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4. EVOLUÇÃO HISTÓRICA: DO ESTADO DE NECESSIDADE NO DIREITO PENAL

4.2 Ordenações do Reino

significativa eliminação dos resquícios da vingança privada, que ficaram adstritos aos herdeiros dos ofendidos em casos de homicídio e de lesões corporais, sendo, posteriormente, pouco a pouco, extirpados do ordenamento jurídico. Malgrado tais evoluções, prevalecia em todas as hipóteses legislativas a manifestação da vontade do rei102:

A lei era a expressão da vontade do rei, que, desde D. Afonso III, já que não dependia da prévia convocação das cortes para sua posterior promulgação. Ao lado das leis existiam as resoluções régias, que o soberano ditava para atender aos pedidos do povo, nas cortes. Diferenciava das leis apenas formalmente, posto que aquelas passavam pela chancelaria real e estas não estavam sujeitas a qualquer formalidade. [...] Muitas leis importantes foram editadas, muita das quais iriam compor as Ordenações do Reino, e, pois, por essa via, chegaram até nós.

O estado de necessidade atrelou-se nas Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas com traços quase idênticos, isentando-se de pena aquele que praticasse um crime para a defesa de seu corpo ou de sua vida.

4.2.1 Ordenações Afonsinas

Waldemar Martins Ferreira103 escreve sobre as Ordenações Afonsinas:

Dividiram-se em cinco livros: o primeiro com 72 títulos; o segundo com 123;

o terceiro, com 122; o quarto, com 112; e o quinto, com 121. No primeiro, contém os regimentos dos oficiais maiores e subalternos da justiça; no segundo, as matérias relativas à jurisdição, pessoas e bens dos eclesiásticos, dos direitos reais, e sua arrecadação, da jurisdição dos donatários, e modo da tolerância dos judeus e mouros; no terceiro, a ordem judiciária; no quarto, os contratos, sucessões e tutorias; e, no quinto, os delitos e as penas.

No que diz respeito ao Livro V, José Henrique Pierangeli104 ensina que este cuida dos crimes, das penas e do processo penal, naquilo que lhe é próprio, bem como naquilo que diverge

102 PIERANGELI, José Henrique. Códigos penais do Brasil: evolução histórica. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 72

103 FERREIRA, Waldemar Martins. História do direito brasileiro. São Paulo: Freitas Bastos, 1952. v. 2. p. 252.

104 PIERANGELI, José Henrique. Códigos penais do Brasil: evolução histórica. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 52.

do processo civil do momento. Anota, ainda, que em seus regramentos, que apresentam um misto de direito canônico e de direito romano, constata-se uma forte opressão por meio do terror.

Embora não tratasse diretamente do instituto do estado de necessidade, as Ordenações Afonsinas prescreveram, em seu Livro V, Título XXXIII a situação em que fosse necessária a utilização de armas por alguém, para a defesa de seu corpo ou de sua vida, isentando-o, assim, de pena105:

E este mandado e defesa se não entenda, naqueles que tirarem as ditas armas, ou ferirem com elas em defendimento de seu corpo, e de sua vida, e por partir, e extremar alguma luta; porque tais como estes não caem em penas algumas.

(tradução livre)

4.2.2 Ordenações Manuelinas

Relata José Henrique Pierangeli106 que, em 1505, D. Manuel I mandou revisar as Ordenações Afonsinas, sido incumbido da tarefa o chanceler-mor Rui Boto, o licenciado Rui da Grã e João Cotrim que, em 1514, completaram a missão:

Para explicar as razões que levaram D. Manuel a assim proceder são apontadas as seguintes: a) a descoberta da imprensa. Com esta havia a possibilidade de sua aquisição e, por consequência, o seu conhecimento por toda a população do reino; b) a legislação posterior, constituída de uma multidão de leis extravagantes; c) modernização do estilo, evitando-se assim, a transcrição fastidiosa das leis antigas, muitas das quais já revogadas pelo desuso; d) o desejo do monarca em ingressar na história por meio de uma obra legislativa de vulto, ele que já ostentava a glória indelével do descobrimento do Brasil e do caminho marítimo para as índias [...] Fossem quais fossem os motivos, alguns ou todos estes, ou talvez outros bem diferenciados, certo de as pessoas encarregadas do labor completaram a sua missão, e, em 1514 a obra estava

105 Disponível em: <http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/afonsinas/l5pg130.htm>. Acesso em: 20 de junho de 2022. “E efte mandado e defefa fe non entenda, naquelles que tirarem as ditas armas, ou ferirem com ellas em defendimento de feu corpo, e de fua vida, e por partir, e eftremar alguu arroido; porque taaes como eftes non caaem em penas alguãs.”

106 PIERANGELI, José Henrique. Códigos penais do Brasil: evolução histórica. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 55.

impressa na sua totalidade [...] Todavia, a reforma legislativa, realizada às pressas, não satisfez a expectativa de D. Manuel que, por tal razão, mandou inutilizar todos os exemplares, com exceção daquele encontrável na Torre do Tombo. Em seguida, o Monarca nomeou nova comissão para a elaboração da coletânea. Embora se afirme ter essa comissão sido composta pelos desembargadores Cristóvão Esteves, João Cotrim e João de Faria, sob a presidência do primeiro, só o nome de Cristóvão Esteves não encontra qualquer resistência entre os historiadores. Destarte, quando se fala nas Ordenações Manuelinas está se referindo às ordenações publicadas a 11 de março de 1521, justamente aquelas que tiveram aplicação durante grande parte do século e que foram impressas por Jacobo Cromberger, o Alemão.

As Ordenações Manuelinas observaram o sistema anterior com algumas alterações como o abandono do método histórico-cronológico e a fixação do método sistemático-sintético e a adoção de modificações na ordem de colocação dos títulos e da distribuição dos artigos e parágrafos, dando-lhe a impressão de código novo, e não de compilação de precedentes legislativos.

Em comparação com as Ordenações Afonsinas, Waldemar Martins Ferreira107 delineia:

Se as matérias dos cinco livros se mantiveram, transplantaram-se alguns títulos, suprimiram-se outros, modificando-se a seriação de artigos e de parágrafos. Não se mudou a essência dos dois códigos, nem o espírito nacionalista que no primeiro se transfundiu, no segundo não se esmaeceu, antes nele se deu maior unidade ao sistema do direito civil, tanto quanto ao político [...] Entre os pontos salientes das Ordenações Manuelinas, destaca-se o de, restringindo a pluralidade de costumes, no atinente ao regime de bens, tê-los unificado no da comunhão, que então alcançou o atributo da generalidade.

De forma semelhante ao disciplinado nas Ordenações Afonsinas, ainda que não tratasse diretamente do instituto do estado de necessidade, as Ordenações Manuelinas dispuseram em seu Livro V, Título X a situação de que se a morte acontecesse em atitude de defesa não lhe seria imposta qualquer pena e acrescentou ainda que, se excedesse em sua conduta, seria punido

107 FERREIRA, Waldemar Martins. História do direito brasileiro. São Paulo: Freitas Bastos, 1952. v. 2. p. 230.

por este excesso e, se agisse sem vontade de matar, responderia por culpa ou por sua inocência, conforme o caso108:

Qualquer pessoa que outrem matar, ou mandar matar, morra por ele morte natural. Porém se a morte em defendimento, não haverá pena alguma; salvo se no dito defendimento exceder aquela temperança, que deverá, e poderá ter, porque em tal caso será punido segundo a qualidade do dito excesso. E se a morte for algum caso sem malícia, ou vontade de matar, será punido ou relevado segundo sua culpa, ou inocência, que em tal caso tiver. (tradução livre)

Realça-se, ainda, que além das Ordenações Manuelinas, compunham o ordenamento jurídico daquela época diversos atos normativos que foram compilados por Duarte Nunes Leão e aprovados pelo Alvará Real de 14 de fevereiro de 1569, composto de seis partes, sendo que na quarta parte apresentavam-se os crimes e seus acessórios. Por ter sido juntado no reinado de D. Sebastião, esta legislação, apesar de muito incompleta, também recebeu a denominação de Ordenações Sebastiânicas.

4.2.3 Ordenações Filipinas

A parte criminal das Ordenações Filipinas vigeram por mais de dois séculos e esta vigência apenas se encerrou com o aparecimento do Código Criminal de 1830, enquanto a parte civil somente foi revogada com o Código Civil de 1916. Embora tenham sido elaboradas por Filipe I, que passou a reinar em Portugal a partir de 1581, entraram em vigor em 11 de janeiro de 1603, no reinado de Filipe II, realçando-se do seu contexto o combate à vingança privada e a flexibilização da pena de morte com o estabelecimento de formas diversas para sua execução.

Entretanto, paradoxalmente, tratou-se de uma legislação muito rigorosa com diversas cominações de pena de morte, tendo sido, inclusive, questionada por Luís XIV, da França. No

108 Disponível em: <http://www.ci.uc.pt/ihti/proj/manuelinas/15p38.htm>. Acesso em 21 de junho de 2022.

“Qualquer peffoa que outrem matar, ou mandar matar, moura por elle morte natural. Porém fe a morte em defendimento, nona verá pena algüa; falvo fe no dito defendimento excedeo aquella temperança, que devera, e poderá teer, porque em tal caso ferá punido fegundo a qualidade do dito exceffo. E fe a morte for alguma caso fem malicia, ou vontade de matar, ferá punido ou revelado fegundo fua culpa, ou inocência, em qual tal caso tever.”

Brasil, tiveram por objetivo dar cabo às conspirações contra o reino de Portugal, conforme explica José Henrique Pierangeli109:

Tão grande era o rigor das Ordenações onde a cominação da pena de morte era uma constante, que se conta haver Luis XIV, da França, famoso pelo seu absolutismo, interpelado ironicamente o embaixador português em Paris, querendo saber se, após o advento de tais leis, alguém havia escapado com vida. Também no Brasil encontramos exemplos da extrema crueldade dessa legislação. Tiradentes, acusado e condenado de crime de lesa majestade, foi enforcado, esquartejado, sendo os seus membros fincados à beira das estradas nas cercanias de Vila Rica, com slogans destinados a advertir ao povo sobre a gravidade dos atos de conspiração contra o monarca (na época, D. Maria, a Louca).

No que diz respeito aos aspectos penais, José Frederico Marques110 faz uma análise dos seus termos para revelar a sua contraposição com os princípios básicos vigentes na época em matéria penal:

De par com isto, os preceitos se aglutinavam em uma estrutura primária e rudimentar de indisfarçável empirismo. Falta ao livro V uma parte geral; e, na parte especial, os delitos se enumeram casuisticamente, sem técnica apropriada, numa linguagem (muitas vezes pitoresca) em que falta o emprego de conceitos adequados do ponto de vista jurídico. As figuras delituosas se amontoam sem nexo, na ausência de espírito de sistema para catalogá-las racionalmente, formando muitas vezes verdadeiros pastiches, tal a confusa e difusa redação dos textos que se condensam as condutas delituosas e respectivas sanções.

Waldemar Martins Ferreira111, mencionando-se às Ordenações Filipinas, escreve sobre a sua abrangência, não deixando de pontuar o seu rigor, ainda que, do ponto de vista jurídico pudesse à época ser comparada em situação de proeminência com legislações mais rígidas:

109 PIERANGELI, José Henrique. Códigos penais do Brasil: evolução histórica. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 55.

110 MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1965, v. 1. p. 116.

111 FERREIRA, Waldemar Martins. História do direito brasileiro. São Paulo: Freitas Bastos, 1952. v. 2. p. 230.

O livro quinto foi o famoso livro dos delitos e das penas. Dele dizia Cândido Mendes de Almeida que a penalidade em geral era áspera; mas no século em que foi decretada e em confrontação com a de outras nações, máxime a inglesa, quanto tanto louva o chanceler Fortescue, é muitíssimo mais branda, e um verdadeiro melhoramento [...] A pena de morte era abundante e aplicava-se aplicava-sem que, ao que obaplicava-servara o jurisconsulto, o “morra por ello” não aplicava-se entendesse com “morte civil” e sim com a “morte natural”. O tormento, a tortura, as mutilações, as marcas de fogo e outras penas atrozes tinham cabida ao lado dos açoites e degredos.

Nos mesmos moldes das Ordenações Afonsinas e Manuelinas, as Ordenações Filipinas, praticamente, retrataram o mesmo dispositivo a cerca do homicídio em situação de defesa ou sem culpa, visto que prescreveram em seu Livro V, Título XXXV a situação de que se a morte ocorresse em atitude de defesa não lhe seria imposta qualquer pena e acrescentou ainda mais que, se excedesse em seu ato seria punido por este excesso e se agisse sem a vontade de matar, responderia por sua culpa ou por sua inocência, conforme o caso112:

Qualquer pessoa, que matar outra, ou mandar matar, morra por ello morte natural. Porém se a morte for em sua necessária defensão, não haverá pena alguma, salvo se nella excedeo a temperança, que devêra, o poderá ter, porque então será punido segundo a qualidade do excesso. E se a morte for por algum caso sem malícia, ou vontade de matar, será punido ou revelado segundo a sua culpa, ou innocencia, que no caso tiver. (tradução livre)

Nota-se que, nas Ordenações Filipinas, pela primeira vez, junta-se ao dispositivo legal a expressão “necessária defesa”, vislumbrando-se, enfim, um primeiro sinal do estado de necessidade.