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11. DO ESTADO DE NECESSIDADE NO DIREITO COMPARADO

11.4 Família dos direitos socialistas

Sheila Jorge Selim de Sales215 explica o significado ideológico da parte especial dos códigos penais em países socialistas não democráticos:

A análise histórica demonstra que, do ponto de vista cronológico, a parte especial precede a parte geral dos códigos penais. A propósito, basta recordar que as legislações mais antigas limitavam-se a determinar o elenco de fatos proibidos pela lei e a respectiva forma de punição, em regra, o talião. [...] Após o iluminismo a parte geral foi instituída nos códigos penais, como componente integrante de um sistema penal organicamente ordenado e em constante interação, constituído por parte geral e parte especial, propondo-se uma justiça centrada nas garantias individuais, guiada pelo interesse público.

A depender da orientação democrática ou não democrática dos países socialistas, a parte especial dos códigos penais pode desenvolver função garantista ou não ter qualquer importância216:

Assim, à medida que nos encontrarmos diante de Estados democráticos ou não democráticos, modifica-se o comportamento da casuística compreendida na parte especial: esta pode desenvolver função garantista, simplesmente exemplificativa ou, até mesmo, não ter relevo algum. A cada ideologia, pois, corresponde a diverso modo de comportar-se da parte especial dos códigos penais.

Por outro lado, para a averiguação de qualquer aspecto do direito penal socialista torna-se necessário a diferenciação entre as expressões “socialismo penal” e “socialização do direito penal”217:

214 TURNER, Cecil. Kenny’s outlines of criminal law. 18 ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2013. p.

60. 215 SALES, Sheila Jorge Selim de. Escritos de direito penal. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 89.

216 SALES, Sheila Jorge Selim de. Escritos de direito penal. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 105.

217 SALES, Sheila Jorge Selim de. Escritos de direito penal. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 120.

A expressão “socialismo penal” é utilizada para designar o sistema penal nos Estados socialistas, os princípios e os institutos jurídicos construídos sobre a doutrina política do “marxismo-leninismo”. Nesses países, o Estado assume a função de governar a sociedade e sua história, dirigindo a passagem do Estado liberal à sociedade comunista, pensada como única sociedade na qual o ser humano pode encontrar plena realização, livre de classes sociais, do Estado, do direito e da religião. Uma sociedade regida pela solidariedade e pela concórdia, na qual as relações sociais deverão desenvolver-se sempre em harmonia, já que as regras serão espontaneamente obedecidas, ou melhor, respeitadas. [...] A expressão “socialização do direito penal”, ao invés, é utilizada para contrapor-se à função conservadora do direito penal no liberalismo de tipo individualista, colocado como instrumento para a exagerada tutela de valores individuais, bem como à estabilização e rígida conservação dos valores presentes na vida social e política, que tanto serviu à criação das desigualdades econômico-sociais. Nesse sentido, trata-se de expressão própria aos ideais e funções do direito penal nas modernas democracias sociais, enquanto instrumento de proteção (e não de repressão) a bens jurídicos que consintam e assegurem a dignidade e o pleno desenvolvimento de todas as potencialidades do ser humano.

No que diz respeito à construção do direito penal socialista, com a Revolução Russa, em 1917, o novo regime político passou a considerar que a finalidade atribuída ao direito penal liberal era de molde classista, com o objetivo de defender a propriedade privada e os interesses capitalistas, motivo pelo qual logrou substanciais modificações à sua concepção, tendo como premissa básica o fato de que o sistema penal fosse lido como medida de defesa da nova ordem instaurada. Assim, não se atribuía qualquer relevo ao problema filosófico da responsabilidade moral, o crime era fruto da errada distribuição dos meios de produção nos países capitalistas e a liberdade era determinada pelo desenvolvimento material e econômico da própria sociedade.

A concepção do crime passou a ser puramente material, bastando para a aplicação da sanção apenas a perigosidade do fato e do agente218.

No mais, o Projeto de Krylenko, em 1930, representou a primeira produção jurídico-científica de caráter marxista em matéria de direito penal. Dispunha como característica o

218 SALES, Sheila Jorge Selim de. Escritos de direito penal. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 80.

estabelecimento de um novo padrão para o direito penal em que se registrou um rompimento com o direito penal liberal e com os seus fundamentos garantistas.

11.4.1 Rússia

O Código Penal da Rússia elenca, em seu art. 39, inciso I as circunstâncias que excluem a criminalidade da conduta e, dentre elas, a extrema necessidade. No que diz respeito à extrema necessidade, o dispositivo legal estabelece que a violação de interesses ou direitos legalmente tutelados em um estado de extrema necessidade, com o objetivo de extirpar um perigo iminente por uma pessoa, para si ou para outrem, ou até mesmo para a sociedade ou Estado, não pode ser considerado crime, desde que o perigo não possa ser removido de outra forma e que não haja excessos219:

Art. 39. Extrema necessidade. 1. Prejudicar interesses garantidos por lei em um estado de extrema necessidade, isto é, a fim de remover um perigo direto para a pessoa ou seus direitos, ou para os direitos de outras pessoas, ou para os direitos legais da sociedade ou do Estado, não será considerado um crime se este perigo não puder ter sido removido de outra forma e se não exceder o limite da extrema necessidade. (tradução livre)

Constata-se, à semelhança da legislação chinesa, a preocupação do legislador em garantir que condutas tendentes a proteger a sociedade ou o Estado sejam abarcadas pela extrema necessidade. Ainda, o art. 39, inciso II regulamenta a questão do excesso na extrema necessidade, declarando que a conduta que não se equiparar à natureza e ao grau do perigo, nem as circunstâncias em que o perigo foi removido, será considerada excessiva, e este excesso resultará em responsabilidade apenas nas situações em que existir vontade e consciência do agente na provocação do perigo220:

219 Disponível em: <https://cis-legislation.com/document.fwx?rgn=1747>. Acesso em: 18 de junho de 2022.

“Article 39. Extreme Necessity. 1. The harming of legally protected interests in a state of extreme necessity, that is, for the purpose of removing a direct danger to a person or his rights, or to the rights of other persons, to the legally-protected interests of the society or the State, shall not be deemed to be a crime if his danger could not be removed by other means and if there was no exceeding the limits of extreme necessity.”

220 Disponível em: <https://cis-legislation.com/document.fwx?rgn=1747>. Aceso em: 18 de junho de 2022.

“Article 39. Extreme Necessity. The infliction of a harm that obviously does not correspond to the nature and the degree of threatened danger, nor to the circumstances under which the danger was removed, when equal or more considerable harm was caused to said interests than the harm averted, shall be deemed to be excess of extreeding necessity. Such excess shall involve criminal responsibility only in cases of the intended infliction of harm.”

Art. 39. Extrema necessidade. 2. Infligir um dano que claramente não corresponde à natureza e ao grau da ameaça de perigo, nem às circunstâncias sob as quais o perigo foi removido, quando dano igual ou maior for causado a tais interesses do que o dano evitado, será considerado um excesso da extrema necessidade. Tal excesso envolverá responsabilização criminal apenas nos casos em que houver intenção de causar dano. (tradução livre)

Também não há na legislação russa menção à natureza jurídica do estado de necessidade, ou seja, se justificante ou exculpante. Valendo-se do mesmo raciocínio lógico utilizado na legislação nigeriana e madagascarense, pode-se afirmar que apresenta a extrema necessidade a natureza jurídica justificante porquanto seu reconhecimento exclui a própria criminalidade da conduta.