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CONVENÇÃO SOBRE A ELIMINAÇÃO DE TODAS AS FORMAS DE

No documento Feminismo e direito penal (páginas 63-69)

DISCRIMINAÇÃO CONTRA A MULHER

A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 já refletia o esforço de reconstrução de um novo paradigma ético para o Direito, centrado na dignidade humana. Esse instrumento fundamental para a construção do Direito Internacional dos Direitos Humanos traçou uma nova ordem pública mundial, ao consagrar valores básicos universais.

Como observa Flávia Piovesan, “desde seu preâmbulo, é afirmada a dignidade inerente a toda pessoa humana, titular de direitos iguais e inalienáveis. Vale dizer, para a Declaração Universal a condição de pessoa é requisito único e exclusivo para a titularidade de direitos”30.

Mas foi em 1979, com a aprovação pelas Nações Unidas da Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), que a busca pela igualdade material conquistou território.

O artigo 2º da CEDAW declara que os Estados-partes “concordam em seguir, por todos os meios apropriados e sem dilações, uma política destinada a eliminar a discriminação contra a mulher” comprometendo-se a adotar as seguintes medidas:

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RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto. Op. cit., p. 247. 30

a) consagrar, se ainda não o tiverem feito, em suas Constituições nacionais ou em outra legislação apropriada, o princípio da igualdade do homem e da mulher e assegurar por lei outros meios apropriados à realização prática desse princípio;

b) adotar as medidas adequadas, legislativas e de outro caráter, com as sanções cabíveis e que proíbam toda discriminação contra a mulher; c) estabelecer a proteção jurídica dos direitos da mulher em uma base de igualdade com os do homem e garantir, por meio dos tribunais nacionais competentes e de outras instituições públicas, a proteção efetiva da mulher contra todo ato de discriminação;

d) abster-se de incorrer em todo ato ou prática de discriminação contra a mulher e zelar para que as autoridades e instituições públicas atuem em conformidade com esta obrigação;

e) tomar as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher praticada por qualquer pessoa, organização ou empresa;

f)adotar as medidas adequadas, inclusive de caráter legislativo, para modificar ou derrogar leis, regulamentos, usos e práticas que constituam discriminação contra a mulher;

g) derrogar todas as disposições penais nacionais que constituam discriminação contra a mulher.

Como se observa, a CEDAW não tratou apenas de declarar a igualdade entre homens e mulheres, mas de prever específicas medidas que sem delonga deveriam ser efetivamente adotadas para que se alcançasse a igualdade material, e não apenas formal, entre homens e mulheres.

Em seu artigo 4º, a CEDAW previu, inclusive, que “a adoção pelos Estados-partes de medidas especiais de caráter temporário destinadas a acelerar a igualdade de fato entre o homem e a mulher não se considerará discriminação na forma definida nesta Convenção”.

Ou seja, a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Contra a Mulher estabelece o compromisso selado pelos Estados-partes da dupla obrigação de eliminar a discriminação e de assegurar a igualdade entre homens e mulheres.

Nesse sentido, analisa Flávia Piovesan que “a Convenção objetiva não só erradicar a discriminação contra a mulher e suas causas, como também estimular estratégias de promoção da igualdade. Combina a proibição de discriminação com políticas

compensatórias que acelerem a igualdade enquanto processo. Alia à vertente repressivo- punitiva a vertente positivo-promocional”31.

Vera Lúcia Carapeto Raposo, por sua vez, ressalta que no entendimento das Nações Unidas, a norma do artigo 4º integra-se automaticamente na ordem jurídica interna dos Estados-partes, servindo como fundamento para ações afirmativas aparentemente violadoras do princípio da igualdade entre os cidadãos32.

Mas não foi só. O conceito de discriminação adotado pela CEDAW importou na adoção de uma nova perspectiva acerca da questão do gênero.

Estabelece o artigo 1º da Convenção que “a expressão ‘discriminação contra mulher’ significará toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo”.

Para Alda Facio Montejo essa definição é triplamente importante:

Primeiro, porque ela determina que uma lei será considerada discriminatória se tiver por resultado a discriminação da mulher ainda que não tenha sido promulgada com o propósito de discriminá-la, ou seja, ainda que tenha tido a intenção de “proteger” a mulher, ou “elevá-la” à condição do homem. Conclui a autora que uma lei que trate homens e mulheres igualmente, mas da qual decorram resultados que concretamente prejudicam ou anulam o gozo ou o exercício pela mulher de seus direitos humanos será considerada uma lei discriminatória33.

Segundo, porque ao ratificar a Convenção, o país deve passar a adotar legalmente o conceito de discriminação contra a mulher, tal qual definido pela CEDAW. Dessa forma, não são aceitáveis aquelas definições mais restritivas que entendem só haver discriminação contra a mulher quando estiver expressamente prevista no texto da lei.

E terceiro, o conceito introduzido pela CEDAW é importante porque considera que haverá discriminação contra a mulher em toda restrição baseada no sexo que importe na negação, gozo ou exercício dos direitos humanos da mulher, independentemente do âmbito em que se deem tais restrições. Como menciona Montejo, não apenas as restrições sofridas

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PIOVESAN, Flávia. Op. cit., p. 204. 32

RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto. Op. cit., p. 63. 33

MONTEJO, Alda Facio. Cuando el género suena cambios trae: una metodología para el análisis de

pela mulher na esfera pública, mas também aquelas que ocorrem no campo cultural e doméstico passaram a ser consideradas discriminatórias.34.

A autora demonstra, em seguida, que a definição de “discriminação contra a mulher” traçada pela CEDAW tem o poder de desarticular o sistema patriarcal, em qualquer âmbito que se intente essa batalha, pois ela desafia seu sistema legal e a sua forma tradicional de entender a questão da igualdade entre os sexos, na medida em que propõe outra concepção do princípio de igualdade perante a lei.

Como menciona Montejo, até o momento de promulgação da CEDAW, a igualdade entre homens e mulheres reduzia-se à crença de que, ao se outorgar às mulheres os mesmos direitos de que gozam os homens e, ao garantir-lhes uma proteção especial nas situações ligadas à sua função reprodutora, estar-se-ia eliminando a discriminação sexual. Ou seja, em tudo que não diga respeito ao papel de reprodução da espécie, deve haver uma equivalência entre homens e mulheres. Por outro lado, sempre que a situação envolver a função reprodutora deve-se reconhecer a diferença da mulher em relação ao homem.

Nesse sentido, acrescenta a autora que esta maneira de conceber a igualdade garante que sejam concedidos plenos direitos às mulheres apenas e na medida em que sejam semelhantes aos homens, ao passo que serão tratadas desigualmente em todas as dimensões em que deles se diferenciem. Ou seja, o mandamento legal de tratamento igualitário perante a lei tem sido interpretado no sentido de tratar igualmente os iguais, e desigualmente os desiguais. Assim, conclui Montejo, no que toca aos direitos civis, políticos, etc., as mulheres recebem o mesmo tratamento previsto aos homens. Já no que diz respeito aos direitos econômicos, trabalhistas, e de família as mulheres recebem um tratamento desigual por serem biologicamente diferentes do modelo de ser humano, que é o homem. Esses dois modos de agir da lei são justificados pelo princípio de tratar igualmente os iguais, e diferentemente os desiguais35.

O problema de vincular a aplicação do princípio jurídico da igualdade às semelhanças ou diferenças existentes entre os indivíduos é que o sexo é precisamente isto: o que diferencia os homens das mulheres, e as mulheres dos homens. Os dois pontos de referência são igualmente relevantes, de forma que sexo não é apenas o que distingue a mulher com relação ao homem, mas, sim, o que os distingue reciprocamente. Ao desconsiderar isso, a teoria jurídica criou, na opinião de Montejo, uma verdadeira impossibilidade de igualdade entre homens e mulheres, já que o conceito de sexo

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MONTEJO, Alda Facio. Op. Cit., p. 18. 35

pressupõe uma diferença mútua que nunca poderá ser superada, e que será sempre fundamento para o tratamento discriminatório36.

Como o patriarcado definiu os homens como paradigma do ser humano, as leis sempre os consideraram como modelo, de forma que elas serão consideradas neutras, genéricas ou iguais quando tratarem de situações em que o ser feminino corresponda ao ser masculino. Mas quando, ao contrário, não houver essa correspondência, proclamar-se-ão leis “especiais”, para acolher as diferenças femininas. Assim, permanecem os homens como paradigma, sejam as leis “neutras” ou de “proteção especial”.

O conceito de discriminação contra a mulher trazido pela CEDAW, todavia, reformula essa noção, afirmando que a igualdade jurídica entre os homens e as mulheres não se reduz a um problema de semelhanças ou diferenças entre os sexos. A Convenção propõe que mulheres e homens são igualmente diferentes e que o tratamento igualitário não está em tratar a mulher como o homem, mas em reconhecer que será discriminatório todo tratamento que tenha por resultado a desigualdade37.

A CEDAW foi ratificada por 186 Estados-partes38. Apesar do alto número de adesões, observa Flávia Piovesan que a Convenção “enfrenta o paradoxo de ser o instrumento que recebeu o maior número de reservas formulada pelos Estados, dentre os tratados internacionais de direitos humanos”39.

A maior parte das reservas impõe óbices culturais, religiosos e legais à aplicação do artigo 16 da Convenção, que trata da igualdade entre homens e mulheres no âmbito das relações familiares40.

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MONTEJO, Alda Facio. Op. cit., p. 19. 37

Conclui Montejo: “Vemos así que esta definición de la discriminación hace evidente que la aspiración debe ser la igualdad de los sexos en el goce de los derechos humanos que cada cual necesite, no el que a cada sexo se le dé un tratamiento exactamente igual. Esto presupone que los hombres y las mujeres pueden tener, y de hecho así es, distintas necesidades, pero no presupone que debido a esas diferencias, las masculinas deban ser identificadas como las necesidades de los seres humanos y las de las mujeres como las necesidades específicas de las mujeres. Es decir, que los hombres son tan diferentes y tan semejantes a nosotras las mujeres, como nosotras somos diferentes y semejantes a ellos. Ninguno de los sexos debería ser el parámetro o paradigma de lo humano porque ambos, mujeres y hombres, somos igualmente humanos”. MONTEJO, Alda Facio. Op. cit., p. 20.

38

Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination against Women. Disponível em: <http://treaties.un.org/Pages/ViewDetails.aspx?src=TREATY&mtdsg_no=IV-8&chapter=4&lang=en#8>. Último acesso em: 14/fev/2011.

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PIOVESAN, Flávia. Op. cit., p. 202. 40

Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher: Artigo 16 – 1. Os Estados-partes adotarão todas as medidas adequadas para eliminar a discriminação contra a mulher em todos os assuntos relativos ao casamento e às relações familiares e, em particular, com base na igualdade entre homens e mulheres, assegurarão:

a)o mesmo direito de contrair matrimônio;

b)o mesmo direito de escolher livremente o cônjuge e de contrair matrimônio somente com o livre e pleno consentimento;

Como menciona Piovesan, “isso reforça o quanto a implementação dos direitos humanos das mulheres está condicionada à dicotomia entre os espaços público e privado, que, em muitas sociedades, confina a mulher ao espaço exclusivamente doméstico da casa e da família. Vale dizer, ainda que se constate, crescentemente, a democratização do espaço público, com a participação ativa de mulheres nas mais diversas arenas sociais, resta o desafio de democratização do espaço privado – cabendo ponderar que tal democratização é fundamental para a própria democratização do espaço público”41.

O Brasil ratificou a CEDAW em 1984, ocasião em que formulou reservas ao artigo 15, parágrafo 4º, artigo16, parágrafo 1º, alíneas (a), (c), (g) e (h), e artigo 29. As duas primeiras reservas foram justificadas em razão da incompatibilidade entre a Convenção e a legislação brasileira, então pautada na assimetria de direitos entre homens e mulheres. Em 1994 essas reservas foram retiradas, mantendo-se a do artigo 29, o qual trata das formas de resolução de controvérsias que possam surgir, entre dois ou mais Estados-partes, na interpretação ou aplicação da Convenção.

Em 2002, o Brasil tomou parte do Protocolo Adicional à Convenção, por meio do qual foi estabelecida a competência do Comitê sobre a Eliminação da Discriminação Contra a Mulher para receber e considerar as comunicações apresentadas por indivíduos ou grupos de indivíduos, que se encontrem sob a jurisdição do Estado-parte e aleguem ser vítimas de violação de quaisquer dos direitos estabelecidos na Convenção por aquele Estado-parte.

c)os mesmos direitos e responsabilidades durante o casamento e por ocasião de sua dissolução;

d)os mesmos direitos e responsabilidades como pais, qualquer que seja seu estado civil, em matérias pertinentes aos filhos. Em todos os casos, os interesses dos filhos serão a consideração primordial;

e)os mesmos direitos de decidir livre e responsavelmente sobre o número de filhos e sobre o intervalo entre os nascimentos e ter acesso à informação, à educação e aos meios que lhes permitam exercer esses direitos; f)os mesmos direitos e responsabilidades com respeito à tutela, curatela, guarda e adoção dos filhos, ou

institutos análogos, quando esses conceitos existirem na legislação nacional. Em todos os casos, os interesses dos filhos serão a consideração primordial;

g)os mesmos direitos pessoais como marido e mulher, inclusive o direitos de escolher sobrenome, profissão e ocupação;

h)os mesmos direitos a ambos os cônjuges em matéria de propriedade, aquisição, gestão, administração, gozo e disposição dos bens, tanto a título gratuito quanto a título oneroso.

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4.4INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS DE COMBATE À VIOLÊNCIA CONTRA

No documento Feminismo e direito penal (páginas 63-69)