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PARTE II- O REVERSO DA HIPÓTESE: REGULAÇÃO DA VIOLÊNCIA

3.1 Pressupostos institucionais da regulação da violência

3.1.2 Weber: Estado, burocracia e dominação racional

Definição semelhante do Estado possui Max Weber, que assim o entende: “o Estado é uma associação que pretende o monopólio do uso legítimo da violência, e não pode ser

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Embora considere possível, Hobbes não é um entusiasta da instauração de uma Assembléia como regime de governo, preferindo o regime no qual o poder se concentra na mão de uma única pessoa (Monarquia), pois aquela pressupõe a divisão do poder, o que enfraquece o Estado e reduz sua capacidade de regular a liberdade individual e assim mitigar a guerra de todos contra todos.

definido de outra forma” (WEBER, 1982, p. 383, destaque no original). Nesse caso, o exercício do poder, que nada mais é senão a imposição, com ou sem resistência, da própria vontade numa relação social (WEBER, 2000, p. 33), encontra-se reivindicado por uma empresa com caráter de instituição política sob determinado território, de modo a obter de um grupo determinado de pessoas o dever e a obediência de forma minimamente duradoura. Tal como em Hobbes, também em Weber a existência do Estado depende umbilicalmente da maior concentração possível da probabilidade de impor sobre outros a força física que um soberano ou grupo de pessoas reúne em si. Podemos afirmar, contudo, que Weber desenvolve de forma mais conseqüente esse exercício do poder político pelo Estado moderno, denominando a este um tipo específico de dominação. Weber vincula de forma mais decisiva para o pensamento político o exercício do poder estatal com aquela característica tipicamente moderna e ocidental, segundo defende, de se exercer uma dominação legítima sobre as bases legais de uma racionalidade específica: a burocracia aparece então como um tipo específico de dominação, com uma genealogia própria. Isso se torna especialmente importante para nós na medida em que tal exercício burocrático da dominação alude também a uma forma especificamente moderna de regular as ações humanas num sentido que estamos definindo como não-violento, isto é, a uma conduta que prescinde, seja pela coação externa ou pela atribuição de sentidos interna, do uso da violência no curso da ação.

O primeiro passo para se entender a dominação burocrática é entender a própria noção de dominação no sentido weberiano: “Dominação é a probabilidade de encontrar obediência a uma ordem de determinado conteúdo, entre determinadas pessoas indicáveis” (Idem, idem, ênfase no original). Conquanto a coação física seja de fato o elemento fulcral da definição de Estado (logo, um componente igualmente necessário da noção de dominação), é justamente o modo de como se dá essa dominação que interessará a Weber, e nisso consiste sua ligação com o tema da legitimidade.

A tradição contratualista já tocara no tema. Na verdade, a figura do contrato nada mais é do que um artifício teórico-político que pretende invocar o caráter legítimo da dominação exercida por determinado soberano segundo critérios de racionalidade (via vontade geral, disputa política, capacidade técnica, eventualmente a tradição étnica ou cultural ou religiosa de um povo, etc.), isto é, pondo o exercício do poder político do soberano sob escrutínio de uma moral que se pretende disputável, aberta a críticas e ao exame da razão. Esta tradição, que inaugura a filosofia política moderna, alimenta os – e é alimentada pelos – filósofos e eventos políticos concretos, forçando um rompimento significativo com uma tradição

metafísica, principalmente de cunho religioso, que reivindicava para grupos supostamente eleitos (os “escolhidos”, etc.) a legitimidade de imposição do poder soberano de forma quase que unilateral (isto é, sem a possibilidade de crítica ou disputa política, ou mesmo sem a necessidade de justificação racional).

Para Weber, o tema da legitimidade resume-se à probabilidade de uma relação de dominação ser reconhecida e praticada enquanto tal por dominantes e dominados (WEBER, 2000, p. 140). Para cada tipo puro de dominação legítima que Weber classifica, corresponde uma fonte de legitimação própria, que a fundamenta. Assim, a dominação racional baseia-se na crença em ordens estatuídas pela influência e significado do direito racional (relativo a fins ou a valores); a dominação tradicional baseia-se na vigência de tradições e crenças que circundam, legitimando, o lócus ocupado por um líder não-questionado; e a dominação carismática baseia-se fundamentalmente nas qualidades positivamente valorizadas e atribuídas coletivamente a um líder virtualmente único. Desnecessário esmiuçar aqui a observação metodológica de Weber sobre essa distinção, que aliás perfaz um traço metodológico comum a toda sua obra, de que tais tipos puros não são descrições da realidade, mas artifícios teóricos da sociologia (e sua principal forma de contribuir para o conhecimento do mundo, diga-se de passagem) de oferecer ao trabalho histórico empírico a possibilidade de “medir”, ou “comparar”, o grau em que determinado aspecto destacado da realidade aproxima-se ou afasta-se de um tipo conceitual específico.

Embora seja impossível avaliar uma realidade concreta como reflexo de apenas um dos tipos puros de dominação, interessa-nos aqui sobremaneira a atenção weberiana à dominação racional ou burocrática. Como tipo especificamente moderno de dominação (Idem, p.142), a dominação burocrática enaltece o fato de que a pretensão do Leviatã hobbesiano pressupõe um quadro administrativo investido sobre normas legais capaz de organizar as áreas de atuação do Estado de forma racional, porém igualmente legítima. Claro que a administração do Estado também é uma questão relevante para Hobbes, mas não é devidamente enaltecido o quanto essa forma específica de administração requer um tipo totalmente novo de racionalidade, que por sua vez ampara uma nova forma de legitimidade da dominação – ao mesmo tempo em que contribui para proliferar um tipo específico de personalidade.

Sendo assim, toda a estrutura burocrática do Estado moderno encontra-se tendencialmente baseada no pressuposto de um quadro administrativo burocrático (WEBER,

2000, p. 144), isto é, de que a dominação e as ordens do Leviatã estão amparadas legalmente em um direito racional (seja ele, como destacado por Weber, racional referente a fins ou a valores), no princípio da competência (divisão restrita de papéis e serviços aos funcionários), da qualificação profissional do funcionário para desempenhar aquela função específica, na submissão de tais funcionários a um sistema rigoroso de disciplina e controle do serviço e, especialmente, a separação absoluta dos meios de administração, sem apropriação do cargo.

Adotando a ideia de desencantamento do mundo de Friedrich Schiller (GERTH & WRIGHT MILLS, 1982, p. 68), Weber faz convergir os vários aspectos de sua obra para o tema da racionalização, instituindo uma Filosofia da História peculiar, muito embora seja comum encontrar em seus textos metodológicos críticas ao aspecto teleológico e determinista das Filosofias da História, especialmente no materialismo histórico aparentemente difundido em seus dias. Assim, pois, a burocracia emerge como efeito não-intencional de um processo amplo e aparentemente inexorável de racionalização especificamente ligado ao desenvolvimento histórico do Ocidente moderno:

O desenvolvimento de formas de associação “modernas” em todas as áreas (Estado, Igreja, exército, partido, empresa econômica, associação de interessados, união, fundação e o que mais seja) é pura e simplesmente o mesmo que o desenvolvimento e crescimento contínuos da administração burocrática: o desenvolvimento desta constitui, por exemplo, a célula germinativa do moderno Estado ocidental. (...) Toda nossa vida cotidiana está encaixada nesse quadro. Pois uma vez que a administração burocrática é por toda parte – ceteris paribus – a mais racional do ponto de vista técnico-formal, ela é pura e simplesmente inevitável para as necessidades da administração de massas (de pessoas ou objetos). (...) A necessidade de uma administração contínua, rigorosa, intensa e calculável, criada historicamente pelo capitalismo – não só, mas, sem dúvida, principalmente por ele (este não pode existir sem aquela) – e que todo socialismo racional simplesmente seria obrigado a adotar e até intensificar, condiciona esse destino da burocracia como núcleo de toda administração de massas. (WEBER, 2000, p. 145-146, ênfases no original).

“Toda nossa vida cotidiana está encaixada nesse quadro”: a frase é forte e nos permitirá agora focar nas conseqüências sociais da prevalência das formas burocráticas na “gestão” das mais diversas associação modernas. Da maneira como percebemos, a leitura de Weber permite ir mais além de Hobbes, ainda quando acentuamos um mesmo ponto da obra de ambos (ou seja, partindo da análise do fundamento do Estado para a análise do condicionamento externo da ação individual). Isso porque Weber pode se servir de uma Filosofia da História capaz de vincular, com muita clareza, os desdobramentos do processo de desencantamento do mundo na organização estatal moderna e conseqüentemente na predefinição de cursos de ação. Claro que o Leviatã hobbesiano é um artifício humano capaz de reprimir os próprios impulsos humanos (fundamentalmente pela “espada”, como vimos); Weber, contudo, nos diz também que o fundamento desse Leviatã é um processo mais amplo

de racionalização que guarda também relação com a evolução normativa das demais esferas da vida social, inclusive a econômica e a religiosa. Dessa forma, pode ele, Weber, reconstruir teoricamente um mecanismo de causação na qual a ação da organização burocrática estatal reforça os próprios meios pelo qual fundamenta sua ação: há uma autonomização da burocracia, fundamentada na ampliação do raio de influência do pensamento operacional- formal no processo de desencantamento do mundo (HADDAD, 1997, p.68), que implica na criação de uma necessidade aparentemente inexorável dela em qualquer formação social moderna – ou seja, em sociedades calcadas em regras formais instituídas por normas jurídicas, seja no capitalismo, seja no comunismo, seja na pós-revolução, seja na invasão (WEBER, 2000, p.146). Quando diz que a burocracia se autonomizou, Weber estar a dizer que sua forma de dominação, no limite, independe até mesmo da formação racional da vontade (a vontade geral da democracia clássica), ou do poder pessoal do soberano: ela é uma estrutura de exercício da dominação que escapa do controle cotidiano dos sujeitos racionais, se tomados isoladamente.

Portanto, o Estado ampara sua legitimidade no direito racional, que influencia toda a estrutura do poder público em condições modernas. As organizações do Estado, mesmo e até principalmente aquelas responsáveis pela coerção física, devem tendencialmente buscar guarida nesse princípio racional (e não físico ou emocional) de legitimidade: na medida em que as normas jurídicas podem servir de aparato técnico a todas as instâncias de exercício do poder de Estado, são as regras formais de aplicação do direito racional (e não apenas a “espada”, como enfatiza Hobbes) que garantem ao empreendimento político do Estado moderno sua continuação regular no tempo, a despeito das disputas ideológicas que definem sua direção política. O fato histórico de que essa forma de regulação de associações políticas tenha se sobressaído sobre outros princípios de organização em praticamente todas as formas de associações modernas (como diz Weber, em empresas, clubes, Igrejas, etc.) deve nos servir para ratificar o papel preponderante que a organização (com pretensões de dominação) racional-legal desempenha na regulação das condutas individuais62.

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Isso nos convencerá se tivermos em mente, por exemplo, os desdobramentos históricos, no século XX, do diagnóstico weberiano, especialmente se nos fiarmos nos diagnósticos da Escola de Frankfurt ou mesmo em Habermas. Mesmo se pensarmos em um diagnóstico da modernidade exclusivamente weberiano, sem a mediação do conceito de reificação do marxismo ocidental, concluiremos por uma tendência da época moderna em fortalecer as “instituições burocráticas de uma prisão de ferro”, cujas engrenagens, em Weber, podem ser subvertidas somente pela ação do “político com vocação” (Cf. SOUZA, 1997, p. 112 e ss.).