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RELIGIOSIDADE NA SOCIEDADE BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: ARCAÍSMO E PÓS-MODERNIDADE.

1 RELIGIOSIDADE E TURISMO: FENOMENOS CONTEMPORÂNEOS

1.2. RELIGIOSIDADE NA SOCIEDADE BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: ARCAÍSMO E PÓS-MODERNIDADE.

A América Latina, ‘inventada’ pela Europa em seu processo de colonização e dependência, inicialmente por Portugal e Espanha, seguido de intervenções de outras nações, como França e Inglaterra, no decorrer do século XX percebe-se hoje subordinada aos Estados Unidos. Esse deslocamento de subordinação a cada período é demarcado por conflitos e processos de hibridação que produzem modificações nas cidades, nos mercados, nos vínculos tecnologia-cultura e nos deslocamentos populacionais – turistas, migrantes, exilados (CANCLINI, 2006).

De modo semelhante às cidades do Primeiro Mundo, muitas urbes latino-americanas - ao mesmo tempo em que são laboratórios de uma multiculturalidade degradada – se desenvolvem como núcleos estratégicos da inovação comercial, informática e financeira que dinamiza o mercado local ao incorporá-lo a circuitos transnacionais (CANCLINI, 2006 p.16).

Apesar de estar totalmente inserido no ideário da sociedade de consumo, de ter passado por um processo intenso de industrialização e urbanização, não se pode dizer que o Brasil tenha concluído sua fase de modernidade periférica, embora nele possamos considerar alguns traços de pós-modernidade. Pode-se interpretar o momento como um estado de “hibridação” (CANCLINI, 2006), que “[...] ocorre quando o moderno e o tradicional ainda se misturam”, situação típica da América Latina Contemporânea (ALVARENGA; SILVA, 2011 p. 925).

A antropóloga Carmen Rial (1993) aponta que o projeto da Modernidade Ocidental encontrou aqui no Brasil resistências muito profundas, que sua pretensa homogeneidade não realizou todas as reduções previstas, pois o país é um mosaico de ‘tribos’: “dos Yanomamis da Amazônia aos punks de São Paulo, dos alemães de Blumenau aos travestis e aos meninos de rua” (RIAL, 1993, p.128). O Brasil que em tantas instâncias da vida social reúne o arcaico ao moderno, discursos homogêneos

e heterogêneos, hierarquias e igualdades, talvez, por isso mesmo seja um cenário propício para se pensar a pós-modernidade (RIAL, 1993).

Desde a colonização, Igreja e Estado – primeiro o português e depois o brasileiro – mantêm relações muito estreitas, tendo sido a religião católica a religião oficial do Império na Constituição de 1824. O Brasil se tornaria um Estado laico a partir da Proclamação da República, com o Decreto nº 119-A, de 07/01/1890, de autoria de Ruy Barbosa. A vigente Constituição da República Federativa do Brasil promulgada em 1988, mais democrática, em seu art. 5º, inciso VI, dispõe que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias” (RUSSAR, 2012).

Ocorre que enquanto na Europa Ocidental e nos Estados Unidos o processo de secularização foi progressivo, marcado pela “continuidade” estimulado pelo protestantismo como paradigma do estabelecimento da ‘pós-modernidade’, nos países predominantemente católicos da América Latina, desde meados do século XIX, a modernidade foi marcada pela “ruptura”, resultado das disputas de poder na Igreja, avessa à secularização e ao Estado laico. De acordo com Jean Pierre Bastian (1997, p.9)11

[...] na resistência à secularização, atores religiosos têm se manifestado em um período de tempo maior na América Latina, provavelmente devido à força do comunitarismo e condições socioeconômicas (pobreza endêmica) e sociocultural (analfabetismo) que fazem da religião um fator revelador de que é possível mobilizar contra qualquer política de modernização imposta “de cima” (BASTIAN, 1997 p.9 apud ALVARENGA; SILVA, 2011 p. 926).

Dessa forma, o catolicismo se preservou e se tornou referência de boa parte dos valores e das atitudes populares no Brasil. Deve-se considerar também que o catolicismo brasileiro sempre foi mais caracterizado pela “Pequena Tradição” do que pela “Grande Tradição” na religião (ALVARENGA; SILVA, 2011, p. 926). Isso significa dizer que o catolicismo no Brasil sempre se expressou de modo mais

11 Jean Pierre Bastian realizou um estudo de história comparada que resultou na obra La modernidad

religiosa: Europa Latina y America Latina (1997). Segundo ele “[...] la resistencia de los actores

religiosos a la laicización se há manifestado en un lapso de tiempo mayor em America Latina, probablemente debido a la fuerza de los comunitarismo y a las condiciones socioeconómicas (pobreza endémica) y socioculturales (analfabetismo) que hacen de lo religioso un factor revelador que es possible movilizar contra culaquier política de modernización romovida desde arriba”. (BASTIAN, 1997 p.9 apud ALVARENGA; SILVA, 2011 p. 926)

popular e menos dogmático do que nos países centrais. Entre os vários fatores encontram-se aspectos relacionados ao multiculturalismo. Inúmeros estudos no campo da antropologia, da sociologia e da história se dedicam a desvendar as várias faces do ‘sincretismo religioso’, como uma das marcas da cultura nacional. Desde que os portugueses aqui chegaram em 1500 com a doutrina cristã católica, entraram em contato com as culturas indígenas e posteriormente com as africanas e, ainda que imposto o cristianismo, não se apagaram totalmente os traços de identidade desses grupos culturais, caracterizando um processo de hibridismo religioso que hoje se revela como um rico recurso histórico, inclusive para o turismo.

O multiculturalismo se opõe ao etnocentrismo, que é uma dificuldade de pensar a diferença e de se considerar como centro do universo e superior aos demais grupos étnicos e culturais. O etnocentrismo valoriza os preconceitos raciais e se opõe à relativização, o que contraria a direção da tolerância à diversidade religiosa.

[...] o paradigma do sincretismo – até então elo imaginário integrador de diversidades raciais e culturais – vai cedendo lugar ao paradigma da inclusão, que nomeia a sociedade a partir de um leque muito mais vasto de diferenças: de crenças, de cor, de posição social, de gêneros, etc. O deslocamento das questões de nacionalidade para as questões de cidadania tem obrigado ao exercício cada vez mais explícito e desafiador do “desacordo regulado de opiniões”12 na feliz expressão de Binoche, como forma de fazer parte da dinâmica social (MONTERO, 2015, p.12)

Constata-se assim que a sociedade brasileira se apresenta como um grande campo “plurivocal”, “multidiverso” (SILVEIRA, 2007, p.37) em termos religiosos, que abarca as mais diversas manifestações religiosas: Catolicismo; Protestantismo; religiões afro-brasileiras como Candomblé, Umbanda e Xangô; Nova Era; práticas Xamânicas, entre outras. Este pluralismo religioso se intensificou na sociedade brasileira a partir das décadas de 1980 e 1990, com a aceleração da modernização industrial e da urbanização em torno das capitais e das cidades de médio porte (SILVEIRA, 2007).

Até algumas décadas atrás, ao se falar sobre a “religião dos brasileiros”, seria praticamente o mesmo que falar do catolicismo (SANCHIS, 2001, p.10). O Brasil ainda é o maior país católico do mundo, porém essa população vem diminuindo. Segundo o censo do IBGE 2010·, se em 1970 havia 91,7% de

12 Expressão utilizada por Bertrand Binoche (2012) para descrever como a noção de opinião pública

brasileiros que se declaravam católicos, em 2010 esse percentual baixou para 64,6% (ver Figura 2).

Figura 2. Gráfico das proporções de adeptos às religiões no Brasil de acordo com censos populacionais de 1872 a 2010.

Fonte: RITTO, Cecília. O IBGE e a Religião: cristãos são 86,8% do Brasil; católicos caem para 64,6% e evangélicos já são 22,2%. VEJA On Line. 29.06.2012.

Pelo gráfico acima se observa a gradativa representatividade de outras matrizes religiosas em detrimento da predominância católica histórica entre a população brasileira.

Outro estudo, o Mapa das Religiões, coordenado por Marcelo Neri pelo Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPS/FGV) publicado em 2011 se utilizou de dados preliminares do censo de 2010 e outras pesquisas do IBGE e do CPS/FGV. Entre as contribuições para o tema em questão podemos destacar que no Brasil 89% da população considera que a religião é importante. Em 2009 foi registrada estatisticamente a menor participação de católicos na história do Brasil: 68,43%%, correspondendo a 130 milhões de brasileiros. Mesmo presente em todos os grupos a queda no catolicismo é maior entre os jovens. Acompanhando a

trajetória religiosa de cada geração o autor supõe que “As pessoas se tornam mais religiosas à medida que se aproximam do final da vida” (NERI, 2011, p.15 -18).

A análise por gênero sugere que as mulheres também permanecem historicamente como mais religiosas que os homens: entre as mulheres apenas 5% declaram não professar nenhuma religião; entre os homens, 8,52%. Porém as mulheres são menos católicas (71,3%) do que os homens (75,3%). O autor supõe que , enquanto os homens abandonam as crenças, as mulheres mudam de crenças. Ele associa essa mudança de religião à chamada “revolução feminina” visto que questões relacionadas à contracepção, divórcio, aborto, são tabus para a Igreja Católica. A independência feminina gerou uma revolução de costumes e levou à adaptação de suas crenças para exercício de sua religiosidade sem “culpa”. Em nota o autor assinala que “as igrejas pentecostais não valorizam a atuação moderna da mulher, mas de qualquer forma, dialogam com a questão de forma diferente da religião católica” (NERI, 2011, p.22).

A tese weberiana original é de que a ética – culpa – católica inibiria a acumulação de capital e a divisão do trabalho, motores do desenvolvimento capitalista. Similarmente a ética católica estaria sendo trocada por outras mais em linha com a emancipação feminina em curso (NERI, 2011, p.22).

Apesar de mais presente entre os pobres (72,8% na classe E), o catolicismo é também mais alto na elite (69,1% nas classes AB) (NERI, 2011, p.12).

Tabela 1. Grandes grupos religiosos por classe econômica no Brasil.

O estudo analisa que entre as 27 unidades da federação os estados nordestinos são os mais católicos com o equivalente a 74% de sua população (NERI, 2011). O Estado do Rio de Janeiro é o segundo em menor número de católicos (apenas 49,83% da população) e também o segundo menos religioso, com 15,95% da população se declarando como “sem religião”. Roraima está em primeiro lugar, tanto como o estado com menos católicos (46,78%) como o que há mais pessoas se declarando “sem religião” (19,39%) (NERI, 2011, p.32). Em relação às religiões evangélicas tradicionais, o estado do Rio de Janeiro ocupa o quinto lugar; é o décimo quinto colocado nas religiões evangélicas pentecostais. É o estado recordista nas religiões espíritas (3,37%) e também nas afrodescendentes (1,61%); Ocupa o 2º. lugar entre os adeptos das religiões orientais (com o equivalente a 0,69%, sendo São Paulo o primeiro com 0,78%) e está em 3º. no conjunto das “demais religiões” (3,62%) , depois de Pernambuco (4,25%) e Roraima (6,17%) (NERI, 2011, p. 35). Ou seja, o Rio de Janeiro é um estado plurivocal no campo religioso e este não exerce atração para 15,95% da população.

Em matéria publicada pela Revista Veja On Line (2012), a jornalista Cecília Ritto apresentou a percepção de diferentes especialistas sobre a tendência de redução dos católicos e a expansão das correntes evangélicas e dos “sem religião” no Brasil, apontados pelo censo IBGE/2010. Cesar Romero Jacob, cientista político da PUC-Rio, observa que nos anos 1980 e 1990 o Brasil vivenciou intensos processos de migração gerando a ocupação de periferias e a favelização nas grandes cidades. Essa migração já não era mais motivada pela ascensão social, mas em decorrência da expulsão das pessoas do campo, em grande parte, pessoas de baixa renda e escolaridade. Na ausência do Estado e da Igreja Católica, os pentecostais acompanharam essa movimentação, assumiram a centralidade como guias espirituais e assistencialistas. Diante desta mudança na distribuição espacial das pessoas, Jacob compara: “A Igreja Católica é como um transatlântico, que demora muito para mudar um pouquinho a rota, devido ao tamanho de sua estrutura burocrática

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Já os evangélicos são como pequenas embarcações” (RITTO, 2012, [s/p])

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Esta analogia se refere, por exemplo, à burocracia, ao custo e ao tempo para ordenar um padre (em torno de 8 anos) e em todo o processo hierárquico para se fundar uma igreja se comparado às iniciativas de construção e fundação de uma

igreja pentecostal e à formação de um pastor, o que pode ocorrer em menos de três meses (RITTO, 2012).

Outro aspecto, ainda na década de 1990, diz respeito ao ingresso de muitos pentecostais na política, que se tornou uma plataforma para o crescimento destas igrejas e de projeção do próprio pastor. José Eustáquio Diniz, demógrafo da Escola Nacional de Estatísticas, aponta que além do crescimento das pentecostais entre a população de menor renda, há presença também da nova classe média, para o qual a “teologia da prosperidade” seria um dos principais fatores para esta adesão (RITTO, 2012, [s/p]). E Diniz complementa,

O impacto dessa mudança é grande para a Igreja Católica. A Rússia teve revolução e permaneceu ortodoxa. Os Estados Unidos, mesmo com a Guerra Civil, se mantiveram protestantes. Entre os países grandes, mudanças assim só ocorreram em consequência de guerras e revoluções. No Brasil, a revolução é silenciosa. (RITTO, 2012, [s/p.]).

Por outro lado, segundo Montero (2015) no caso brasileiro, a esfera civil foi se construindo neste processo de separação da Igreja Católica em relação ao Estado, frente ao declínio progressivo da identificação imaginária, entre Igreja Católica e sociedade civil.

Quanto mais essa disjunção se aprofunda, mais as religiões passam a ser relativas, ficando progressivamente reduzidas “a simples opiniões irredutivelmente plurais” [...] supõe que nenhum corpo substantivo de crenças consegue mais, sozinho, regular a totalidade da vida coletiva, e, consequentemente, a doutrina política da tolerância vai ganhando força como princípio de normatividade, tornando-se gradualmente o modo correto de sancionar a convivência entre as diferenças (MONTERO, 2015, p.13).

Neste sentido Sanchis (2001) considera que no Brasil, apesar da modernidade se confirmar no indivíduo racional e autônomo, em nenhum campo a pós-modernidade se faz tão presente quanto no campo da religião. Para o autor, no campo da “religião dos brasileiros” parecem concorrer duas dialéticas que se entrelaçam nos estudos empíricos: uma se refere às “[...] reivindicações institucionais de disciplina e ortodoxia” e a outra, em relação ao nível existencial dos fiéis que apresenta um progressivo “[...] centramento da vida religiosa em experiências subjetivas, ao mesmo tempo idiossincráticas e comunitárias” (SANCHIS, 2001, p.45). Soma-se a isso, a ampla adoção das tecnologias de

comunicação por parte das religiões, notadamente das igrejas católicas movidas pela Renovação Carismática e da multiplicação de canais de acesso às igrejas pentecostais. Emissoras de rádio e televisão, sites, blogs e redes sociais entre outros recursos da internet, congressos, shows e demais eventos associados à evangelização e à conquista de novos fiéis através de novas linguagens, e de novos produtos.

É neste contexto que as fronteiras cartesianamente estabelecidas entre religião, cultura popular e turismo são implodidas, instalando um fluxo de identificações via meios de comunicação e de mercado, no quais se inserem os agentes religiosos. Emerge assim a plurivocalidade da categoria ‘turismo religioso’, uma espécie de “transversalização” entre as esferas dos agentes econômicos do turismo e a de “determinados agentes eclesiásticos” (SILVEIRA, 2007, p.38).

1.3. RELIGIOSIDADE E TURISMO: SOBRE PEREGRINAÇÃO E TURISMO