• Nenhum resultado encontrado

ESTÁGIO DA DIFERENÇA: FEMINISMO RADICAL E FEMINISMO

No documento Feminismo e direito penal (páginas 39-43)

CULTURAL

A Teoria Feminista do Direito alcançou um novo estágio na década de 1980. Apesar do sucesso do movimento das mulheres na década anterior, coroado pela incorporação do princípio da igualdade entre homens e mulheres aos estatutos legais, as teóricas feministas continuaram questionando a insuficiência dessas conquistas para a efetiva igualdade entre os gêneros.

As feministas desta nova corrente alegavam que, partindo homens e mulheres de patamares diversos, o igual tratamento concedido pela lei nunca poderia colocá-los em igualdade de condições.

Passaram, então, a cobrar mudanças na legislação a fim de garantir às mulheres a satisfação de suas necessidades particulares, de forma que as leis não mais deveriam ser fixadas em termos neutros, ou considerar suas necessidades semelhantes às dos homens, como se eles fossem o único parâmetro a ser levado em consideração pelo legislador.

De fato, as feministas constataram que em muitas situações a aplicação do princípio da igualdade formal não equacionava a desvantagem da mulher em relação ao homem.

Essa mudança de perspectiva possibilitou-lhes uma nova e mais profunda abordagem de questões como gravidez, estupro, assédio sexual, violência doméstica e

12 Segundo Chamallas, “Liberal feminists have sometimes been called “assimilationists” because their arguments tend not to challenge the standards, rules, or structures themselves, but focus instead on equal access within their framework. More so than other feminist orientations, liberal feminism can be translated into legal reform, generally requiring only incremental changes and expansion of current structures to make room for women”. CHAMALLAS, Martha. Op. cit., p. 17.

pornografia, temas que tinham sido deixados em um plano secundário pelas feministas liberais, em favor daqueles ligados ao acesso igualitário ao poder econômico13.

Como será visto adiante, nesse mesmo momento histórico, o Direito Penal passava igualmente por uma transformação que determinou novos rumos para a criminalização de condutas relevantes às relações de gênero.

Com efeito, iniciava-se o processo de repúdio e abandono dos conteúdos morais que até então sustentavam a repressão penal, que era considerada pelas correntes tradicionais do Direito Penal uma forma adequada de resguardar a consciência moral coletiva e o sentimento de pudor social. As novas ideias transformadoras clamavam por um Direito Penal desatrelado da moral, em prol do reconhecimento de bens jurídicos cuja tutela fosse relevante para a totalidade da sociedade pluralista que então se afirmava14.

Além da ampliação de temas, a nova perspectiva abriu caminho para que as feministas dirigissem suas investigações a múltiplos aspectos da diferença entre homens e mulheres, fato que respondeu pelo surgimento de mais de uma escola dentro dessa mesma corrente que predominou durante a década de 1980.

As feministas radicais, a quem se atribui o desenvolvimento da teoria da dominância, empenharam-se em criticar o feminismo liberal a partir do questionamento de conceitos como privacidade, objetividade e direitos individuais, os quais longe de garantir os interesses das mulheres, apenas legitimavam o status quo, mantendo-as subordinadas à dominação masculina.

13

Nesse sentido, Chamallas, “Liberal feminists may have shied away from analyzing sexuality and sexual abuse because it was an area in which women were thought to be different from men. The conventional wisdom was that only men were capable of rape and that most men tended to be more aggressive than women in initiating and pursuing sexual relationships. The difference in men´s and women´s sexual behavior was often traced to biology, reflecting a “biology is destiny” philosophy that liberal feminists feared would surface again to justify discriminatory legal treatment of women”. CHAMALLAS, Martha. Op. cit., p. 45. 14

Sobre a mudança de paradigmas vivenciada pelo Direito Penal explica Silveira: “Na sociedade moderna, advirta-se, é visível a característica básica de uma multiplicidade de idéias, interesses e valores, o que vem a determinar que os bens jurídicos acabem por assumir formas diversas, refletindo direitos subjetivos de cada um. Isso permite aceitar que pensamentos vários se encontrem em harmonia, bem como morais individuais diferentes. Nada pode ser tido apriorística e absolutamente certo ou errado, virtuoso ou pecaminoso. Não é de se dizer o que esta sociedade aceita e o que se encontre em perdição. O quadro perceptivo no que toca a ela se alterou sobremaneira no último século, o que possibilita um repensar de seu tratamento penal. A visão alterada do sexo implica, necessariamente, em um novel tratamento. Os códigos penais tradicionais mencionam uma série de disposições que dão vazão a múltiplias interpretações, incorrendo até em situações de cunho eminentemente imoral, sem nenhum possível prejuízo à sociedade. Em não havendo malefício a esta, não há de se aceitar uma inserção do Direito Penal”. SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Op. cit., p. 174.

A principal expoente dessa escola é Catharine MacKinnon, para quem o uso e o abuso sexual da mulher representam o principal mecanismo pelo qual se perpetua a subordinação feminina15.

MacKinnon rejeita a visão da sexualidade como uma diferença biológica entre homens e mulheres16. Para ela, a sexualidade é socialmente construída, ou seja, estabelecida pela ideologia e pelas práticas sociais predominantes na sociedade. Seguindo a afirmação de Simone de Beauvoir, para quem “não se nasce mulher, torna-se mulher”, MacKinnon afirma que em nossa sociedade, dominada pelos homens, com a ajuda de leis igualmente dominadas pelos homens, a mulher foi construída como objeto sexual voltado para o uso masculino17.

Por este ponto de vista, o que se passa com a sexualidade feminina é produto da dominação masculina e não uma autêntica expressão do desejo sexual da mulher.

Nesse contexto, MacKinnon liderou uma ferrenha campanha contra a pornografia, sugerindo existirem ligações entre a mulher reificada pelas fotografias de conteúdo pornográfico e a prevalência da violência e discriminação sexuais na sociedade.

Muitas feministas, entretanto, não se convenceram a respeito dessa campanha, pois temiam que a sua censura da pornografia pudesse trazer resultados ainda mais prejudiciais

15

“Feminism on its own terms has begun to give voice to and describe the collective condition of women as such, so largely composed as it is of all women’s particularities. It has begun to uncover the laws of motion of a system that keeps women in a condition of gender in the sexuality of imposed inferiority. It has located the dynamic of the social definition of gender in the sexuality of dominance and subordination, the sexuality of inequality: sex as inequality and inequality as sex. As sexual inequality is gendered as man and women, gender inequality is sexualized as dominance and subordination. The social power of men over women extends through laws that purport to protect women as part of the community, like the rape law; laws that ignore women’s survival stake in issue, like the obscenity law, or obscure it, like the abortion law; and laws that announce their intent to remedy that inequality but do not, like the sex equality law. This law derives its authority from reproducing women’s social inequality to men in legal inequality, in a seamless web of life and law.” MACKINNON, Catharine A.. Toward feminist jurisprudence. In: SMITH, Patricia. Feminist

jurisprudence. NewYork: Oxford University Press, 1993, p. 613.

16

Cain resume a posição dessa expoente do feminismo radical, “Catherine MacKinnon, another Stage Two legal theorist, also has argued that men and women are different, but the difference is that men dominate and women are subordinate. Which came first, dominance or difference, is an unimportant question, in her view. The important thing is to end the dominance. Legal arguments that pose the issue as one of difference between the sexes are not likely to end the dominance. MacKinnon calls for a paradigm shift, away from differences in biology, differences in experience, differences in essence, to the only difference that really matters: the difference in power. Her “inequality” approach to sex discrimination recognizes the imbalance in power between men and women”. CAIN, Patricia. Feminist Jurisprudence: grounding the theories. In: BARTLETT, Katharine T.; KENNEDY, Rosanne (Coord.). Feminist legal theory: readings in law and

gender. Boulder: Westview Press, 1991, p. 265.

17

“On the level of the state, legal guarantees of equality in liberal regimes provide an opening. Sex inequality is the true name for women’s social condition. It is also, in words anyway, illegal sometimes. In some liberal states, the belief that women already essentially have sex equality extends to the level of law. From a perspective that understands that women do not have sex equality, this law means that once equality is meaningfully defined, the law cannot be applied without changing society. To make sex equality meaningful in law requires identifying the real issues, and establishing that sex inequality, once established matters”. MACKINNON, Catharine A.. Op. cit., p. 613.

às mulheres do que a desigualdade já reinante. Em contrapartida, acadêmicas, artistas, escritoras e ativistas formaram um grupo contra a censura da pornografia (Feminist Anti-

Censorship Task Force - FACT), opondo-se às feministas radicais. O embate alcançou a

Corte de Indianápolis, que acabou se posicionando contra a campanha anti-pornografia de MacKinnon.

Seguindo a corrente da diferença entre os sexos, outras juristas fundaram uma segunda escola, que ficou conhecida como feminismo cultural. Essas teóricas também reconhecem as diferenças entre homens e mulheres, mas se posicionam de forma a enaltecê-las, glorificando a forma com que as mulheres tendem a lidar com o mundo, com os conflitos e como costumam construir sua identidade18.

Enquanto o feminismo radical destaca o aspecto de objeto sexual da mulher, o feminismo cultural elege o seu aspecto maternal. O traço comum entre ambos é o reconhecimento da diferença existente entre homens e mulheres, em oposição ao feminismo liberal, que intentava igualá-los em praticamente todas as medidas.

O feminismo cultural propunha uma nova e positiva interpretação da diferença de gênero. Com efeito, a mulher efetivamente difere do homem, mas essa diferença não significa inferioridade. Muito ao contrário, algumas feministas alegavam que a mulher, com todos os seus atributos maternais, seria superior ao homem, com suas competitividade e agressividade exacerbadas.

Essas teóricas do feminismo cultural discordavam da corrente radical quanto ao propósito a ser buscado pelo movimento feminista. Para elas, perseguir a inclusão das mulheres nas posições sociais normalmente ocupadas pelos homens é uma meta equivocada, na medida em que adota e tenta aplicar às mulheres padrões masculinos de comportamento. Como esclarece Nancy Fraser, o feminismo cultural deveria se opor à subvalorização da mulher através do reconhecimento da diferença de gênero e da revalorização da feminilidade19.

Um exemplo disso seria a incorporação ao Direito de princípios e valores normalmente associados às mulheres, tais como a capacidade de ouvir o outro, dialogar, conciliar interesses e pacificar conflitos, suavizando, assim, a tendência de se buscar na

18

Sobre o feminismo cultural esclarece Chamallas, “The starting point for this branch of difference feminism was to articulate the ways women often tended to approach problems, view the world, and construct their identity. Feminist debated how women´s “different voice” – with its concern for human relationships and for the positive values of caring, nurturing, empathy, and connection – could find greater expression in law. In contrast to liberal feminism´s de-emphasis of the mothering role, cultural feminists sought ways to support maternal and other traditional activities associated with women”. CHAMALLAS, Martha. Op. cit., p. 19. 19

justiça o resultado tradicional, ou seja, aquele que opõe perdedor de um lado e vencedor do outro.

Todavia, antes mesmo que essa corrente atingisse grande repercussão, as demais teóricas feministas esforçaram-se por demonstrar o perigo que ela gerava ao trazer à tona a imagem da mulher sensível, emocional e protetora. As teóricas críticas do feminismo cultural afirmavam que suas seguidoras estavam tentando reabilitar a imagem da mulher feminina e domesticável, prática que poderia acabar por impor novas barreiras à inclusão da mulher nas esferas públicas e econômicas da sociedade.

No documento Feminismo e direito penal (páginas 39-43)