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I. JUDEU? QUE É ISSO?

3. DE JERUSALÉM A RECIFE: UM LONGO CAMINHO

3.3. O CONFINAMENTO: DO GUETO AO PALE

A partir da difusão das idéias da Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade entre os homens – e com a emancipação promovida por Napoleão Bonaparte na França e nos territórios conquistados, os judeus se inseriram, por um breve período, nas cidades da Europa Central. Na Europa Oriental, onde viviam mais de seis milhões de judeus, entretanto, iniciou-se um processo de concentração que mantinha a segregação espacial.

O PALE OU ZONA DE CONFINAMENTO

As restrições drásticas impostas aos judeus na Rússia aconteceram no tempo do Iluminismo, a partir do século XVIII, quando reinavam os últimos czares. Impedidos de viver na Rússia desde os tempos medievais, os judeus foram introduzidos no Império Russo quando este anexou parte da Polônia, residência dos judeus desde a expulsão da Península Ibérica no século XVI. Uma lei de 1772 e, em seguida, um estatuto de 1804, definiram as áreas nas quais esses judeus poderiam viver. Em 1791 Elizabeth II, Czar da Rússia, estabeleceu o Pale, ou Zona de Confinamento ou Cherta Osedlosti em russo – um território para onde foram enviados 90% de todos os judeus do Império. Limitado a norte e sul pelos mares Báltico e Negro, a oeste pelos impérios austro-húngaro, prusso-germânico e otomano e a leste pelo Império Russo, o Pale consistia das

províncias russas Ucrânia, Lituânia, Bielorrússia, Criméia, outras províncias anexadas por Catarina II na partilha da Polônia, então dividida entre Rússia, Prússia e Áustria, correspondendo parcialmente ao território depois denominado Cortina de Ferro.

Figura 10: A Zona de Confinamento em 1897 Fonte: Beyond the Pale.com

Se inicialmente os judeus puderam morar em vários locais no Pale, a partir de 1882 um conjunto de leis restringiu suas atividades profissionais, a propriedade de terras e a permanência residencial em zonas rurais. Os aproximadamente seis milhões de judeus agora russos, aos quais se somaram judeus expulsos dos impérios vizinhos, foram forçados a viver em shtetlech, a seguir analisados. Não se adequando à filosofia do pan-eslavismo, que pretendia unificar todas as populações residentes no Império Russo como “um só povo, uma só gente, uma só língua, uma só religião”, os judeus, resistentes, deveriam ficar em áreas urbanas, onde haveria a possibilidade de assimilarem a cultura “nacional” e se converterem.

O processo de industrialização na Europa Oriental, como no restante do mundo, levou a uma migração para as cidades, tanto de judeus como de não- judeus. Em 1897, mais da metade da população judaica do império czarista morava em cidades grandes. Meio milhão de judeus, quase 10% da população judaica mundial, morava em apenas três cidades: Varsóvia, Odessa e Lodz. Muitos judeus se recusavam a ir para as cidades superpovoadas, onde viveriam em condições habitacionais inferiores, sempre forçados a abandonar o judaísmo e freqüentemente “convidados” a converter-se, e se mantinham nos shtetlech. Tinham alto nível educacional, contrastando com os vizinhos camponeses não- judeus que, insistentemente, manifestavam reações contrárias à permanência judaica. Alguns imigrantes do Recife lembram da propaganda oficial e dos violentos movimentos populares forçando a saída dos judeus.

Figura 11: Poster anti-semita. Lituânia, 1927 Fonte: coleção particular

O começo do século XX apresentou grandes modificações na estrutura social e política do mundo. A instabilidade do Império Russo e a violência dos pogroms provocaram a maior onda emigratória da história judaica, só interrompida quando, com a ascensão do nazismo, se reinstituíram os guetos e os campos de concentração. Os judeus se dirigiram para a Europa Central mas, principalmente, para a América. A Guerra Mundial I iniciada em 1914, a Revolução Russa de 1917 e os movimentos anti-semitas que se disseminavam,

culminando com o Holocausto da Guerra Mundial II, faziam urgente a necessidade de emigrar. Nos Estados Unidos, mais de 1 milhão de judeus aportou entre 1850 e 1900. Estabeleceu-se, então, pelo Immigration Act de 1921, um regime de cotas que limitava a entrada de pessoas provenientes do leste europeu. Por essa e por outras circunstâncias, o Brasil entrou na rota de destino das emigrações, como se verá adiante.

O SHTETL

Optamos por não traduzir a palavra shtetl e manter sua forma iídiche por não encontrarmos, em português, um equivalente aceitável. Comumente traduzido como “aldeia” ou “vilarejo”, o shtetl – ou sua denominação russa mestechnos – não é uma forma judaica de morar mas, sim, uma diferente estrutura urbana, peculiar do leste europeu.

No Brasil e em outros países de colonização portuguesa e espanhola, o berço de várias cidades é a reunião de um cruzamento de estradas, um ponto de parada para repouso e comércio e, com freqüência, um marco religioso – um mosteiro, uma abadia ou uma igreja. Nessas imediações se instalam burgos ou feiras e arruados de casas habitadas por populações que se dedicam ao comércio e à prestação de serviços. A população rural se espalha, em baixa densidade, nas zonas de produção, e vai “à cidade” nos dias de feira ou de missa.

No leste europeu – na Rússia européia, nos Bálcãs e na Zona de Confinamento de onde emigraram os judeus que chegaram, no início do século XX, ao Recife – a relação entre as populações rurais e urbanas, e dessas com o espaço circundante, é diferente. As pessoas que se dedicam à produção agrícola, artesanal ou fabril de pequeno porte, se reúnem em núcleos residenciais de cinco, dez, cinqüenta, cem e raramente mais que duzentas famílias, em shtetlech, de onde partem, diariamente, para a zona de produção ou para as feiras nos arredores.

Algumas poucas cidades grandes pontuam a geografia local; algumas cidades médias ou shtot concentram o comércio e a prestação de serviços especializados; nos shtetlech baseia-se a produção agropecuária e artesanal e a atividade de comércio itinerante, de feira em feira, de vila em vila. O historiador Bernard Weinryb, citado por Joshua Rothemberg (1981), dá a seguinte distinção:

Um shtetl ou vilarejo na Europa Oriental difere da estrutura que, na América, recebe esse nome. Na América, o vilarejo serve como um centro de comércio e serviços para a população que vive espalhada pelas fazendas circundantes. Na Europa Oriental, a população de agricultores mora em casas concentradas em vilarejos ou shtetlech, com campos circundando a área habitacional. Numa tradução literal, shtetl seria “aldeia” ou “pequena cidade”, em contraposição a shtot “cidade média”. Os judeus do leste europeu faziam clara distinção entre um shtetl e um shtot e entre os modos de vida e relações sociais em cada um deles. Em iídiche, o contraste entre um shtetl e um shtot fica evidente nos adjetivos kleinshtetldik (provinciano, caipira) e groisshtotish (da cidade grande, cosmopolita). Quando se chama alguém de kleinshtetldik ou groisshtotish, sabe-se exatamente a diferença.

Não se pode falar de shtetlech como se existisse um padrão, como se fossem semelhantes. Citados por Rothenberg, alguns famosos escritores judeus falam de seus shtetlech.

Diz Litwin:

Entre Biala e Mezrich há apenas meia hora de trem – e quanta diferença entre esses dois shtetlech. Mezrich escolheu uma ocupação – a fabricação de pincéis e vassouras – que a faz inteiramente independente das comunidades vizinhas, e até de toda a Polônia. Basta que a feira de Leipzig exista, e Mezrich não precisa temer nem a falta de renda nem o anti-semitismo. Quando chega em Biala, você esquece que vive no século XX. O Chassidismo e seus rebes ortodoxos imperam. Existe uma diferença de pelo menos um século entre os dois shtetlech.

Yankel Yakir, escritor da Bessarábia, caracteriza os judeus da sua terra:

Nós, os Bessaraber, encontramos mais felicidade num belo prato do que num profundo verso dos livros sagrados. Somos amantes entusiastas de um bom gole e de uma bela canção. Não deixamos de observar A Lei, mas há quem faça isso com mais reverência.

Daniel Crarny descreve seu shtetl Dukor sob uma luz inteiramente diferente.

Aqueles cem lares judeus eram fortemente ligados uns aos outros, como se fossem uma família. Não havia divisões entre ricos e pobres, alta ou baixa estação, homens de cultura e trabalhadores; eram todos judeus chassidim. A sociedade judaica nos shtetlech era organizada pela e em torno da kehilah – conselho comunitário – e as muitas organizações de caráter social. Antes da Guerra Mundial I, as kehilot eram dirigidas principalmente pela

oligarquia judaica local. O governo russo e das repúblicas bálticas reconheciam as kehilot, eleitas por voto direto entre os membros da comunidade judaica, como organismos com autonomia sobre assuntos religiosos, educacionais e de bem estar social.

No campo econômico, a organização judaica era também marcante. Crédito era uma necessidade vital, especialmente para a grande massa de pequenos comerciantes e artesãos, a quem as instituições financeiras não- judaicas não costumavam atender. As tradicionais Cemilas Hasodim – associações de apoio sem fim lucrativo – não mais adequadas ao momento de soerguimento econômico após a Guerra Mundial I, foram substituídas por cooperativas de crédito e se implantaram tanto nas cidades grandes como nos shtetlech. A essas somaram-se as cooperativas profissionais, como as famosas uniões dos fabricantes de móveis, de confecções e de calçados.

Esse tipo de organização social e econômica, fundamentado em preceitos culturais judaicos, se repetiria também no Recife. Principalmente dos shtetlech da Bessarábia, de onde vieram os judeus que formaram o núcleo inicial da comunidade judaica da Boa Vista, trouxeram as cooperativas de crédito, as redes de trabalho e alguns modos de administrar a comunidade.