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Norbert Elias: autocontrole dos impulsos como autorregulação da violência

PARTE II- O REVERSO DA HIPÓTESE: REGULAÇÃO DA VIOLÊNCIA

3.2 Pressupostos intersubjetivos da regulação da violência

3.2.2 Norbert Elias: autocontrole dos impulsos como autorregulação da violência

Para os propósitos deste trabalho, um passo adiante nessa formulação parece ser dado por Norbert Elias, na análise do que chama “processo civilizador”. Este consiste no processo histórico das culturas europeias ocidentais que, gradualmente, deslocaram a regulação das ações humanas do nível do controle social externo dos impulsos para o nível do autocontrole. Nesse caso, tal qual em Weber, fala-se da emergência (novamente não-planejada) de uma personalidade especificamente moderna, sendo que em Elias o autocontrole do recurso à violência adquire certa centralidade analítica.

Em Elias encontramos novamente a noção weberiana de que, se os indivíduos agem racionalmente em seus planos e motivações individuais, nem por isso o resultado de suas ações pode sempre ser tido como previsto ou desejado. Tal qual Weber, Elias está fundamentalmente preocupado em iluminar as condições históricas de surgimento da modernidade, que em seus textos assume o linguajar da sociedade civilizada (no caso, a europeia). De saída, importa realçar que o termo “civilizado”, de um ponto de vista conceitual, não pretende carregar juízos de valor, no sentido de tomar um resultado singular do processo histórico europeu como moralmente superior ao de outras sociedades ou conjuntos destas. Em todo caso, é inegável que, intimamente, Elias estivesse tentando dar uma resposta à ascensão da ideologia nazista na Alemanha e mesmo na Europa de seu tempo, e, descendente de judeus, sabia que a reificação do “outro” secretada pelo nacionalismo hitlerista na verdade significava um “passo atrás” do processo civilizador, que, como adiantamos, coloca a progressiva autorregulação da violência no centro do processo histórico. Diferentemente de Weber, entretanto, em Elias o detalhamento do movimento intrapsíquico de formação de personalidades adquire uma importância notável.

Para Elias, o processo externo de diferenciação de funções no interior das sociedades européias contribuiu de forma decisiva para que cada indivíduo dessas sociedades dependesse sempre mais de outro indivíduo para satisfazer necessidades de várias estirpes (afetivas, simbólicas, materiais). O motor dessa diferenciação foi sem dúvida o caráter sempre mais competitivo dessas sociedades, seja no que tange ao exercício do poder como no que se refere à troca e produção de mercadorias. O fato é que, ao depender cada vez mais do outro, a ação de um indivíduo precisava estar sempre sintonizada à de outros, pois só dessa forma ele teria suas necessidades satisfeitas. O ponto aqui é que essa sintonia não é obtida de modo planejado:

À medida que mais pessoas sintonizavam sua conduta com a de outras, a teia de ações teria que se organizar de forma sempre mais rigorosa e precisa, a fim de que cada ação individual desempenhasse uma função social. O indivíduo era compelido a regular a conduta de maneira mais diferenciada, uniforme e estável. (...) O fato seguinte foi característico das mudanças psicológicas ocorridas no curso da civilização: o controle mais complexo e estável da conduta passou a ser cada vez mais instilado no indivíduo desde seus primeiros anos, como uma espécie automatismo, uma autocompulsão à qual ele não poderia resistir, mesmo que desejasse. A teia de relações tornou-se tão complexa e extensa, o esforço necessário para comportar-se “corretamente” dentro dela ficou tão grande que, além do autocontrole consciente do indivíduo, um cego aparelho automático de autocontrole foi firmemente estabelecido. Esse mecanismo visava a prevenir transgressões do comportamento socialmente aceitável mediante uma muralha de medos profundamente arraigados, mas, precisamente porque operava cegamente e pelo hábito, ele com freqüência, indiretamente produzia colisões com a realidade social. Mas fosse consciente ou inconscientemente, a direção dessa transformação da conduta, sob a forma de uma regulação crescentemente diferenciada de impulsos, era determinada pela direção do

processo de diferenciação social, pela progressiva divisão de funções e pelo crescimento de cadeias de interdependência nas quais, direta ou indiretamente, cada impulso, cada ação do indivíduo tornavam-se integrados (ELIAS, 1993, p. 196).

A longa passagem acima resume esse processo de contenção interna dos impulsos. O mecanismo de autocontrole individual, se estimulado por pressões e tensões externas, é manejado (ou talvez fosse melhor dizer, vivenciado) internamente, seja de forma consciente ou inconsciente. A relação de intensa dependência que tal mecanismo guarda com as instituições externas de controle deriva do fato de que, apenas com a cristalização dos monopólios de regulação externa da conduta (por exemplo, o monopólio de uso da violência operado pelo Estado), podem ser inscritas recompensas e sanções universalmente válidas, cuja distribuição irá variar de acordo com o grau em que esse autocontrole torna-se passível de ser externalizado pelo indivíduo. Essa relação torna-se mais forte com a neutralização do feudalismo, já que ali o sistema econômico e de poder encontra-se incrustado em territórios autossuficientes, que impedem uma maior diferenciação das funções sociais e, com isso, impedem também a complexificação das redes de interdependência entre indivíduos cada vez mais diferenciados. Por isso, ocorre uma retroalimentação entre a menor necessidade de imposição externa da coerção sobre o comportamento individual (via ameaça de uso da “espada” pelo detentor do monopólio de uso da violência) e a concomitante necessidade de o individuo conter seus impulsos violentos no interior do território onde um monopólio de uso da violência se faz presente.

É notável como, nesse ponto específico de sua obra, Elias se aproxima de um pensamento hobbesiano, ao menos em seu aspecto descritivo do estado de natureza. Veja-se, por exemplo, esta passagem:

Anteriormente, na sociedade guerreira, o indivíduo podia empregar violência física, se fosse forte e poderoso o suficiente; podia satisfazer abertamente suas inclinações, que mais tarde foram fechadas por proibições sociais. Mas pagava, por essa maior oportunidade de prazer direto, com uma possibilidade maior de medo direto e claro. As concepções medievais do inferno, aliás, dão-nos uma ideia de como era forte esse medo que um homem inspirava em outro. Alegria e dor eram liberadas mais aberta e livremente. Mas o indivíduo tornava-se sua presa, jogado de um lado para o outro tanto por seus sentimentos quanto pelas forças da natureza. Tinha menos controle de suas paixões. Era mais controlado por elas” (ELIAS, 1993, p. 202).

Nela, encontramos o papel decisivo que o controle das paixões humanas desempenha no processo de pacificação social, tal qual em Hobbes. Diferentemente deste, entretanto, Elias está interessado em mostrar como tais estruturas intercalam-se com estruturas de personalidade totalmente novas, emergentes em uma época singular, que Hobbes apenas pode roçar levemente quando se refere ao “temor da morte” originário do contrato social que

instaura o Leviatã: embora o temor da morte seja sem dúvidas um componente (subjetivo, frise-se) importante da sociedade pacífica e civilizada, para Elias esse temor só pode se tornar um valor na medida em que normas de conduta possam ser internalizadas pelos indivíduos de forma cada vez mais “natural”; portanto, não consciente64

.

Como é um mecanismo interno e em grande medida inconsciente, o desenvolvimento histórico do autocontrole das pulsões – ou o “processo civilizador individual” (ELIAS, 1993, p. 204) – transfere as tensões decorrentes da torrente de paixões humanas que se entrechocam para o interior do indivíduo, promovendo a imposição do superego sobre a satisfação de prazeres imediatos e, com isso, a normalização de condutas de modo geral. Conforme ressaltado pelo autor, a maioria das pessoas encontra-se num meio termo entre os aspectos favoráveis ou desfavoráveis dessa repressão da libido, de modo que “tendências pessoalmente gratificantes e frustradoras, misturam-se nelas em proporções variáveis (Idem, p. 206). E, na medida em que há uma diminuição dos contrastes entre os povos, aliada a uma crescente diferenciação social (isto é, uma crescente mudança em sentido horizontal, e não vertical), e sempre margeadas por mudanças particulares nos campos econômicos, político e cultural, o desenvolvimento da Europa moderna assume para Elias o papel paradigmático de modelo do processo civilizador, trazendo a reboque toda a carga de autocontrole em que se encontra impregnado.

O balanço que nos interessa da obra de Elias parece agora bastante óbvio: apenas empunhar a “espada” não garante a ordem social pacificada65

. A redução do uso privado da violência, embora intimamente dependente da constituição de um monopólio externo de regulação da violência, é também produto de tensões decorrentes da introjeção de um superego que os indivíduos precisam administrar cotidianamente, sob pena de “exclusão moral” em caso de falha (seja pela punição informal - “vergonha”; seja pela punição legal -

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Daí a importância, por exemplo, de se estudar com afinco sentimentos como o de “vergonha”, “embaraço” ou a “repugnância”, especialmente os decorrentes das normas de etiqueta (que marca o momento em que sentimentos e expectativas individuais são codificadas, passando a retroalimentar o próprio sentimento). Cf. Elias, 1993, pp 242-248. É nesse aspecto também que o mecanismo do habitus torna-se decisivo, devido à sua possibilidade de articular, de forma praticamente inconsciente, expectativas sociais cristalizadas em papeis, funções, sanções e recompensas, de um lado, e a resposta a tais expectativas, cristalizadas em comportamentos mais ou menos ajustados à “sociedade”, ou entre estabelecidos e outsiders (Cf. ZALUAR, 2014, p.39; ELIAS, 1993, p. 259).

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“Para os membros de uma sociedade em que é grande a divisão de funções não basta simplesmente governar indivíduos e países subjugados pela força das armas, como se formassem uma casta guerreira, embora os velhos e simples objetivos da maioria dos antigos movimentos expansionistas – a expulsão de outros povos de suas terras, a aquisição de novos solos para cultivo e assentamento – indubitavelmente tenham desempenhado um papel nada pequeno na expansão do Ocidente. Mas a necessidade não é só de terra, mas também de pessoas. Elas têm que ser integradas, seja como trabalhadores seja como consumidores, na teia do país hegemônico, de classe superior, com sua diferenciação altamente desenvolvida de funções” (ELIAS, 1993, p. 259).

“prisão”). Aqui cabe uma observação fatual: a redução da criminalidade letal no território europeu nos últimos duzentos anos pode, sem sombra de dúvidas, ser relacionada ao duplo processo civilizador (social e individual) descrito por Elias. Mas a menção a esse dado concreto não deve subverter os objetivos deste trabalho: não buscamos aqui reconstruir etapas históricas do abrandamento das paixões humanas em casos concretos, mas confeccionar modelos de ação que possam explicar, em cada realidade concreta particular, a maior ou menor tendência ao uso controlado, racional, justificado, da violência. Nessa seara, a contribuição de Norbert Elias é fulcral.