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PARTE II- O REVERSO DA HIPÓTESE: REGULAÇÃO DA VIOLÊNCIA

3.1 Pressupostos institucionais da regulação da violência

3.1.1 Hobbes: Leviatã e os limites da ação humana

O Leviatã hobbesiano é a figura mais tradicional do princípio da regulação externa da violência. Na obra do filósofo inglês, o Estado aparece como uma necessidade incontornável do mundo civilizado, dada a tendência bélica das paixões humanas. Somente com a regulação forçada operada por um terceiro transcendente, Alter e Ego podem se reconciliar na esfera pública e, deste modo, desenvolver as faculdades elementares para o estabelecimento de laços sociais duradouros. Segundo tal perspectiva, a solidariedade (e, portanto, o comportamento tendencialmente não-violento) é posterior ao Estado.

Não é este Leviatã quem inaugura a representação histórica do poder centralizado na sociedade. Hobbes, contudo, ratifica na filosofia política moderna o ponto de vista do indivíduo59, fazendo dele o centro de sua teoria e de sua metodologia política. A justificação do Estado decorre do movimento individual, da análise de uma ação humana aprioristicamente determinada, eivada de paixões que impelem cada um a buscar, nas suas realizações práticas, a satisfação de seu próprio interesse. A influência do emergente pensamento científico, cujas conclusões são produzidas a partir do exame das relações de causa e efeito sobre o movimento de corpos relativamente autônomos – como na mecânica newtoniana – é determinante para o êxito da empreitada hobbesiana, que se reflete na durabilidade da influência que derramou sobre o pensamento político moderno.

Hobbes pretende, a partir da leitura dos homens reais, extrair uma teoria que legitime a necessidade do Estado. Para isso lança mão da ideia de que todos os homens são iguais quanto às paixões – estas cumprem papel decisivo na conduta de qualquer ser humano. Daí sua premissa filosófica básica: os homens são iguais (no que diz respeito à influência das

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Segundo Châtelet, Duhamel & Pisier-Kouchner (2000), é Hugo Grócio o responsável por introduzir, na reflexão política do Estado, o ponto de vista do indivíduo moderno, com a publicação de Do direito da guerra e

paixões). O que difere um homem de outro são os objetos das paixões, isto é, a coisa desejada, temida, esperada, etc. Sendo assim, Hobbes começa pela definição de um homem-natural, um ser genérico, hipoteticamente universal, possuidor do direito natural à vida e também naturalmente provido de liberdade para fazer o que houver de ser feito para que sua vida seja plenamente aproveitada (entenda-se por vida plenamente aproveitada de vida com felicidade). A felicidade em vida ocorre quando o homem alcança os fins pelo qual deseja, seja riqueza, glória, qualquer infinidade de outras coisas suscetíveis de despertar no homem o desejo de posse. Há um problema, porém: o homem não está sozinho. Num contexto de escassez, se dois homens almejam uma mesma coisa eles passam a ser inimigos, pois só um pode possuí- la. O homem deve antecipar-se a outro homem, pois no jogo da vida tudo é competição. Por vezes a própria vida é que está em jogo. Tal é o estado natural da humanidade, o da “guerra de todos os homens contra todos os homens” (HOBBES, 1979, p.75). No estado natural, o exercício do poder é livre, sendo o poder qualquer meio disponível para atingir um bem futuro, desejado (Idem, p. 53). A tendência geral do comportamento humano em tais condições é o de acumular poder, uma vez que, sem tal acúmulo, um homem jamais pode estar seguro de que suas posses estejam a salvo de um poder maior que o seu:

(...) a causa disto [do acúmulo de poder, M.A.] nem sempre é que se espere um prazer mais intenso do que aquele que já se alcançou, ou que cada um não possa contentar-se com um poder moderado, mas o fato de não se poder garantir o poder e os meios para viver bem que atualmente se possuem sem adquirir mais ainda(Idem, p. 60).

Isso só pode ser a causa do constante desejo de acúmulo de poder se se percebe o mundo social como imerso numa competição sem fim por bens escassos (qualquer que seja a natureza do bem que é objeto de desejo de posse: riqueza, prestígio, território, etc.) e inserido num contexto de incerteza em relação à ação alheia, o que impede a antecipação das intenções do outro. Evidentemente, seu contexto histórico é o pano de fundo ideal para a consideração de tal mundo social, uma vez que uma incipiente sociedade de mercado, isto é, fundada economicamente na circulação maciça de mercadorias, começa a emergir nessa época (HONNETH, 2003; MACPHERSON, 1979).

Essa sociedade naturalmente competitiva está assentada em ações individuais, os atos voluntários – ações humanas que derivam exclusivamente da vontade (HOBBES, 1979, p. 37). É justamente a ação individual que se converte no centro das relações humanas e estas não podem ser vistas, segundo a visão hobbesiana, como a representação do bem ou do mal, senão quando submetidas a um julgamento externo, por um árbitro ou juiz. Os atos humanos não são intrinsecamente bons ou maus, mas apenas a expressão natural de seus desejos e

paixões, uma condição inerente ao ser humano. Sem um terceiro que possa mediar tais condutas, a definição moral de uma ação fica dependente somente do julgamento particular.

É esse o motivo pelo qual, da condição de igualdade naturalmente dada, Hobbes não deriva necessariamente laços de solidariedade, mas sim a disputa e a competição em relação a bens escassos. Os principais bens que Hobbes tem em mente são a riqueza (via lucro), a vida (via segurança) e a honra (via reputação). A competição move os homens em direção ao lucro; a desconfiança faz o mesmo em relação ao fim segurança; e o mesmo movimento em busca da glória leva os homens a acumular reputação e prestígio. Baseado na física mecanicista de Newton, Hobbes percebe os homens como autômatos, máquinas que tendem a manter o movimento a menos que elementos externos neles influenciem:

Com isto se torna manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens. (...) A natureza da guerra não consiste na luta real, mas na conhecida disposição para tal (HOBBES, 1979, p. 75-76).

E na guerra, como destaca, somente duas grandezas se sobressaem: a força e a fraude (Idem, p. 77). O uso da força física, num tal estado social, é condição necessária para a sobrevivência e para a manutenção daqueles bens capazes de prover a satisfação individual. Diante da flagrante neutralidade axiológica das ações humanas num contexto de ausência de Estado, mesmo a razão serve apenas para mediar e adequar meios que permitam a obtenção de poder e, conseqüentemente, felicidade.

É, pois, diante de tal situação que ele introduz o Estado em sua teoria política. É sempre importante deixar claro que Hobbes não pretende deduzir de seu estado de natureza uma observação de cunho histórico, fatual, como que reconstruindo as etapas da evolução da vida social humana. Ao contrário, teoriza ele sobre um modelo de sociedade que hipoteticamente resultaria se o Estado fosse metodologicamente abstraído da análise das relações sociais. E os dois fatores principais que movem os homens a conceberem o Estado são justamente as paixões e a razão. As paixões humanas que o movem em direção ao Estado são o medo da morte, o desejo daquelas coisas necessárias para uma vida confortável e a esperança de que conseguirá tais coisas através do trabalho (Idem, idem). A razão indica apenas o melhor caminho para a paz, sugerindo normas adequadas para se chegar a um acordo.

E todas as normas estabelecidas racionalmente pelos homens visam a um único fim: a limitação da liberdade. Somente o constrangimento da liberdade individual, via Estado, pode mitigar o estado de guerra permanente entre os homens e garantir sua sobrevivência e sua vida cívica. Daí nasce a idéia do contrato, que implica a transferência de direitos60. Nesse caso, os seres humanos abrem mão de sua liberdade natural, transferem racionalmente (isto é, por opção – ou pela falta dela, considerando-se o medo de uma morte supostamente iminente) seu principal direito natural que é o de dispor livremente de seu próprio poder, e da maneira que bem entender, para a preservação de sua vida e de seus bens. Por meio de sanções, cujo cumprimento é garantido pela “espada” (HOBBES, 19779, p 103), o Estado coage os homens a manterem seus pactos e a respeitar as leis de natureza, que podem ser resumidas na seguinte frase: “fazer aos outros o que queremos que nos façam” (Idem, idem). Os pactos feitos sem a “espada”, segundo Hobbes, “não passam de palavras, sem força para dar qualquer segurança a ninguém” (Idem, idem). Não se pode confiar nas palavras, assim como não se pode confiar nas paixões e desejos humanos; estes são essencialmente bélicos, egoístas, mesquinhos. O Estado é, portanto, um Deus-mortal, com poder sobre todos os homens de regular suas condutas, de mediar seus desejos e de reduzir as irrupções das paixões na arena das relações sociais. É também um “homem artificial” (Idem, p. 5), posto que é uma criação humana, da mesma forma que uma máquina. Ele deve, portanto, responder às demandas terrenas, e não divinas, que são essencialmente o direito à vida e à liberdade (a liberdade possível). Para proteger esses direitos o Estado deve formular leis. Diz Hobbes que “onde não há poder comum não há lei, e onde não há lei não há justiça” (Idem, p. 77). Conclui então que onde há lei, há também a justiça; a lei é a própria personificação da justiça. Então não existe lei injusta. E é o soberano quem possui o poder de promulgar as leis; logo, não se deve contestar a vontade do Estado. Há, enfim, diante da neutralidade moral intrínseca das ações humanas no estado de natureza, uma necessidade do Estado para a definição da justiça; logo, há uma necessidade do Estado para a definição das virtudes morais e, assim, da própria vida cívica; há, enfim, uma necessidade do Estado para se estabelecer o certo e o errado, o lícito e o ilícito, a guerra e a paz. O Estado é o próprio caminho para a paz.

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Hobbes ainda distingue o contrato do pacto, em que neste último está implícito que o contratante entrega seu direito com a confiança e promessa de receber sua parte em um momento posterior. Provavelmente tal distinção serve para acentuar o fato de que os bens esperados do Estado pelos contratantes adviriam num momento posterior, devendo, pois, o Estado sempre ser defendido e mantido pela população, sob pena de seus tão desejados frutos (segurança, especialmente) minguarem ainda no nascedouro. Sabe-se hoje o quanto essa ideia serviu para justificar o absolutismo de monarcas europeus. Sobre isso, ver CHEVALLIER, 1980.

Percebe-se claramente no pensamento de Hobbes a tendência a conceber as ações humanas como essencialmente egoístas, o que, dado um contexto de escassez, só pode levar a uma disputa intensa que pode custar a sobrevivência do indivíduo. Sua dedução das condições na qual o contrato social que estabelece o Estado passa a ser vantajoso para os indivíduos pressupõe essencialmente a ausência de vida ética e de moralidade nas relações sociais do estado de natureza (exceto, evidentemente, a moral individual que cada indivíduo tenta impiedosamente aplicar a todos os outros), o que significa dizer que a vida social pacífica, ou em outras palavras, a redução da imposição da violência nas relações humanas, depende fundamentalmente do estabelecimento de uma instância externa a cada indivíduo capaz de introjetar na sociedade, mesmo que forçadamente (via “espada”, isto é, sanções e repressão), a definição de certo ou errado que tendencialmente regulará as condutas individuais (isto é, o direito). O conteúdo político do Leviatã hobbesiano que aqui nos interessa reside na noção de que o direito é sempre estabelecido por uma vontade política (não importando a natureza mais ou menos democrática do poder soberano) e o respeito às normas decorre não apenas da legitimidade do ato que instaura o Estado (o contrato livremente pactuado entre os homens), mas essencialmente porque “aquele que as ordenas possui também o poder de coação”; é Hobbes, assim, o primeiro pensador a justificar a superioridade do direito positivo sobre o direito natural (SABADELL, 2010, p. 36).

O poder do Estado, que em Hobbes refere-se a um poder soberano61, deve ser o parâmetro moral da regulação das condutas. A ordem social institucional-legal a que se refere Machado da Silva precisa tomar o Estado como referência normativa, sob pena de não conseguir julgar determinadas formas de recurso à violência (como aquela que caracteriza a criminalidade urbana) como um desvio de conduta. Do mesmo modo, precisa ver no Estado o caminho para a imposição da lei e da ordem, através de suas instituições de controle social e repressão ao crime (especialmente a polícia).