• Nenhum resultado encontrado

DE ALDEIA DE PESCADORES AO BALNEÁRIO INTERNACIONAL: O DESTINO DOS EMPREENDIMENTOS TURÍSTICOS

EVENTOS – POR ESTADOS DA FEDERAÇÃO

3 O TURISMO EM ARMAÇÃO DOS BÚZIOS: CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO SOCIAL E A DINÂMICA DO FENÔMENO TURÍSTICO.

3.2 DE ALDEIA DE PESCADORES AO BALNEÁRIO INTERNACIONAL: O DESTINO DOS EMPREENDIMENTOS TURÍSTICOS

Nos anos 1970 a localidade era divulgada ‘boca-a-boca’, atraindo veranistas. O então jovem arquiteto Otavio Raja Gabaglia tinha ‘o sonho’ de transformar Búzios na ‘Saint Tropez brasileira’. Como primeiro passo, Gabaglia providenciou a colocação de grandes pedras na rua principal da cidade (Figura 6), como medida de calçamento que veio a ser conhecida como Rua das Pedras, atualmente uma referência como ponto de encontro em Búzios.

Figura 6. Rua das Pedras – antes e depois do calçamento.

Fonte: Acervo de Bernard de Castejá

O maior desafio seria manter um padrão de construção charmoso e sem muitas edificações, sem muitos andares. Como não havia lei que tratasse do tema, Gabaglia criou a sua, e interpelava as construções que ameaçassem seus projetos, o que lhe rendeu a alcunha de “Xerife”. Essa prática, conhecida pelos moradores como “Lei Raja Gabaglia” foi respeitada em Búzios por quase dez anos até que, de fato, o então prefeito de Cabo Frio, José Bonifácio, a pedido de Gabaglia, decretasse que as construções em Búzios não poderiam ter mais do que dois andares. Gabaglia e o também arquiteto Hélio Pellegrino são apontados como responsáveis pelo estilo arquitetônico de Búzios. O “Estilo Búzios” se baseia na arquitetura com uso de materiais já existentes na região, com ampla aplicação de

pedras e madeira, com a concepção de que seriam construções dotadas de “charme e conforto”.

Sobre o “Estilo Búzios”, Xavier (2006) em sua dissertação intitulada “Búzios: estética, poder e território” propõe que esta marca se trata da “construção social de um padrão estético-arquitetônico que se auto intitula ‘peculiar ao local’”. Muitas construções do município teriam se inspirado na técnica e nos elementos construtivos dos pescadores cujas adaptações são atribuídas ao arquiteto Otávio Raja Gabaglia como sendo o “inventor do Estilo Búzios” (XAVIER, 2006, p.136).

Assim, o “Estilo Búzios” evoca a articulação entre a simplicidade e a sofisticação, e sintetiza os sentidos associados ao lugar, como imagem imaterial, promovida como o “charme de Búzios”. Xavier (2006) aponta esta estética como uma codificação, um instrumento de “distinção social” (BOURDIEU, 2007). Como ideologia materializada entre os proprietários de edificações em Búzios, torna-se ícone de uma classe e de seus valores, promove uma tentativa de homogeneização estética local, “[...] ao acionar o discurso identitário fortemente apoiado noutras intervenções no espaço físico da cidade” (XAVIER, 2006, p.142).

À luz de Bourdieu (2007), a distinção social se dá pelos gostos e hábitos praticados pelos sujeitos sociais e tais práticas são traduzidas em uma classificação social objetiva pela posição que estes sujeitos ocupam na sociedade. Percebe-se, em Búzios, como - a partir da Rua das Pedras e do ‘Estilo Búzios’ - se sucederam as determinações de uma classe dominante no processo de transformação da aldeia de pescadores em balneário sofisticado, atribuindo a este território funções e objetos associados à atividade turística. De acordo com Santos (2004, p.247),

[...] as ações hegemônicas se estabelecem e se realizam por intermédio de objetos hegemônicos, privilegiando certas áreas. Então, como num sistema de sistemas, o resto do espaço e o resto das ações são chamados a colaborar.

Xavier (2006) comenta que uma das estratégias utilizadas pelo “Xerife” para a “internalização dessa lógica formalista” foi a doação de projetos de arquitetura para a população que não poderia pagar, sugerindo materiais mais acessíveis. E assim teria sido a adesão ao “estilo búzios” também para a população local. São poucos os relatos dos nativos na seletiva história de Búzios; eles estão espalhados em blogs e posts, recortes de jornais nem sempre dotados de credibilidade para o

trabalho acadêmico. O fato é que a população teve que se adaptar ao destino traçado pelos “de fora” para a sua cidade.

Cunha (1997) ressalta que, apesar das restrições edificantes impostas pela administração municipal entre 1977 e 1982, a priorização do loteamento extensivo para a construção de casas de veraneio não teve o cuidado na preservação do patrimônio natural, o que agravou os serviços públicos já precários, como o fornecimento de eletricidade, agua e telefone. Também o ambiente marinho teria sofrido danos com a intensificação da atividade pesqueira tradicional e da caça submarina. “O surto desenvolvimentista teria sido acompanhado pelo estabelecimento de charmosas pousadas, restaurantes, bares, casas noturnas e boutiques” (CUNHA, 1997, p. 26).

Até meados dos anos 1980, Búzios dispunha de espaços pequenos, que aumentavam a sensação de exclusividade. Não era o tamanho do empreendimento que atraía os visitantes, a maioria veranistas, seus amigos e convidados ilustres, mas o privilégio que era estar ali. Em 1983 a Rua das Pedras abriu uma das portas que viria a ser uma das maiores atrações da localidade. Desde os anos 1990 o Chez Michou ocupa um grande espaço na Rua das Pedras, ponto de encontro por onde passaram Ayrton Senna, Pelé, Xuxa, Luiza Brunet, Robert Plant e músicos do Queen. Foi, também, palco de eventos como o Festival Chez Michou in Concert, que se transformou no Búzios Jazz e Blues, adotados no calendário da cidade, atraindo músicos do mundo todo para o balneário (FISCHBERG, 2017).

Entre os anos 1980 e 1990, Armação dos Búzios vivenciou o aumento da demanda por novos investimentos em empreendimentos de grande porte, tornando- se um “ponto privilegiado de apropriação de excedente econômico nas escalas nacional e internacional” (XAVIER, 2006 p. 67) e na desapropriação dos recursos locais, dada a presença efetiva do investidor estrangeiro. Os “Sampaio”, herdeiros das terras de Eugenne Hanold, retomaram o processo de loteamento através da Companhia Industrial Odeon – ECIA ODEON. Para a implantação do loteamento da praia de João Fernandes a empresa precisou passar pela compra do direito de posseiros e a vitória judicial sobre os antigos ocupantes destas terras (XAVIER, 2006 p. 73).

Um dos grandes investidores do início dos anos 1980 foi o imigrante franco- argelino Umberto Modiano. Modiano foi um dos maiores exportadores de café do Brasil até ter problemas com a empresa Ouro Fino S/A e com o governo pelo

Instituto Brasileiro do Café (IBC), movendo mais de vinte ações judiciais pelas sucessivas intervenções do Estado em seus negócios. As ações resultaram em indenizações milionárias, entre elas as terras da Rasa concedidas através do Banco Central (REVISTA VEJA, 1991, p. 67). Claudio Modiano, seu filho, foi autor do projeto do complexo turístico da família, na região da Rasa, em Búzios, inaugurando uma fase de grandes investimentos na região (XAVIER, 2006, p.67 -68).

A grandiosidade destes investimentos contrasta principalmente ao contexto sociopolítico e econômico do país das décadas 1980-1990. De acordo com Gilberto Marangoni (IPEA, 2012), ao final dos anos 1980, os baixos valores salariais e a crescente concentração de riqueza, levou cerca de um terço da população brasileira a iniciar os anos 1990 na linha de pobreza. Foi em um conturbado cenário sociopolítico e econômico que Búzios emerge de sua aura de ‘refúgio’ como aldeia de pescadores, para ‘vitrine’ do turismo nacional e internacional, atraindo empreendimentos grandiosos que romperiam notadamente com as suas perspectivas locais.

Umberto Modiano investiu por conta própria aproximadamente U$ 10 milhões (à época) em grandes e inovadores empreendimentos, que incluíam o Hotel Nas Rocas (um resort com 70 bangalôs na Ilha Rasa) um condomínio-marina (Marina Porto Búzios), um aeroporto para jatos particulares, um clube náutico e campos de pólo, golfe e tênis (JORNAL DO BRASIL, 1989). Em entrevista ao jornal O Peru Molhado no ano de 1991, Umberto Modiano expressou sua visão sobre a expansão dos empreendimentos através de elevados investimentos estrangeiros para apropriação de recursos territoriais de Búzios, tornando-o transnacional e numa intensidade contrastante à lógica das trocas locais:

Búzios se dará muito bem, especialmente pelo investimento estrangeiro. Já houve provas como o Saint Tropez e o Le Club. Também os italianos de João Fernandes. O pouco que estou vendendo de terrenos e casas é praticamente em sua totalidade para estrangeiros. E nós somos essa glória de microclima e bom astral que não só atrai os tupiniquins como o estrangeiro, que fica fascinado (MODIANO, 1991 apud XAVIER, 2006, p.73).

Além dos grandes empreendimentos físicos no território, Umberto Modiano investiu também na construção da imagem de Armação dos Búzios nos meios de comunicação. Estrategicamente, o Hotel Nas Rocas e a Marina Porto Búzios foram utilizados várias vezes como sets de filmagens de novelas e minisséries de canais abertos de TV e filmes publicitários. Modiano também foi o principal patrono do

Jornal O Peru Molhado, que começou a circular em 1981, em troca da propaganda de seus empreendimentos e das belezas da península42 (JUSTUS, 1996 p.64), além

de ser um dos principais canais de comunicação para o movimento de emancipação político-administrativa que surgia em Búzios. Dessa forma observa-se como as relações de poder se estabelecem pelos meios de comunicação, e permitem a acumulação não só do poder material, mas também simbólico por parte de seus agentes (BOURDIEU, 1989).

O Peru Molhado foi fundado pelo fotógrafo argentino Marcelo Lartigué e seu sócio o jornalista português Anibal Fernando Henriques Martinho em 1981. “O Perú” teve edições em inglês e em espanhol, totalizando 1.239 edições em 34 anos ao preço de R$ 1,00 nas bancas de jornal, embora a maior parte das publicações fosse distribuída gratuitamente nas pousadas, restaurantes e comerciantes locais, muitos deles seus anunciantes e colaboradores. “O Peru” era apontado como “o maior jornal de Búzios” e o mais irreverente do estado do Rio de Janeiro. Apesar de tudo, trata-se de um veículo importante para fins de pesquisa quanto ao cotidiano da cidade. Sobreviveu a várias crises, porém, em 1º de Abril de 2015 circulou a sua ultima edição, devido em grande parte ao falecimento de Marcelo Lartigué em 2014. Outros dois veículos de comunicação locais dos finais dos anos 1980 e início dos anos 1990 que também foram relevantes para a imagem e para a campanha de emancipação do município foram a rádio Búzios FM e a TV Búzios, iniciativas da família Uchoa. Na década seguinte surgiram outros meios de comunicação, como: os jornais “O Buziano”, “O Pescador”, o “Siri na Lata” e o “Jornal Armação dos Búzios”, a revista “Búzios Mais”, o jornal “Ênfase” (2004), com duas rádios FM - a “Rádio Popular de Búzios” e a “Nativa Búzios” -, além de uma estação AM (XAVIER 2006). Vários destes veículos já não se encontram em atividade.

Nos anos de 1990, Búzios recebeu também um novo equipamento cultural, o Grand Cine Bardot. No espaço havia um cinema, uma livraria e um café. Muitas cadeiras foram nomeadas por pessoas que contribuíram para a sua implantação. A

42 Xavier (2006 p. 73-74) aponta que se pode estabelecer mais uma aproximação com Bourdieu (1989, p. 11), na medida em que as relações de comunicação são indissociáveis das “relações de poder que dependem, na forma e conteúdo, do poder material ou simbólico acumulado pelos agentes (ou pelas instituições) envolvidos nessas relações e que [...] podem permitir acumular poder simbólico”.

partir desta iniciativa, a cidade passou contar em seu calendário de eventos com o “Búzios Cine Fest”. Por muito tempo este foi o único cinema da cidade.43

Do outro lado da península, desde 1986, Carlos César de Oliveira Sampaio (o “Boy Sampaio”) iniciou um processo de desmembramento de terras. Criou um novo loteamento, denominado Nova Geribá, na praia das Emerências, no bairro de Tucuns destinado não só a lotes residenciais, mas também a condomínios para villages e hotéis (MARTINEZ, 2012). Após 20 anos de disputas e recursos que visavam preservar as Dunas de Tucuns, mais uma vez foi o poder do capital que prevaleceu. Foi autorizada a construção de mais um megaempreendimento, o Breezes Búzios Resort & Spa (atual Búzios Beach Resort). O arquiteto João Uchôa, que defendia a ecologia como produtor da TV Búzios/EcoTv nos anos 1990), foi coordenador dos projetos ambientais e sociais do empreendimento, defendeu o resort como “uma semente” para se repensar a responsabilidade social e a sustentabilidade na cidade.

Outro grande investimento voltado ao turismo foi o Porto Veleiro. Além de promover o embarque e desembarque de passeios de escuna, também recebeu a primeira temporada de cruzeiros marítimos no Brasil após a quebra de monopólio da Companhia de Navegação Loyd Brasileiro (extinta em 1997), e a liberação da lei de cabotagem, ou seja, da navegação intercalada na costa brasileira. Cercado de polêmicas quanto à sua operação e expansão em disputas com a prefeitura municipal, em junho de 2017 o Porto Veleiro interrompeu suas atividades, deixando desempregados – direta ou indiretamente – mais de 300 pessoas. O impacto foi sentido em todo o comércio da Praça e Praia dos Ossos.

Para este estudo que trata das perspectivas para o turismo religioso em Búzios é relevante destacar (e contrastar) que o grande porte desses empreendimentos está associado à expectativa de atrair um público, turista ou veranista, de alto poder econômico e cada vez mais elitizado. Configura-se uma polarização social na localidade, “[...] um distanciamento espacial, econômico e social marcado pela implantação desses empreendimentos em relação às condições pretéritas do lugar” (XAVIER, 2006 p.72). Milton Santos (2004) nos ajuda a

43 Em 2013 a Prefeitura em parceria com a Prolagos inaugurou o Cine Teatro da Rasa, com o

“objetivo de se tornar um novo espaço para lazer e fomento da cultura nacional, com acesso a sessões de cinema e apresentações teatrais a baixo custo”. O espaço conta com 119 poltronas de couro, quatro delas destinadas a pessoas com mobilidade reduzida.

compreender esse distanciamento ao analisar “o espaço como um conjunto de fixos e fluxos”:

Os elementos fixos, fixados em cada lugar, permitem ações que modificam o próprio lugar, fluxos novos ou renovados que recriam as condições ambientais e as condições sociais, e redefinem cada lugar. Os fluxos são um resultado direto ou indireto das ações e atravessam ou se instalam nos fixos, modificando a sua significação e o seu valor, ao mesmo tempo em que, também se modificam (SANTOS, 2004, p. 61).

Verifica-se em Búzios o quanto à implantação destes empreendimentos, a partir dos anos 1980, como novos fixos, geraram um tipo novo de fluxo, exclusivo e excludente, que rompeu com o entorno e passou a reproduzir uma estratégia dos fluxos dominantes. Também se percebe que, tendo sido criados à época da eminente emancipação e pelos ‘novos donos do lugar’, os empreendimentos estiveram à margem das legislações ambientais e de ordenamento municipal que lhes fora impostos posteriormente, inviabilizando muitos deles. Aplica-se esta análise ao exemplo do complexo turístico da Rasa e ao Porto Veleiro. Na Rasa, os espaços antes destinados à pesca e à agricultura de autoconsumo, ou destinada ao pequeno comércio e a serviços praticados por residentes, sendo alguns originários de comunidades quilombolas, abandonaram seus espaços e suas tradições devido aos “novos fixos”. O condomínio Marina Porto Búzios e o Hotel Nas Rocas passaram a atrair uma demanda diferenciada da realidade local, modificando todo o seu entorno. Além do mais, devido às distancias estimulou uma ocupação para residências de empregados destes empreendimentos em suas proximidades.

Da mesma forma ocorreu com o Porto Veleiro, na Praia da Armação, junto à centenária Igreja de Santana. Ao ser destinado para o desembarque contínuo dos dois a quatro mil passageiros de transatlânticos, influenciou diretamente nos fixos e nos fluxos do centro histórico de Búzios e no cotidiano dos pescadores que ali aportavam suas pequenas embarcações e comercializavam sua produção. Muitas vezes, a chegada dos navios produziram ondas que danificaram as embarcações pesqueiras atreladas às estacas do cais. A abertura para o desembarque de transatlânticos privilegiou mais uma vez as atividades em atendimento aos turistas, aos “de fora”, exigindo também uma mudança na ocupação profissional e física dos residentes que viviam da pesca.

3.3 EMANCIPAÇÃO E ESTRUTURAÇÃO DO TURISMO NO MUNICÍPIO DE