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VONTADE DE FICAR

7.1. MARCAS NA CIDADE: O ÓBVIO E O OBTUSO

Apesar da prática de se manterem concentrados em torno de suas instituições, os judeus precisavam ocupar novos espaços do Recife. As poucas famílias do início do processo de imigração se contavam, no final da década de 1930, em centenas (Reis, 1971). A comunidade israelita do Recife, maior, diversificada, manteve a ocupação do bairro da Boa Vista – tendência que só viria a se modificar marcadamente a partir da eclosão da Guerra Mundial II – mas vai ampliando os limites. Pode-se verificar como a sociedade local respondeu e marcou o espaço quando os judeus, pouco a pouco, avançaram na ocupação de outros espaços da cidade. Toma-se como foco inicial a Rua Visconde de Goiana.

Adotamos a visão de Barthes para quem, na estrutura da cidade, é possível ler as marcas do seu processo e dos seus agentes de produção. Um dos pioneiros no estudo da semiologia, Roland Barthes diferenciou-se dos demais semiólogos estruturalistas seguidores de Saussure por acrescentar, à noção acadêmica de signo, a noção de sujeito. No seu Le degré zero de l’ecriture (1953) defende que o signo, já carregado de sentido cultural, recebe um reconhecimento particular por parte do sujeito. Essa proposição tornou-se mais nítida em 1973 com a publicação de O Prazer do Texto (1985) e, em A Câmara Clara (1979)59, Barthes torna óbvia essa dualidade mostrando que, sem a intervenção pessoal e subjetiva do observador – que pode ver num signo muito mais que um registro realista ou a mensagem codificada – a fotografia ou a imagem da cidade ficariam limitados ao registro documental. Não há esse limite.

59 Os três livros são citados e comentados no livro L’obvie et l’obtus, Essais Critiques III, Editions

Partindo de um questionamento sobre o conteúdo da mensagem imagética, discorre sobre o que ele apresenta nos termos de conotação e de denotação e chega aos conceitos de óbvio e obtuso. Há três níveis de sentido a distinguir: nível informativo – da comunicação; nível simbólico – da significação intencional, o léxico geral, comum dos símbolos, onde se encontra o sentido óbvio; e o nível da significância, onde se percebe “aquilo que é demais”, o suplemento, o sentido obtuso.

A partir de seus comentários sobre o universo simbólico presente em vários trabalhos fotográficos “que transformam a pintura numa verdadeira língua: nela tudo significa, tudo é metáfora” e na imagem, “escritura visível que precisa ser operada, atraída para uma práxis desconhecida”, pretendemos ler algumas marcas visíveis nas ruas da cidade.

DEUS É BRASILEIRO, CRISTO É CARIOCA E A BOA VISTA É CATÓLICA Matéria publicada no JORNAL DO BRASIL em 12 de dezembro de 1931 mostra como a sociedade brasileira afirma sua identidade católica e indica uma das respostas à chegada dos forasteiros e imigrantes – respostas que não são necessariamente conscientes ou explícitas, mas que se incorporam à imagem da cidade.

Cerca de 400 pessoas subiram até o Morro do Corcovado para acompanhar de perto a inauguração da estátua do Cristo Redentor. A obra foi concebida pelo engenheiro brasileiro Heitor da Silva Costa, responsável pela estrutura da peça, e pelo arquiteto francês Paul Landowski, encarregado da escultura. A estátua, cuja construção demorou cinco anos, tem 30 metros de altura e fica 710 metros acima do nível do mar. O ponto alto da festa ocorreu à noite, quando, da Itália, Guillermo Marconi, inventor do telégrafo sem fio, ativou o sistema de iluminação do Cristo Redentor. De dentro do iate Electra, no Lago de Gênova, Marconi enviou um sinal radiotelegráfico para o Brasil. A onda eletromagnética viajou no espaço e iluminou a estátua exatamente às 19h15. No Recife, em diferente escala, outras marcas surgiram nas ruas, nas fachadas do bairro da Boa Vista. Os imigrantes que desembarcaram no porto do Rio de Janeiro, que aí fizeram a “quarentena” e, só depois, pegaram um navio para chegar ao Recife, não fazem referência a esse Cristo, a essa marca na paisagem. Outras marcas são, também, ignoradas.

Ao andar pelas ruas do bairro da Boa Vista que foram densamente ocupadas por judeus, alguns detalhes saltam aos olhos. São tantos60 os santinhos nas fachadas, em azulejos, nichos, estátuas... São possivelmente as marcas, de que trata Barthes, que tornam possível ler, na estrutura da cidade, os seus processos e agentes de produção.

Há, certamente, várias possibilidades de encontrar marcas, e ainda mais diversos são os métodos para identificá-las ou interpretá-las. Barthes se refere a marcas de semelhança ou predominância, marcas destoantes e outras. Encontramos marcas católicas que destacam a ocupação de determinadas residências. O estudo de um pequeno quarteirão serve como amostra.

Figura 48: Rua Visconde de Goiana. Recife, 2003 Foto de Haroldo Bernardino

A Rua Visconde de Goiana é prolongamento natural da Rua da Glória que, sem mudar de direção, ao ultrapassar a Rua de São Gonçalo/Rua da Santa Cruz, por razões de toponímia histórica, ganha diferente denominação. O primeiro quarteirão, trecho compreendido entre as ruas da Santa Cruz e José de Alencar, foi escolhido para esse estudo. Com 200 metros de extensão e, de fachada a fachada, largura variando entre 6,50 e 10,20 metros, agrupa 19 imóveis no lado par e 21 imóveis no lado ímpar. São várias as marcas católicas

60 “Tantos” carrega, intencionalmente, a relatividade do fato. Refere-se mais à densidade que à

expostas nas fachadas. Na casa 23, um painel de azulejos mostra Santo Antônio; nas casas 55 e 64, aparecem São Pedro e Nossa Senhora da Conceição; na casa 76, Nossa Senhora segura o Menino Jesus e, na casa 94, um nicho abriga um Santo Antônio.

Procurei referência em escassa bibliografia. Em livros recentes, com belas ilustrações, centenas de painéis de fachadas de azulejos portugueses e franceses da cidade do Recife, devidamente fotografados e categorizados, nenhum Santo Antônio, nenhum São Pedro ou São José. Ao arquiteto e historiador da cidade, professor José Luiz Mota Menezes61 perguntei sobre azulejos de santos nas fachadas. Falou-me brilhantemente dessa tradição portuguesa que caracteriza alguns lugares de Lisboa, Porto, de cidades e povoados aquém e além dos mares. “E no Recife, Professor?” Respondeu-me. “Essa é uma tradição que não se implantou fortemente no Brasil”.

Os azulejos estão lá. Pretendi investigar de onde ou quando vieram. Se a resposta, dada por uma velha moradora, não responde pelo conjunto, esclarece ao menos a presença de um. Transcreve-se aqui parte do diálogo.

- A senhora sabe que santo é esse? - É um Santo Antônio, tá vendo não?

- Tou vendo sim, mas entendo pouco de santos. - É um Santo Antônio.

- Santo Antônio, aquele que tem fama de casamenteiro? Tou gravando. Pode? - Vai. Pra que? É esse mesmo. Meu pai que botou ele aí, faz muitos anos. - Então, a senhora estava no caritó!

- Que nada, menina. Quando eu era jovenzinha, chovia pretendente. Eu até que achei um bom casamento. Agora, viúva velha, ficou mais difícil. Mas pode me chamar de viúva alegre que eu não me importo. Ou de velhinha simpática. Velha um c... Danou-se. Tá gravando? Mas eu tinha uns dez anos, só. Ainda não corria o risco de ficar encalhada, nem eu nem minha irmã. - Então, por que um Santo Antônio na frente da casa?

- Meu pai já morava aqui antes de casar, era uma rua tranqüila, ele e minha mãe gostavam daqui, junto da minha avó. Aí, perto da guerra mais ou menos, começou a chegar um bando de estrangeiros, a gente chamava eles de russos, galegos, mas eles eram judeus.

- Quando?

- Antes da Guerra de 39. E eram muitos... Tinham loja na Imperatriz. A rua continuava sossegada mas os galegos, que ficavam na Rua da Glória, começaram a avançar. Logo ali na esquina, alugaram um quartinho, um

61 Desde os anos 1980 o professor José Luiz me incentiva a estudar a presença judaica na Boa

quintal da casa. Depois foram outros, acho que naquela casa dali. E eles chegavam de bando, família grande, pai, mãe, avô, tio... Nada contra, você sabe, mas cada macaco no seu galho fica melhor. Uma delas era muito minha amiga, o irmão queria namorar comigo, caritó que nada! A gente não tinha nada contra, mas os outros tinham. Aí, sempre que vinha alguém visitar, perguntavam a meu pai se ele era judeu, porque ele também era agalegado, assim que nem você. Mas era porque o avô dele era português, parece que a avó era holandesa, sei não. Aí ele, que não queria ser confundido, tudo quanto era judeu era comunista, pecado, imagina, colocou esse Santo Antônio na fachada. Já tinha ali, na casa de um vizinho, um São Pedro, a mulher disse que tinha trazido da Europa, ela só falava daquela viagem para a Europa, e botaram outro e outro, e a rua ficou cheia de santo. Dava até para fazer procissão. Nesse quarteirão, quer dizer. Agora já tiraram muitos. Mas hoje, parece que está voltando a moda. Esse é do meu tempo de menina, aquele ali também, não sei se tem do tempo de antes...

Diz Barthes que uma das formas de constatar a identidade é verificar a alteridade – a marca simbólica do outro. A Rua Visconde de Goiana, espaço que os judeus pretenderam “invadir” a partir da segunda metade da década de 1920, apresenta essas marcas e outras, que se expressam nas relações de vizinhança entre algumas instituições. As marcas, se pequenas, existem. É necessário caminhar e, no caminho, mudar a escala do olhar, extrapolar o nível informativo do sentido – da comunicação, adentrar no nível simbólico – “da significação intencional onde se encontra o sentido do óbvio” – e chegar no nível da significância, “onde se percebe ‘aquilo que é demais’, o suplemento, o sentido obtuso”.

A RUA A CASA O DETALHE

A RUA A CASA OS DETALHES

Figura 49: Detalhes e fachadas de casas na Rua Visconde de Goiana. Recife, 2003 Fotos de Haroldo Bernardino

As marcas da cidade não têm caráter apenas religioso. Os santos ultrapassam seu significado óbvio. Os azulejos que revestiam fachadas inteiras, nos tempos coloniais, vão sendo retirados e, alguns, substituídos por novos, mantendo algo do caráter arquitetônico inicial do imóvel, como afirmaram os que realizaram a substituição. Os santos nas fachadas, mais recentes, afirmam a herança católica nacional e, como disse a entrevistada, “tudo quanto era judeu era comunista, pecado, imagina”, livrando dos pecados nas imediações da sede do Partido Comunista. Na Rua Visconde de Goiana, não na singularidade do detalhe mas na força do conjunto, num quarteirão interditado aos judeus, o

espaço fala por si62. É a “pintura em que tudo significa, tudo é metáfora”, a imagem que é “escritura visível que precisa ser operada, atraída para uma práxis desconhecida”.

Figura 50: Detalhes nas fachadas da Rua Visconde de Goiana. Recife, 2003 Fotos de Haroldo Bernardino

“E naquela casa ali, também tinha um santo, tiraram outro dia”, completam os transeuntes interessados em contar parte da história.

Figura 51: Uma casa na Rua Visconde de Goiana. Recife, 2003 Foto de Haroldo Bernardino

62 Não por acaso, achamos, o Clube e a União de Guardas Municipais está no quarteirão vizinho.

Figura 52: MAPA DA PRESENÇA JUDAICA EM 1940 E MARCAS DE INTERDIÇÃO EM 2002

7.2. PARA ALÉM DOS LIMITES: NA MADALENA, ESTRANGEIRO ERA