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ALEMANHA

No documento Feminismo e direito penal (páginas 96-99)

5.1 ALGUMAS ALTERAÇÕES LEGISLATIVAS NO DIREITO ESTRANGEIRO

5.1.1 ALEMANHA

As alterações havidas na legislação penal alemã, no final da segunda metade do século XX, foram precursoras da onda de reformas que marcou o ordenamento jurídico de diversos países da Europa ocidental, como foi o caso de Espanha e Portugal.

Em meados dos anos 60, na República Federal da Alemanha, um grupo de jovens penalistas preparou um inovador projeto de reforma, que ficou conhecido como Projeto Alternativo.

Opondo-se frontalmente ao conservador Projeto de Reforma de 1962, de cunho governista, o Projeto Alternativo exalava ares liberalizantes. Foi conferida especial atenção ao âmbito do Direito Penal sexual, destacando-se propostas que buscavam abolir a tutela da moralidade pela lei penal7, a qual sofrera significativa expansão durante o regime nazista.

Como expõe Jürgen Louis, a doutrina penal passou a entender que o Direito Penal sexual deveria limitar-se à penalização de condutas graves e socialmente danosas, respeitando a separação entre Direito e moral8.

Lançado pelos reformistas em meio às transformações culturais pelas quais passavam as sociedades ocidentais, a repercussão do Projeto foi de tal forma positiva que, já em 1969, entrou em vigor a 1ª Lei de Reforma Penal e, em 1973, a 4ª Lei de Reforma Penal, ambas descriminalizando condutas relacionadas ao comportamento sexual de adultos, tais como a sodomia, o homossexualismo, o adultério ou a difusão da pornografia.

Consolidando o projeto de extirpar do Código Penal toda sorte de classificação e criminalização dos comportamentos sexuais de acordo com um referencial imposto como correto e moral, a reforma de 1973 substituiu o título da seção de “crimes contra a

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Como observa Tatjana Hörnle, “The general tendency of the early reform movement can be described coherently by the word “liberalization”. Many provisions that reflected traditional morals were abolished because the offenses described were not harmful to a person”. HÖRNLE, Tatjana. Penal law and sexuality: recent reforms in german criminal law. Buffalo Criminal Law Review nº 3, 2000, p. 639.

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LOUIS, Jürgen. Delitos contra la libertad sexual. Traducción del prof. Dr. Héctor Hernández Basualto.

moralidade” por “crimes contra a liberdade sexual”, adequando o texto à nova perspectiva que se alcançou acerca do bem jurídico tutelado nos crimes sexuais9.

Todavia, a partir da década de 1990, uma nova onda de reformas teve efeito, desta feita imprimindo uma tendência oposta à descriminalização. Depois de modificações pontuais em 1994 e 1997, uma grande revisão do Código Penal alemão ocorreu com a 6ª Lei de Reforma do Direito Penal, de 1998, definida como a “Lei de Luta contra Delitos Sexuais e outros fatos puníveis perigosos”.

Nessa década, verificou-se uma franca expansão dos tipos penais, acompanhada de sensível recrudescimento das penas.

Como avalia Tatjana Hörnle, diferentemente do que ocorreu com o movimento de reforma da década de 1960, é difícil identificar uma clara conexão entre eventuais mudanças nas concepções morais e as alterações implementadas na legislação penal a partir dessa segunda onda reformista. Na opinião da autora, os fatores sociais que teriam levado a essas mais recentes alterações são menos óbvios do que aqueles que se apresentavam no contexto da década de 196010.

Há que se destacar que o movimento feminista muito contribuiu para este processo11. Com efeito, as alterações que se deram no Direito Penal refletiram a incorporação do paradigma do gênero a esse ramo do Direito, circunstância que se impôs como necessária à efetivação do princípio da igualdade entre os sexos, muito embora não se tenha logrado contribuir para um direito menos sexista12.

Nesse sentido, merecem ser destacadas as novas abordagens dos crimes de estupro e agressão sexual. A partir de 1997, o § 177 do Código Penal alemão foi reformulado, passando-se a considerar puníveis não apenas as condutas de estupro e agressão sexual praticadas com força e ameaça, mas também aquelas em que o agente se beneficia da

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“Finalmente, la Sección 13º recibió una redacción fundamentalmente nueva a través de la Cuarta Ley de Reforma del Derecho Penal, de 23 de noviembre de 1973 (BGBl. I 1973, 1725 y ss). Ya con la elección del Nuevo epígrafe de la sección – ‘Delitos contra la libertad sexual’ –, el legislador quiso dejar en claro que el derecho penal sexual no estaría más al servicio de la protección de un determinado orden sexual. Asimismo, se debía expresar que en lo sucesivo los delitos sexuales procurarían la protección de bienes jurídicos del individuo y no del Estado o de la comunidad”. LOUIS, Jürgen. Op. cit., p. 170.

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HÖRNLE, Tatjana. Op. cit., p. 642. 11

“After several futile attempts, the feminist critique finally gained influence in parliament and paved the way for a new definition of the conduct constituting sexual abuse and rape. The more stringent laws passed in 1998 were influenced by a markedly increased public interest in, and awareness of, sex offenses, especially offenses with child victims”. HÖRNLE, Tatjana. Op. cit., p. 642.

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Nesse sentido, Renato de Mello Jorge Silveira observa que “esta nova onda reformista acaba, por muitos motivos, a se mostrar como uma espécie de contra-reforma, especialmente no que toca à superação de preceitos sexistas”. SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Crimes sexuais... Op. cit., p. 50.

posição vulnerável e indefesa na qual se encontre a vítima, incapaz ou impossibilitada de oferecer qualquer resistência13.

Além disso, a Reforma de 1997 também igualou as figuras do §177 e §178 do Código Penal alemão, impondo a mesma punição quer se trate de penetração oral, anal ou vaginal, assumindo, assim, que todas podem acarretar experiências igualmente degradantes às vítimas.

Dessa inovação também decorre a possibilidade de idêntica punição do estupro homossexual masculino, eliminando a diferença de tratamento que recebia o agressor quando a vítima se tratasse de um homem ou uma mulher, já que neste caso, a conduta era antes considerada passível de maior punição.

A Reforma de 1998, por sua vez, alterou as hipóteses de modalidades agravadas do estupro e da agressão sexual, exasperando as penas quando o agente se valer de arma ou outros instrumentos para submeter a vítima, causando-lhe danos à integridade física e, também, quando de sua conduta decorrer a morte da vítima.

A 6ª Lei de Reforma do Código Penal também alterou o dispositivo que tratava do crime de maus tratos, antes previsto no § 223 b e que passou para o § 225, integrando três condutas distintas: torturar, maltratar brutalmente e lesionar a saúde da vítima por incúria malévola.

Conforme expõe Catarina Sá Gomes, a vítima do crime de maus tratos será o menor de 18 anos ou a pessoa que não possa se defender por fragilidade ou doença, e que esteja sujeita ao governo da casa (Hausstand)14, noção que se depreende da avaliação do caso concreto, quando se poderá concluir quem exerce o poder de fato na família.

Apesar de a autora mencionar que “o crime de maus tratos conjugais está consagrado no § 225 do Código Penal alemão”15, não nos parece, contudo, que nesse tipo penal esteja prevista a tutela específica da relação entre cônjuges, na hipótese de nenhum deles configurar pessoa indefesa nos estritos termos mencionados pelo dispositivo (pessoa que não possa se defender por fragilidade ou doença).

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Tatjana Hörnle não acredita que a mesma interpretação vá ser extendida pelos Tribunais alemães aos casos em que a vítima se encontre submetida ao agressor em razão de pressões sociais, como aquelas que se verificam nas relações de emprego. Nesse sentido, afirma que “most commentators reject the notion of social pressure as irrelevant and reduce the definition of “powerless position” to physical circumstances that limit the victim´s ability to run away or to fight the offender”. HÖRNLE, Tatjana. Op. cit., p. 647.

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GOMES, Catarina Sá. O crime de maus tratos físicos e psíquicos infligidos ao cônjuge ou ao convivente

em condições análogas às dos cônjuges. Lisboa: Associação Acadêmica da Faculdade de Direito de Lisboa,

2002, p. 38. 15

A seguir serão expostas as alterações legislativas havidas no Direito Penal, a partir do último quartel do século XX, em Espanha e Portugal, países com notória influência no ordenamento jurídico pátrio.

No documento Feminismo e direito penal (páginas 96-99)