? É assim. Na hora de viajar, os judeus pediam a outros judeus, sapateiros, que fizessem um sapato com salto oco, onde colocavam as jóias e o dinheiro. Se um cossaco ou um contrabandista atacasse, só veria as jóias de emborcasse o sapato – e a pessoa estava morta. Que nem o santinho do pau oco, onde os bandeirantes – alguns judeus, sabia disso? – colocavam ouro para se livrarem da cobrança do dízimo para a Coroa Portuguesa. Sabe a estória... A gente inventa cada uma! Faz séculos que a gente aprendeu a se virar.

A literatura dos imigrantes judeus – escritores brasileiros36 e os depoimentos dos imigrantes do Recife são plenos de relatos do pavor da viagem, do medo que persistia quando, aqui, se formavam as novas comunidades, e do conforto de estar “entre os seus”. A soma desses três sentimentos não é componente desprezível na experiência urbana de apropriação coletiva de uma parte do território da cidade. Expressa-se na necessidade de permanecerem reunidos, no uso dos edifícios residenciais e institucionais e, principalmente, no uso dos espaços públicos.

5.3. AS INSTITUIÇÕES: “VÍCIOS” E “MODOS” MODELANDO A CIDADE