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PARTE II- O REVERSO DA HIPÓTESE: REGULAÇÃO DA VIOLÊNCIA

Capítulo 4 – Possibilidades de legitimação do uso privado da violência: tentativa de

4.2 Alba Zaluar e o “ethos da honra masculina”

Entendida do ponto de vista que privilegiamos neste trabalho, a obra de Alba Zaluar também pode ser considerada uma análise de como modos específicos de regulação da violência adquirem legitimidade em determinadas circunstâncias. Vale ressaltar que os cem anos que separam o contexto de Cidade de Deus, bairro carioca estudado no seu livro A

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Isso só pode ser a explicação da vigência de uma ordem social que legitima a violência se se considera 1) que a possibilidade de referir-se a si mesmo de forma positiva, além de se constituir como fundamento da dignidade e da ação humana, depende de uma estrutura normativa mediada intersubjetivamente e 2) que o trabalho compõe categoria-chave no processo de objetivação das particularidades individuais valorizáveis (este último ponto ganha destaque quando se nota a ênfase dada pela autora às condições de subsistência e de marginalidade social do homem livre e pobre que está a investigar). A incapacidade de diferenciação da estrutura social da época (conseqüentemente, a indiferenciação da hierarquia valorativa que fundamenta a atribuição de qualidades pessoais) certamente contribuiu para que outros critérios de reconhecimento pessoal não tivessem podido emergir nesse contexto, negando ao trabalho (impossível, porque marginal) e relegando à violência (corriqueira, porque valorizada) a função de socialização de padrões de reconhecimento. Isso nos parece verdadeiro até certo ponto, já que o recurso à força física para fins privados e sua decorrente legitimação social parece ter sido um dado efetivo também para as classes abastadas e médias, incluídas, portanto, no âmbito da sociedade ampla que punha à margem os homens livres despossuídos. Vellasco (2005) nos informa que, na Comarca de Rio das Mortes, Minas Gerais, no decorrer do século XIX, o que classificou como “elites” sociais foram responsáveis por cerca de 46% de todos os crimes violentos registrados, concluindo coerentemente que “a violência estava longe de ser atributo de uma classe específica” (VELLASCO, 2005, p. 185). Isso, em parte, reafirma o argumento de Franco, de que o recurso à força para fins privados é amplamente legitimado socialmente; e em parte o enfraquece, já que retira das condições subalternas em que se encontravam os caipiras o fundamento axiológico a explicar a legitimidade de tal tipo de emprego da violência. Das duas, uma: ou a observação sobre as conseqüências da indiferenciação social no plano da aferição do reconhecimento intersubjetivo deve ser expandida para categorias sociais outras que não apenas o trabalho e o direito (via institucionalização por Mercado e Estado, respectivamente), ou novos elementos, que não simplesmente uma espécie de “luta individual por reconhecimento”, devem ser incorporados na explicação sobre a vigência aparentemente legítima dessa ordem social violenta no Brasil oitocentista. A questão, apesar de sua importância, não será aprofundada nesta Tese, já que pressupõe uma imersão na história do país em grande escala, o que foge aos nossos objetivos e capacidades.

Máquina e a Revolta (ZALUAR, [1985]2000), do mundo caipira do Vale do Paraíba investigado em Maria Sylvia de Carvalho Franco introduzem novos elementos que incidirão decisivamente na mudança de patamar que o uso da violência adquirirá segundo uma percepção social mais ampla: o tráfico de drogas e a maciça circulação de armas de fogo cumprem, agora, papeis importantes na transformação da violência urbana em problema público de grande monta. Pensada como um problema de regulação da violência, a questão que move Zaluar na sua análise da violência que permeia a comunidade de Cidade de Deus pode ser resumida na seguinte sentença:

Como encaixar, do ponto de vista da teoria social, esses fatos aqui narrados? Tratar-se-ia de um movimento social de contestação? De crime organizado? De um braço de organização nos moldes da máfia? Ou de um confuso panorama de revolta, ambição pessoal, uso de formas coercitivas de poder? (ZALUAR, 2000, p. 165)

Zaluar refere-se também, no contexto dessas indagações, aos saques provocados por moradores da comunidade a vários estabelecimentos comerciais da região, especialmente os mercados, principalmente para obtenção de alimentos. É de difícil conciliação a abordagem, sob uma mesma denominação, às duas formas de ação (a que resulta nos saques coletivos e a que impele os jovens a matar e roubar em comunhão com os negócios do tráfico). E a autora está plenamente ciente dessa ambigüidade. A ambigüidade, aliás, é o traço mais característico da relação entre aqueles que optam pela vida explicitamente criminosa e aqueles que resistem a ela.

Traços dessa ambigüidade são objetivadas na representação local das categorias “trabalhador” e “bandido”. Enquanto configuração de uma identidade, “trabalhador” encontra sua significação em oposição à categoria “bandido”. Em um contexto de precariedade das condições de trabalho, e diante de oposições valorativas claramente delimitadas (como rico/pobre, trabalhador/patrão), embora seja uma categoria até certo ponto valorizada e, por isso, conferidora de valor pessoal, o trabalho também é muitas vezes, da maneira como se apresenta aos moradores de Cidade de Deus, um reflexo do sentimento de humilhação e um sacrifício:

Entre os jovens que já não se guiam por esse modelo e que desistiram do trabalho árduo, optando pela vida de “bandido”, isto é, por ganhar a vida roubando ou vendendo tóxico, a imagem do trabalhador é a de um “otário”. (ZALUAR, 2000, p. 93)

Se, devido às condições de precariedade, o trabalho abre a senda para justificar a opção pela ação criminosa (segundo o discurso de alguns jovens entrevistados), conferindo à categoria “bandido” um valor que, sem o contraste com uma identidade precarizada de

“trabalho” ela não poderia, a princípio, vir a ter, do mesmo modo é em oposição à categoria de “bandido” que a opção pelo trabalho pode ser reabilitada (uma vez que, por si só, a opção pelo modo de vida do trabalhador nem sempre pode se objetivar na forma do reconhecimento social, como no caso do trabalhador precário de Cidade de Deus). Além disso, a precarização do trabalho, que também se expressa nas longas jornadas de trabalho (especialmente o informal), está associada ao arrefecimento do mecanismo de supervisão parental que, como vimos em Hirschi & Gottfredson, podem ser relacionados causalmente no recurso à violência:

(...) A incorporação prematura dos filhos no mercado de trabalho e o afastamento da mão num momento em que a sua presença é crucial, dada sua posição de principal agente de socialização, acabam por deixar os filhos longe de seu alcance e controle. Os grupos de crianças e jovens que permanecem no local de moradia ou enfrentam juntos as dificuldades do biscate na cidade fortalecem-se, tornando-os infensos à atividade educadora dos adultos. Isto abre caminho a outras influências, como a dos traficantes de tóxicos, o que gera um sistema de reprodução de atitudes negativas diante do trabalho, encaminhando-os para uma via “alternativa”: a da “revolta”, como dizem, a da violência e do crime, como dizemos nós.

(ZALUAR, 2000, p. 96)

A revolta emerge então como uma categoria discursiva, uma espécie de account (SCOTT & LYMAN, 2008) que pode ser invocado para legitimar atos tipificados como criminosos pelo Código Penal vigente, e como ilegítimos, segundo uma concepção ampla de justiça compartilhada entre, por exemplo, os “trabalhadores” ou a população mais ampla. O fato de que tais atos possam se tornar legítimos em determinadas circunstâncias, nas quais a revolta se faz necessária, é um dado importante que aparece nesse estudo de Zaluar, da forma como pretendemos demonstrar.

Diversas características das relações comunitárias na comunidade de Cidade de Deus dão ensejo ao caráter legitimador da “revolta”, especialmente entre os mais jovens (o que insere um corte geracional ao uso da violência, que não aparece tão explicitamente nos estudos de Franco sobre o caipira livre). Em primeiro lugar destaca-se o papel do vestuário como símbolo de individualidade, de expressão objetiva do ser: a roupa, para os jovens, torna- se então o principal item de desejo de consumo. Isso certamente resultará em conflitos familiares, na medida em que a escassez de recursos impede que a dona de casa (gestora financeira dessas famílias pobres) inclua tal item na lista de prioridades para o lar. Também ela, a dona de casa, possui seus desejos de consumo por itens que agregarão valor simbólico à posição da família na hierarquia social, mas tais itens (a televisão e a geladeira, por exemplo) possuem, ao fim e ao cabo, finalidades de uso coletivo, diferentemente das roupas de marca desejadas por seus filhos.

Nitidamente, aqui Zaluar introduz o papel que hierarquias valorativas desempenham no desenvolvimento da conduta individual, ligando a ação do agente a uma “topografia moral” capaz de estabelecer “preferências” e expectativas que serão aferidas de modo intersubjetivo. Isso se torna importante quando a autora afirma que “as gratificações narcísicas das imagens especulares, ou nos hábitos mais imediatos de busca do prazer, seja no jogo, nas drogas ou na diversão, ganham mais importância na vida de vários setores da população, especialmente os mais jovens”, fazendo incidir sobre a busca pela realização de desejos pessoais a influência de mercados ilícitos (como o de drogas e o de armas) que certamente contribuirão para o incremento dos resultados violentos das contendas e da imposição da individualidade. Vista como um aspecto decisivo do processo de globalização, a ascensão desse narcisismo tópico substitui, no nível das relações de consumo, o consumo familiar pelo “consumo de estilo” (ZALUAR, 1998, p. 255), muito mais caro e mais facilmente associado ao aumento do número de crimes contra o patrimônio e contra a vida, observado no Rio de Janeiro pela autora na passagem da década de 1980 para 1990.

Isso só pode ser parte da explicação da autora se se toma a busca pelo reconhecimento de uma individualidade como parte importante da noção de pessoa, e de que a relação de consumo é fundamental na aferição do valor pessoal que se objetiva no bem consumido, segundo uma perspectiva interacionista. Nesse caso, devemos expandir as reflexões aqui travadas (sem extrapolar os limites impostos pelo objetivo desta Tese), para afirmar que o consumo pode ser entendido como uma prática alternativa de reconhecimento social, ampliando a visão clássica que resume nos direitos legais, nas relações afetivas e na participação positiva no mercado de trabalho o tripé sobre o qual a positividade de uma identidade ou modo de vida pode ser avaliada objetivamente. Nessa seara, Matos Junior (2010) ressalta que as relações de consumo, embora calcadas na objetificação do potencial humano de expressividade (como em Marx), não se resume nisso. Também seus efeitos de “tradutores e demarcadores de significado” interessam na interpretação da ação do consumidor e formam uma parcela importante da noção de individualidade (vertida, como nos diz Zaluar, em “estilo”). Se for assim, podemos concluir, com o autor, que:

Vestir roupas da “moda”; ostentar artefatos visuais com altos valores comerciais; exibir telefones celulares de última geração e artigos de alta tecnologia; não podem ser compreendidas (...) apenas como práticas inscritas na razão do capital, mas também em suas expressões de significado nas lutas cotidianas pelo reconhecimento contextualmente estruturadas (MATOS JÚNIOR, 2010, p. 220).

E é somente diante da impossibilidade de consumo, que pode ser traduzida também como uma impossibilidade de ser (e até mesmo de existir, quando estão em jogo itens relacionados com a sobrevivência física) que surge a palavra revolta:

“Revolta” foi uma palavra ouvida por mim constantemente. Ela é empregada para denotar uma recusa a participar do jogo social quando as regras ou o modo de conduzi-lo ferem o sentimento de justiça ou a dignidade de quem, por isso, se “revolta”. Aplica-se também aos que optam por métodos violentos para resolver questões pessoais, bem como aos jovens bandidos que usam arma na cintura e não trabalham. Em 1983, durante os saques ocorridos nos supermercados locais, foi a palavra usada para explicá-los: “o povo revoltou” (ZALUAR, 2000, nota 18 à página 130).

Encontramos aí toda a ambigüidade dessa justificativa do uso da violência, seja de forma coletiva ou individual: a revolta pode ser invocada por “trabalhadores” e “bandidos” de forma quase indistinta, ao menos a princípio. Para o trabalhador, são as condições deterioradas da vida urbana da periferia brasileira (ainda por cima, o país passava por uma grave crise econômica no início da década de 1980) que parecem legitimar a ação dos saques. Ao mesmo tempo, como condição precária de afirmação do valor pessoal, o trabalho não é capaz de despertar nenhum sentimento positivo de identidade por si só; não há aqui algo como uma ética do trabalho, no sentido calvinista (na qual da ação prática no mundo do trabalho o crente extrai objetivamente as provas psicológicas de sua fé). Ao invés disso, é a ética do provedor que assumirá tal função e, embora ela se estabeleça pela via do trabalho (essencialmente informal ou precarizado), é mais o princípio de “botar comida pra dentro de casa de forma lícita” do que a “objetivação de atributos pessoais” o que prevalecerá nessa ética, compondo o único aspecto que subsidiará o trabalhador na sua opção pela legalidade. Tal como em Franco, a esfera produtiva torna-se incapaz de se efetivar como dimensão de integração positiva de uma personalidade para uma população específica78.

A ambigüidade aludida acima, entre trabalhadores e bandidos, no que se refere ao discurso que legitima o uso da violência, se desfaz quando casos concretos materializam

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Mais uma vez, isso torna problemático o fato aparentemente verdadeiro de que a violência pode se tornar legítima mesmo em ambiente sociais em que tal precarização das formas de vida não se observa, como nas classes média e alta. Em todo caso, nada está mais distante das reflexões de Zaluar do que a afirmação de que a pobreza constitui uma causa direta da violência urbana, ou mesmo da legitimação do uso da força para fins privados. Embora certamente as condições do pauperismo brasileiro componham elemento importante e talvez fundamental na composição do problema da segurança pública ou da “violência urbana” (como representação social), isso não implica em consentir com relações de causalidades simplórias. Como na observação feita sobre a obra de Franco, outros elementos podem ser acrescidos à condição de pobreza, sejam como variáveis independentes ou intervenientes, de modo a acurar as conclusões, além de tornar necessário um enfoque comparativo com outras classes sociais e com outras formas de legitimação do uso ilegal e privado da força (nosso problema central aqui) que não impliquem necessariamente no seu uso direto por elementos dessas classes (como nos casos dos crimes de pistolagem, grupos de extermínio, abuso da força policial, etc., que são na verdade formas de “cumprimento de mandados” tácitos ou explícitos ou então um serviço que só poucos podem pagar para ter).

convicções éticas mais profundas, que incluem a noção de justiça e de honra. A autora certamente recusa, como parte da população de Cidade de Deus, a visão de que o bandido assume o papel de herói do lumpen-proletariado urbano brasileiro, defendido naquele contexto das décadas de 1970 e 1980 por parte de intelectuais, especialmente os marxistas (embora não haja referências explícitas a quem representaria essa visão).

Quando vista de forma positiva, a revolta ganha corpo e alma na figura de Manoel Galinha, vulgo Mané Galinha, um influente personagem da história de Cidade de Deus que atuou em grupos de traficantes no final da década de 1970. Para vários dos familiares de Manoel entrevistados, ele não era um bandido (aparentemente sublimando a fatídica ligação dele com o mundo do tráfico de drogas), colocando-o como um “revoltado” e injustiçado. Certamente, ao lançarem mão de tal discurso, os familiares aludem mais às rixas que aquele mantinha com Zé Pequeno (outro importante personagem de Cidade de Deus, e chefe de uma das bocas de fumo do local) do que à simetria que alguns atos de Manoel mantinham com aqueles tipificados como crimes no Código Penal79.

Quando a autora aportou em Cidade de Deus, Manoel Galinha já não existia. A morte de Manoel Galinha, decorrente da “guerra” contra o bando liderado por Zé Pequeno, encheu de comoção parte de Cidade de Deus. Um bloco de carnaval foi criado, um samba, intensas outras homenagens, além da grande aglomeração no seu enterro. São sinais evidentes de que se tratava de alguém bem quisto por todos. Esses eventos diferem substancialmente da “indiferença diante da morte” (ZALUAR, 2000, p. 138) observadas na ausência de zelo com o qual a comunidade despedia-se das novas vítimas das agora intermitentes guerras pelo tráfico. Essa mudança qualitativa na intensidade da comoção revela também uma mudança no significado do “tornar-se bandido” (talvez até mesmo do “revoltar-se”). Mané Galinha pode ser louvado porque foi enquadrado na categoria do “bandido formado”, aquele que defende a comunidade, que “conhece as regras do jogo e não ultrapassa os limites de sua atuação” (ZALUAR, 2000, p. 138), evitando que demais bandidos (esses sem nenhuma credencial reabilitadora diante daquela comunidade, como os pivetes, os estupradores, ladrões e demais “estrangeiros” naquele lugar) se aproveitassem do território.

Difícil dizer o que vem primeiro: o apego ao território decorre da necessidade de se defender ou a necessidade de se defender leva a um apego ao território? O fato é que no

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Parte dessa história é retratada no romance Cidade de Deus, de Paulo Lins, e no filme homônimo baseado nesta obra, além, claro, do próprio livro de Zaluar a que fazemos menção nesta seção.

contexto da defesa do território a autora expõe a questão da masculinidade e de como o dado concreto do território metamorfoseia-se em símbolo de honra que deve ser valorizado e defendido: “(...) o território ocupado pela vizinhança é uma extensão do narcisismo masculino que obriga a revidar qualquer provocação ou tentativa de humilhar um homem” (ZALUAR, 2000, p. 139).

Emergindo como ethos da honra masculina (Idem, p. 142), o padrão moral que legitima a defesa do território, na medida em que também se encontra evocado por aqueles que defendiam a reputação de Mané Galinha, adquire um status de socialmente compartilhado, derramando seu raio de influência tanto entre bandidos como entre trabalhadores. Aí reside a ambigüidade da legitimidade do uso da violência para fins privados: talvez, essa legitimação decorra dos efeitos “públicos” que possa vir a ter num contexto marcado pelo medo de ser invadido ou menosprezado pelo estrangeiro (o que só faz sentido em um contexto de “guerra”). O uso da violência, na passagem a seguir, é claramente vinculada a um padrão de moralidade que confere significado ao ato:

Matar ou trocar tiros implica o risco de ter a imagem pública analisada pelos demais moradores segundo as justificativas de seu ato. (...) O ato de matar uma pessoa não é julgado a priori como um crime, segundo uma concepção universal de justiça. A avaliação moral desse ato depende de quem foi morto e em que circunstâncias isso ocorreu (Idem, p. 143).

A autora então faz uma ponderação socorrendo-se de uma suposta racionalidade estratégica do ato violento, uma vez que, no grosso dos casos, este está relacionado ao comércio de tóxicos:

Apesar de ser um aspecto importante, a defesa da honra masculina não é todavia o objetivo principal das “guerras” entre os bandidos, quer se trata da “moral” de um bandido, quer de um trabalhador, ou até mesmo de sua extensão narcisística: o “pedaço”. Os trabalhadores de Cidade de Deus sabem que as guerras se dão principalmente pelo controle de bocas de fumo, fonte de um comércio lucrativo (...). (ZALUAR, 2000, p. 144).

Ao fazer tal afirmação a autora parece deslocar o eixo de sua análise para uma versão etiológica da criminalidade violenta. Nosso objetivo nesta Tese não é esse, e sim expor formas pelas quais o emprego da violência pode ser considerado legítimo e, portanto, segundo nosso ponto de vista, socialmente regulado. Afirmar que o “objetivo” das guerras não é honrar a identidade do bandido, mas sim estender ao “pedaço” a lógica comercial (estratégica, portanto) do tráfico de drogas é deslocar o problema sociológico do sentido em que essa mesma violência, quando observada pelos partícipes de interação, pode ser vista como legítima (o que significa seu controle social e sua regulação) para o sentido de explicar seu uso por atores individuais. Embora alheia aos nossos objetivos, tal ponderação é importante

por expor, de forma contundente, o quadro atual da violência urbana brasileira (aproximativamente tratado no Capítulo 2) e que difere do contexto de regulação da violência analisado por Franco; no caso contemporâneo, a expansão do tráfico de drogas e o uso recorrente à arma de fogo deslocam e tensionam inegavelmente os parâmetros pelos quais o emprego da violência para fins privados logra obter validade perante o restante da população.