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PATERNALISMO LEGAL

No documento Feminismo e direito penal (páginas 83-85)

A noção de paternalismo está ligada à imagem do pai, que protege a criança contra riscos causados por ela ou por terceiros, na medida em que a criança não consegue fazê-lo por si.

O Estado pode atuar imbuído dessa determinação paternalista e, dependendo do destinatário que pretende proteger, sua atuação adquirirá uma conotação censurável ou não.

Assim, percebe-se que o paternalismo do Estado voltado a proteger pessoas efetivamente vulneráveis no contexto das relações sociais é normalmente admitido sem maiores contestações, mas pode ser desvirtuado quando o Estado resolve limitar a autodeterminação de indivíduos adultos e plenamente capazes, desconsiderando as suas escolhas íntimas.

Por isso, Joel Feinberg divide em duas classes a noção de paternalismo. Na primeira, encontra-se o “paternalismo presumivelmente censurável”, que trata os adultos como se crianças fossem, ou as crianças mais velhas, como se fossem mais novas do que realmente são, forçando-os a agir ou deixar de agir em determinado contexto considerado perigoso, mesmo contra a vontade da pessoa. Na segunda classe estaria o “paternalismo presumivelmente não censurável”, voltado a proteger os indivíduos desamparados e vulneráveis contra danos que possam ser causados por terceiros, nas hipóteses em que as pessoas protegidas não tenham consentido com a criação do risco73.

Segundo Feinberg, o “paternalismo presumivelmente não censurável” decorre da doutrina do parens patriae, formulada pelo Direito Anglo-Americano, e que atribui ao Estado o dever de proteger os menores, os vulneráveis e os legalmente incapazes, não

73

FEINBERG, Joel. Harm to self: the moral limits of the criminal law. Oxford: Oxford University Press, 1986, v. 3, p. 5.

apenas de danos que possam ser causados por terceiros, como também daqueles provocados por eles próprios74.

Quanto ao “paternalismo presumivelmente censurável”, Feinberg ainda o classifica em dois tipos: o “paternalismo benevolente”, cujo fundamento é o bem da própria pessoa que tem sua autonomia limitada, e o “paternalismo não benevolente”, que seria a espécie mais reprovável de paternalismo, na medida em que é aplicado não em benefício daquele que sofre a coação estatal, mas no interesse arbitrário de terceiros ou mesmo do Estado.

No âmbito do presente estudo, maior ênfase deve ser dada à dimensão do paternalismo que fundamenta a criação de leis penais, impondo de forma coercitiva a obrigação de fazer ou deixar de fazer algo que implique risco ou dano, os quais foram consentidos de forma livre e consciente por indivíduo capaz de compreender a dimensão e o resultado de seu comportamento ou de terceiros.

Trata-se, segundo a classificação de Feinberg, do “paternalismo presumivelmente censurável benevolente”. Dentre as leis penais que decorrem dessa modalidade de paternalismo é importante estabelecer uma diferenciação entre aquelas leis paternalistas voltadas a limitar diretamente a autonomia do indivíduo (paternalismo direto), e aquelas outras que restringem a liberdade de um terceiro, cuja conduta causaria um risco consentido pelo sujeito que o Estado pretende proteger (paternalismo indireto)75.

O paternalismo direto reflete-se, por exemplo, no artigo 16 da Lei Maria da Penha, que, nas ações públicas condicionadas à representação, proíbe a mulher de renunciar à representação depois do recebimento da denúncia.

Quanto à Lei nº 11.340/2006, Renato de Mello Jorge Silveira destaca o retrocesso que pode significar o tratamento discriminatório promovido pela lei em favor da mulher, na medida em que “mais do que ação afirmativa, isso reflete, mesmo, grau de velha questão acerca do chamado paternalismo legal e do moralismo”76.

74

“...the state invokes the doctrine of parens patriae to protect helpless persons form harm at he hands of

other persons and from other external dangers. Children, for example, sometimes need protection from their own parents, and the state as kind of “parent of last resort” is ultimately the sole source of such protection.

Similarly, mentally disordered adults who are so deranged they are unable to seek treatment for themselves are entitled by the doctrine of parens patriae to psychiatric care under the auspices of the state, and other classes of helpless adults, those in their dotage and the physically handicapped poor, are also entitled to care and protection”. FEINBERG, Joel. Op. cit., p. 6.

75

Exemplos clássicos do paternalismo direto citados por Feinberg são as leis que proíbem o suicídio, a automutilação ou o uso de drogas. As leis que proíbem a eutanásia, o duelo ou a venda de drogas exemplificam o paternalismo indireto. FEINBERG, Joel. Op. cit., p. 9.

76

SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Tipificação criminal da violência de gênero: paternalismo legal ou

O paternalismo indireto, por sua vez, é marcante nos crimes previstos no Capítulo V, do Código Penal, que trata do lenocínio e do tráfico de pessoa para o fim de prostituição ou outra forma de exploração sexual. Como será visto em momento oportuno, apesar de a prostituição não ser proibida, o legislador restringe a autonomia daquele que se prostitui por meio da incriminação de terceiros.

Nesse sentindo, Heloisa Estellita, comentando o crime de rufianismo, menciona que “muito embora se possa identificar seu tom moralista já de saída, há também um fundamento paternalista na medida em que se busca impedir que a prostituta possa ter um “gerente”, ou de contratar alguém para lhe selecionar ou arrumar clientes que sejam confiáveis, por exemplo. A idéia implícita é a de que como a prostituição é ruim (fundamento moralista), proibir alguém de ter lucro com ela é uma forma de impedir que alguém se torne uma prostituta, o que é melhor para esta pessoa (paternalismo indireto)”77.

Conforme apontam esses dois autores, quando o direito penal trata da mulher, não é incomum que as noções de paternalismo e moralismo se cruzem. O paternalismo trata a mulher como criança, o moralismo rotula a mulher segundo estereótipos machistas. Como se pretende demonstrar ao final, esse cruzamento pode ser muito prejudicial à mulher.

No documento Feminismo e direito penal (páginas 83-85)