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PARTE II- O REVERSO DA HIPÓTESE: REGULAÇÃO DA VIOLÊNCIA

3.2 Pressupostos intersubjetivos da regulação da violência

3.2.3 Boltanski & Thévenot e a necessidade de justificação

O sociólogo francês Luc Boltanski era considerado o principal candidato a continuador da sociologia crítica de Bourdieu, até começar a problematizar, junto ao economista Laurent Thévenot, a sobredeterminação que categorias analíticas como habitus, “dominação” e “violência simbólica”, desempenhavam na condução da ação individual. Com isso, ambos dão importante passo para renovar a sociologia pragmatista francesa, aproximando até a problemática de tal abordagem aos pressupostos intersubjetivos do interacionismo americano da primeira metade do século XX (WERNECK, 2012)66.

Ao mesmo tempo, renovam a perspectiva de uma sociologia que se importa com os aspectos morais e valorativos da coordenação da ação individual, distanciando-se da famosa perspectiva consagrada por Durkheim (que termina por enfatizar um consenso moral necessariamente anterior à consciência e ação individuais), e também da perspectiva da teoria econômica em geral (que percebe a ordem social como um resultado totalmente aleatório das ações de um sujeito auto-interessado): isso exige de ambos os autores, na principal obra conjunta dos dois – De la Justification, publicada originalmente em 1991 – uma aceitação do papel da liberdade individual na tomada de decisões, afastando-se da premissa durkheiminiana, sem que isso signifique, contudo, ao contrário da grande parte dos economistas, negar a influência operada por padrões culturais razoavelmente estabelecidos na interpretação de normas por parte do ator social (HONNETH, 2010, p. 376-377). Nesse sentido, e trazendo a discussão para a parte que nos interessa neste trabalho, Boltanski e

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Um breve resumo dessa mudança pode ser conferida em THÉVENOT, 1995. Ali, o autor enfatiza o papel fundamental desempenhado por um ator cognitivamente competente, e conectado com a dimensão moral da sociedade. Esse movimento desloca a atenção do grupo dos “neo-pragmatistas” franceses, em termos de pesquisa sobre a ação social, para a articulação entre capacidade cognitiva e avaliação moral (evaluation).

Thévenot desenvolvem um tipo de agente humano – uma personalidade, portanto – que se encontra imerso em padrões culturais valorativos fortes o suficiente para requerer, na maior parte da vida social deste ator, uma necessidade de justificação de suas ações e decisões individuais.

Para chegar a essa conclusão, e a partir de pesquisas realizadas desde a década de 1980 pelo grupo de pesquisa que eles coordenaram na França, os autores começam por enfatizar o conceito de competência, definido então como “uma capacidade de reconhecer a natureza de uma situação e de pôr em ação o princípio (...) que a ela corresponde” (BOLTANSKI & THÉVENOT, apud. WERNECK, 2012, p. 91). Embora haja elementos de capacidade cognitiva aí embutidos, o principal aqui, do ponto de vista sociológico, é perceber que os indivíduos não são “intransparentes” (HONNETH, 2010, p. 377) uns aos outros, e qualquer tipo de estudo dos efeitos de coordenação da ação em nível prático deve levar esse dado em conta. O que está por trás daquela afirmação é a ratificação de uma teoria que parte do pressuposto da coexistência de distintas ordens sociais suscetíveis de serem articuladas (de forma competente ou não) pelos agentes no processo de justificação da ação67.

Essa competência é exigida de forma excepcional nos momentos de ruptura da atividade rotineira. Aqui os autores servem-se da tradição pragmatista americana para definir a situação como um momento temporal-espacial no qual atores articulam justificações possíveis (e suas respectivas ordens sociais) para reproduzir o cotidiano: por esse aspecto paradigmático, é ela, a situação, “unidade analítica” primordial para nossos autores, e não a interação, como no pragamatismo da escola americana. O primordial disso tudo é que, definindo a situação como unidade de análise, o ator social é apenas parte da coisa a ser explicada pela sociologia, um “detalhe” (WERNECK, 2012, p. 86), que deve ser acrescido de outros detalhes igualmente importantes, como a situação, o momento crítico, a competência e as ordens sociais. A emergência de um evento inesperado, configurando, portanto um momento crítico, implica em que os significados que norteavam as ações e decisões individuais são suspensas, possibilitando ao (e demandando do) agente o esforço cognitivo de exercer a sua competência. Com isso, ele não só tem acesso ao conteúdo das ordens sociais que legitimavam a reprodução cotidiana de suas atividades, como pode agora por em

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Essa tese da coexistência de múltiplas ordens sociais na realidade cotidiana, que podem ser articuladas ou descartadas pelos agentes no processo de justificação, como já sabemos, é fundamental na definição do lugar da ordem da “sociabilidade violenta” no Brasil contemporâneo em Machado da Silva, o qual busca justamente nesse novo pragmatismo francês, ainda que com ressalvas, parte do fundamento de seu quadro teórico. Cf. MACHADO DA SILVA, 2010, p. 94.

discussão as ordens (postas pelo “outro”, ainda que distante) que criticaram, ou puseram em questão, suas próprias convicções morais refletidas em seus atos e decisões. Assim, justificações da ação precisam ser apresentadas ao outro ou outros da interação, há uma espécie de imperativo de justificação (BOLTANSKI, 2000, p. 71)68. Por isso os momentos de crise e de perturbação são tão essenciais para a sociologia, pois permitem deslindar os fundamentos morais de determinada sociedade e enfatizar, entre os atores que compartilham daquela mesma situação, quais ordens e valores estão em disputa.

O próximo passo dos autores é elucidar o “protocolo” segundo o qual as justificações vêem à tona, sinalizando para a conclusão de que há sempre, nesses momentos críticos, uma necessidade de justificação inerente ao agente humano. Com a seguinte passagem, da maneira como entendemos, eles concluem a parte formal de sua teoria:

Essas justificações precisam seguir regras de aceitabilidade. Não podemos dizer, por exemplo: “Não concordo com você porque não vou com a sua cara”. E não há razões para achar que essas regras de aceitabilidade seriam diferentes para aquele que critica e para aquele que tem que responder às críticas. Assim, um quadro de análise da atividade de disputa deve ser capaz de operar com as mesmas ferramentas as críticas de qualquer ordem situacional ou social assim como a justificação dada em vigor (BOLTANSKI & THÉVENOT, apud. WERNECK, 2012, p. 92).

Partindo da ideia de uma gramática generativa que vão buscar em Noam Chomsky (WERNECK, 2012, p. 92), Boltanski e Thévenot entendem o processo de justificação como a relação entre ação social e uma gramática de ação, que contenha em si regras de formação de justificações plausíveis. Isso implica que, no processo de justificação, que emerge do momento crítico, há sempre a referência, por parte do ator, a um “tipo de convenção muito geral, orientada para o bem comum, com pretensão de validade universal” (BOLTANSKI & CHIAPELLO, 2009, p. 55). O que isso significa em termos práticos? Que num momento de contenda entre Alter e Ego, somente a referência a algum valor comum que transcenda a ambos – princípios de equivalência (Idem, 2009, p. 56) – poderá transferir a disputa inicial ao terreno do negociável, do justificável. Como parte da premissa de uma coexistência de distintas ordens sociais no horizonte normativo do agente, a busca por um quadro de referência comum é sempre uma possibilidade em aberto, donde concluem por uma tendência ao acordo nas sociedades modernas. Esse movimento de tomar por referência uma gramática moral para invocar justificações possíveis em um momento crítico, é definido pelos autores como regimes de ação.

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A violência, embora não anule o momento crítico (na verdade, ela talvez seja um), anula o poder do imperativo de justificação. Na violência, não há necessariamente uma relação entre “eu” e “outro”, que demande legitimação, mas uma relação de anulação do “outro”.

Os autores então distinguem entre dois tipos de regimes de ação: ou são de paz (na qual não há controvérsia sobre a legitimidade da situação) ou são de conflito (na qual coloca- se em questão justamente a validade de determinada situação). Os regimes de paz podem ser baseados a) na rotina, em que a ausência de disputa é resultado de uma nivelamento de pressupostos introjetados previamente (como no hábito); ou b) baseados no amor, na qual a relação com o outro é fundamentada no princípio do ágape, em que, mesmo diante de um momento crítico, não se segue uma contenda pela justificativa da ação (como no perdão à pessoa amada). Os regimes de conflito, por sua vez, baseiam-se, a) ou na violência, em que a força física determina a resolução da contenda (pela anulação do outro, no mais das vezes, exaurindo assim o potencial comunicativo do momento crítico); ou b) na justiça, na qual ações são justificadas por meio de princípios superiores que são comuns às partes envolvidas e invocadas em disputas de provas de justificação (WERNECK, 2012, p. 93-94). Esse regime é especificamente chamado pelos autores de regime de justificação. Já os princípios morais compartilhados pelos sujeitos litigados são chamados pelos autores de cidades (cité):

Uma utopia é realizada, e merece o nome de cité, quando existir na sociedade um mundo de objetos que permita agenciar as provas cuja avaliação supõe o recurso ao princípio de equivalência dos quais essa utopia implemente sua possibilidade lógica (BOLTANSKI & THÉVENOT, apud. WERNECK, 2012, p. 95).

Nessa elucidação, podemos dizer que há uma guinada na teoria, na qual os conteúdos das ordens sociais justificáveis são apresentados como aspectos normativos destas (HONNETH, 2010, p. 378). O fato de que os autores proponham seis modelos de cidades deve nos servir para lembrar que o estoque de justificativas morais a que se pode recorrer para legitimar uma situação não é ilimitado; se o fossem, isso impossibilitaria a estabilização de organizações e instituições por um período de tempo sociologicamente relevante (pois a variedade de justificativas morais equivaleria à quantidade de pessoas no mundo). Cada uma das cidades tipificadas possui uma grandeza interna, isto é, um princípio valorativo singular, que a caracteriza e a define. Assim, a cidade inspirada, inspirada na obra Cidade de Deus de Santo Agostinho, possui como grandeza a graça, a criatividade, expressividade e a autenticidade. Na cidade doméstica, inspirada na obra A Política Tirada das Sagradas Escrituras de Boussuet, a grandeza é a estima ou reputação das pessoas quando estas dependerem da posição hierárquica ocupada numa cadeia de dependências pessoais, como na família. Na cidade da fama, inspirada no Leviatã hobbesiano, a grandeza em jogo é o renome depreendido pela opinião alheia, de pessoas que dêem crédito a essa celebridade. Na cidade cívica, baseada no Contrato Social de Rousseau, é o interesse público, a expressão de uma

vontade coletiva, o que está em jogo. Na cidade mercantil, inspirada pelo A Riqueza das Nações de Adam Smith, está em jogo o sucesso obtido pela disponibilização de produtos desejados, o que resulta na acumulação de riqueza desta “grande pessoa”. Já na cidade industrial, baseada na obra de Saint Simon, a grandeza depende de eficácia e competência profissionais (BOLTANSKI & CHIAPELLO, 2009, p. 57; WERNECK, 2012, p. 95).

Um regime de justificação, portanto, opera nessas cidades as grandezas correspondentes, que grassam em um terreno comum aos litigados, fazendo com que seja possível a disputa de legitimidade, a crítica e a justificação, o comum acordo e o conflito pacífico. Não há uma preocupação dos autores em enaltecer o tipo de sociedade que dá abrigo a este mecanismo de avaliação moral, mas depreende-se, pelas menções a sociedades “diferenciadas”, “complexas”, e que se caracterizariam pela existência de várias ordens sociais que competem pela assunção da tarefa de coordenar ações sociais com base em valores compartilhados que tais autores estão a descrever as modernas sociedades democráticas ocidentais (HONNEHT, 2010, p. 378). Ora, de fato, tal teoria descreve possibilidades de mediação de conflitos que possam se resolver de forma pacífica, não- violenta. E não é a toa que o regime de violência não é o foco da atenção de ambos.

Com isso, fica então enaltecida a ligação teórico-conceitual entre a necessidade de justificação da ação individual, por um lado – uma vez que o ator social não é um átomo no cosmos – e uma sociedade pacificada, por outro. O uso da violência (aqui, especialmente, o seu não-uso) torna-se fundamentalmente mediado pelo contexto moral sempre ou quase sempre dependente de um imperativo de justificação que impele os indivíduos a se posicionarem e definirem sentidos de uso em uma situação crítica, não-usual, de ação ou decisão. Uma vez que é sempre possível, e tendencialmente comum, a recorrência a princípios superiores comuns (BOLTANSKI & CHIAPELLO, 2009, p. 56) como forma de mediar as disputas de legitimidade, e que tal recorrência encontra-se dependente da competência do ator em articular contextos e justificativas; uma vez também que as diferentes cidades podem ser acessadas por todos (devido a sua existência contígua com todas as outras cidades), como a demonstrar um pluralismo valorativo passível de converter-se, em uma dada situação concreta, em consenso ou acordo; e uma vez ainda que esse sujeito racional e essa forma de avaliação moral é própria de uma sociedade “complexa” que, pela descrição, tende a se aproximar do ideal das modernas sociedades democráticas regidas pelo Estado de direito; pode-se concluir pela pacificação social como um efeito potencial dos processos de avaliação identificados com os regimes de justificação. Sob tal arcabouço teórico, a resolução de

conflitos dá-se predominantemente sem o recurso à violência. Vejamos agora como dois autores especificamente ligados ao campo de estudos da criminalidade entendem as formas possíveis de regulação da violência.