• Nenhum resultado encontrado

Do estado de necessidade no âmbito de condutas típicas praticadas por gestores de sociedades empresárias

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2023

Share "Do estado de necessidade no âmbito de condutas típicas praticadas por gestores de sociedades empresárias"

Copied!
127
0
0

Texto

(1)

OMAR ALI AYOUB

DO ESTADO DE NECESSIDADE NO ÂMBITO DE CONDUTAS TÍPICAS PRATICADAS POR GESTORES DE SOCIEDADES EMPRESÁRIAS

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO MESTRADO EM DIREITO PENAL

SÃO PAULO 2022

(2)

OMAR ALI AYOUB

DO ESTADO DE NECESSIDADE NO ÂMBITO DE CONDUTAS TÍPICAS PRATICADAS POR GESTORES DE SOCIEDADES EMPRESÁRIAS

Dissertação apresentada ao curso de Pós- Graduação Stricto Sensu como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Orientador: Prof. Dr. Christiano Jorge Santos

SÃO PAULO 2022

(3)

OMAR ALI AYOUB

DO ESTADO DE NECESSIDADE NO ÂMBITO DE CONDUTAS TÍPICAS PRATICADAS POR GESTORES DE SOCIEDADES EMPRESÁRIAS

Dissertação apresentada ao curso de Pós-Graduação Stricto Sensu como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Banca Examinadora:

Prof.: ...

Prof.: ...

Prof.: ...

(4)

Agradeço ao Dr. Christiano Jorge Santos pelos incontáveis ensinamentos ao longo de minha trajetória. Atuar como seu assistente intensificou ainda mais a minha paixão pelo mundo acadêmico.

Agradeço ao Dr. Everton Luis Zanella pelos inúmeros conselhos ao longo de minha vida.

Nada seria possível sem o seu inestimável apoio no decorrer de todos estes anos.

(5)

La gloria di colui che tutto move per l’universo penetra, e risplende in uma parte piú e meno altrove.

Nel ciel che piú de la sua luce prende fu’io, e vidi cose che ridire

né as né può chi di là sú discende;

perché appressando sé al suo disire, nostro intelletto si profunda tanto, che dietro la memoria non può ire

Veramente quant’io del regno santo me la mia mente potei far tesoro, sarà ora materia del mio canto.

(Dante Alighieri: La Divina Commedia).

Mire vuestra merced -respondió Sancho- que aquellos que allí se parecen no son gigantes, sino molinos de viento, y lo que en ellos parecen brazos son las aspas, que, volteadas del viento, hacen andar la piedra del molino.

(Miguel de Cervantes: El Ingenioso Don Quijote de la Mancha).

(6)

RESUMO

Tem-se por objetivo analisar a aplicação do estado de necessidade no âmbito de condutas típicas praticadas por gestores de sociedades empresárias. Para tanto, aborda-se, num primeiro momento, alguns aspectos relacionados à sociedade de risco para, em seguida, adentrar-se no bojo da atividade empresarial e da sua complexidade. Estipula-se, a partir daí, diversos métodos para decisões empresariais responsáveis, com o objetivo de demonstrar que há cuidados e processos a serem adotados, bem como técnicas diferenciadas de gestão, que podem auxiliar os gestores de sociedades empresárias na tomada de decisões empresariais responsáveis. Fixadas tais premissas, busca-se, através do estudo da evolução do conceito de estado de necessidade, do seu escorço histórico e dos seus elementos, estruturar a aplicação do instituto no seio das diversas causas de perigo (crises empresariais), que foram enquadradas em três espécies: os fatores absolutamente independentes da gestão, os fatores relativamente independentes da gestão e os fatores exclusivamente dependentes da gestão. Por fim, analisa-se o estado de necessidade no direito comparado, com o objetivo de verificar-se, de forma sistematizada, como o instituto encontra-se alojado no bojo das legislações de outros países, principalmente nos países das famílias romano-germânica, da common law, dos direitos socialistas, dos direitos muçulmano hindu e judaico, do extremo oriente e dos direitos africanos.

Palavras-chave: atividade empresarial; gestão empresarial; criminalidade econômica; estado de necessidade; direito comparado.

(7)

ABSTRACT

We aim to analyze the application of flagrant necessity on the actions involved in the management of corporations. To this end, we first address some aspects related to the risk society so that we can truly analyze the core of corporate activity and its complexity. From there we stipulate some methods for responsible corporate decisions, with the goal of demonstrating the existence of special cares and processes that must be adopted, as well as different management techniques that may aid the managers of corporations in decision making. After setting these premises, we aim, by studying the evolution of the concept of flagrant necessity, its history and its elements, to structure its application in the face of the many causes of risk (corporate crises), sorting them into three groups: factors that are completely independent of management, factors that are relatively independent of management, and factors that are entirely dependent on management. Finally, we study flagrant necessity in comparative law in order to systematically analyze its presence in the legal systems of other countries, most importantly in the Romano-Germanic system, common law, socialist laws, Muslim, Hindu and Jewish law, and in the Far East and African countries.

Keywords: corporate activity; corporate management; economic crime; flagrant necessity;

comparative law.

(8)

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 12

1. DA SOCIEDADE DE RISCO ... 13

2. DOS MÉTODOS PARA DECISÕES EMPRESARIAIS RESPONSÁVEIS ... 16

2.1 Cuidados e processos a serem adotados ... 16

2.2 Técnicas diferenciadas de gestão ... 19

3. DA EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE ESTADO DE NECESSIDADE ... 20

3.1 Considerações gerais ... 20

3.2 Evolução histórica ... 23

3.2.1 Direito antigo ... 25

3.2.2 Direito medieval ... 27

3.2.3 Direito canônico ... 27

3.2.4 Direito moderno ... 31

3.3 Fundamentos e natureza jurídica ... 32

3.3.1 Teorias da neutralização ... 33

3.3.1.1 Teoria da volta à comunidade de bens e ao estado da natureza ... 33

3.3.1.2 Teoria que aloca o estado de necessidade fora do direito penal ... 34

3.3.1.3 Teoria da inutilidade prática da repressão ... 35

3.3.2 Teorias subjetivas ... 36

3.3.2.1 Teoria da violência moral ... 36

3.3.2.2 Teoria da debilidade humana ... 39

3.3.2.3 Teoria da irresponsabilidade ... 39

3.3.2.4 Teoria da qualificação jurídica da necessidade ... 40

3.3.3 Teorias da colisão de interesses ... 40

(9)

3.3.3.1 Teoria da própria conservação ... 40

3.3.3.2 Teoria mista da colisão de interesses ... 41

3.3.3.3 Teoria da colisão objetiva de direitos e de bens ... 41

3.3.4 Teorias unitária ou monista e diferenciadora ou dualista ... 42

3.3.4.1 Estado de necessidade justificante ... 45

3.3.4.2 Estado de necessidade exculpante ... 46

3.4 Posição adotada ... 47

4. EVOLUÇÃO HISTÓRICA: DO ESTADO DE NECESSIDADE NO DIREITO PENAL BRASILEIRO ... 49

4.1 Povos Indígenas ... 49

4.2 Ordenações do Reino ... 53

4.2.1 Ordenações Afonsinas ... 54

4.2.2 Ordenações Manuelinas ... 55

4.2.3 Ordenações Filipinas ... 57

4.3 Código Criminal de 1830 ... 59

4.4 Código Penal de 1890 ... 60

4.5 Consolidação das Leis Penais ... 63

4.6 Código Penal de 1940 ... 64

4.7 Código Penal de 1969 ... 65

4.8 Código Penal Militar de 1969 ... 66

5. DO ESTADO DE NECESSIDADE NA LEGISLAÇÃO PENAL VIGENTE ... 66

5.1 Considerações gerais ... 67

5.2 Estado de necessidade como excludente de ilicitude ... 68

5.3 Estado de necessidade como excludente de culpabilidade ... 68

6. DOS ELEMENTOS DO ESTADO DE NECESSIDADE ... 69

(10)

6.1 Considerações gerais ... 69

6.2 Situação de necessidade e fato necessitado ... 71

6.2.1 Requisitos da situação de necessidade ... 72

6.2.1.1 Perigo atual ... 72

6.2.1.2 Não provocação voluntária do perigo ... 74

6.2.1.3 Inexistência de dever legal de enfrentar o perigo... 76

6.2.1.4 Inevitabilidade da lesão ... 78

6.2.1.5 Conhecimento da situação de fato justificante ... 80

6.2.1.6 Conflito de bens ... 81

6.2.1.7 Ponderação de bens ... 82

6.2.1.8 Conflito de deveres ... 83

6.2.2 Requisitos do fato necessitado ... 84

6.2.2.1 Relação de necessidade entre o fato necessitado e situação de necessidade ... 84

6.2.2.2 Fato previsto em lei como infração penal ... 85

6.2.2.3 Fato cometido pelo agente em virtude de ter sido constrangido pela necessidade de salvaguardar a si ou a outrem do perigo ... 85

6.2.2.4 Proporção entre o fato e o perigo ... 86

7. DA CONSTATAÇÃO DO ESTADO DE NECESSIDADE ... 87

8. DA PROVOCAÇÃO DE PERIGO ... 90

9. DAS CAUSAS DE PERIGO ... 91

9.1 Fatores absolutamente independentes da gestão ... 91

9.2 Fatores relativamente independentes da gestão ... 92

9.3 Fatores exclusivamente dependentes da gestão ... 93

10. DA ANÁLISE DAS CAUSAS DE PERIGO ... 93

11. DO ESTADO DE NECESSIDADE NO DIREITO COMPARADO ... 96

(11)

11.1 Considerações gerais ... 96

11.2 Família romano-germânica ... 102

11.2.1 Portugal ... 102

11.2.2 Itália ... 103

11.2.3 Alemanha ... 105

11.3 Família da commom law ... 107

11.3.1 Inglaterra ... 108

11.4 Família dos direitos socialistas ... 110

11.4.1 Rússia ... 112

11.5 Família do extremo oriente ... 113

11.5.1 China ... 114

11.6 Família africana ... 116

11.6.1 Nigéria ... 117

11.6.2 Madagascar ... 118

CONCLUSÃO ... 119

REFERÊNCIAS ... 122

(12)

INTRODUÇÃO

A principal característica da atividade empresarial é o seu elevado grau de complexidade. Diversas causas, internas e externas, são capazes de interferir no resultado e no desempenho da atividade empresarial.

Os gestores de sociedades empresárias, na tomada de decisões empresariais, apresentam enormes dificuldades, sendo o risco um elemento intrínseco a qualquer negócio.

Consequentemente, no ambiente empresarial, cercado de obstáculos, de barreiras e de entraves, tem-se, por inevitável, o enfrentamento, pelos gestores, de situações de perigo com frequência razoável, induzindo-os, muitas vezes, à prática de um fato típico.

Não obstante, os gestores podem basear-se em alguns postulados fixados pela administração para a tomada de decisões empresariais mais condizentes com a atividade empresarial. Isso porque, há cuidados e processos a serem adotados, bem como técnicas diferenciadas de gestão, que podem auxiliar os gestores de sociedades empresárias na tomada de decisões empresariais responsáveis.

Entretanto, os métodos para decisões empresariais responsáveis nem sempre atingem bons resultados. Uma sociedade empresária pode enfrentar situações de perigo por decisões irresponsáveis de seus gestores, por decisões que, a despeito de adotadas com responsabilidade, acabaram por não atingir os resultados esperados, bem como por fatores totalmente independentes de suas decisões. E, ainda, inclusive, pela combinação de todos estes fatores.

Buscou-se, portanto, analisar como deve ser realizada a aplicação do estado de necessidade no âmbito de condutas típicas praticadas por gestores de sociedades empresárias, de forma a averiguar se, determinada decisão empresarial, que configure um fato típico, adotada pelo gestor de uma sociedade empresária, numa situação de perigo, pode ou não pode ser considerada ilícita e, portanto, constituir crime ou contravenção penal. Nota-se que a situação descrita não se confunde com a hipótese de estado de necessidade no caso de responsabilidade penal da pessoa jurídica.

Enfim, através do estudo da evolução do conceito de estado de necessidade, do seu escorço histórico e dos seus elementos, demonstrou-se aplicação do instituto no seio das

(13)

diversas causas de perigo (crises empresariais), que foram enquadradas em três espécies: os fatores absolutamente independentes da gestão, os fatores relativamente independentes da gestão e os fatores exclusivamente dependentes da gestão. Com isso, tornou-se possível visualizar, de forma objetiva, em quais situações de perigo os gestores de sociedades empresárias teriam condições de alegar eventual estado de necessidade no caso de decisões empresariais que configurassem um fato típico.

Por fim, analisou-se o estado de necessidade no direito comparado, com o objetivo de verificar-se, de forma sistematizada, como o instituto encontra-se alojado no bojo das legislações de outros países, principalmente nos países das famílias romano-germânica, da common law, dos direitos socialistas, dos direitos muçulmano hindu e judaico, do extremo oriente e dos direitos africanos.

1. DA SOCIEDADE DE RISCO

A idade contemporânea traz em seu bojo diversas distinções em relação à sociedade formada logo após a Revolução Francesa, em 1789. A exigência de estipularem-se regras e princípios jurídicos aptos a limitar o poder do Estado em face do cidadão, apesar de ser uma preocupação constante, perde seu protagonismo diante das novas demandas que o Estado precisa lidar.

A divulgação dos diversos crimes perpetrados durante a Segunda Guerra Mundial, entre 1939 e 1945, sobremaneira após os notórios julgamentos do Tribunal de Nuremberg, implicou a demanda por proteção aos direitos humanos em sua dimensão difusa, coletiva e individual homogênea. O Estado, portanto, deveria não apenas se abster de praticar determinadas condutas, mas deveria, também, praticá-las, inclusive, de forma preventiva, para a proteção dos direitos humanos.

A situação tornou-se ainda mais intensa com o início da Guerra Fria, entre 1947 e 1991, e o medo da destruição da humanidade através do uso de armas nucleares, tendo a Crise dos Mísseis, em 1962, sido o episódio histórico mais importante em relação ao receio da quebra da ordem mundial.

(14)

O medo da utilização de armas nucleares com aptidão para destruição da humanidade ampliou-se com o acidente nuclear de Chernobyl, em 1986. Os danos ocasionados e, especialmente, a absoluta incapacidade do ser humano de reverter o quadro danoso, impulsionaram a procura pela redução dos riscos.

A ampliação da tecnologia humana permitiu ao ser humano a expansão do mercado de bens e serviços, através do consumismo, bem como a melhora, de forma ampla, das condições de vida da população em geral. Todavia, tal situação, também, permitiu ao ser humano obter conhecimentos capazes de influenciar no destino da natureza de modo violento e irreversível.

Essa sociedade, aflita com os fatos históricos acima mencionados, nos termos de Ulrich Bech1, pode ser chamada de sociedade de risco:

O novo paradigma da sociedade de risco se funda preponderantemente na resolução de um problema similar e, no entanto, absolutamente diferente.

Como é possível que as ameaças e riscos sistematicamente produzidos no processo tardio de modernização sejam evitados, minimizados, dramatizados, canalizados e, quando vindos a lume sob a forma de efeitos colaterais latentes, isolados e redistribuídos de forma tal que não comprometam o processo de modernização nem as fronteiras do que é plausível? (tradução livre)

Por seu turno, Zygmunt Bauman2 prescreve:

Medo derivado é uma estrutura mental estável que pode ser mais bem descrito como o sentimento de ser suscetível ao perigo, ou seja, uma sensação de insegurança – o mundo está repleto de perigos que podem se abater sobre nós a qualquer tempo com algum ou nenhum alarme – e de vulnerabilidade – no caso do perigo se realizar, haverá pouca ou nenhuma chance de escapar ou de

1 BECH, Ulrich. World risk society. Cambridge: Polity Press, 1999. p. 76-77. “This overlaps with the new paradigm of risk society which is based on the solution of a similar and yet quite different problem. How can the risks and hazards systematically produced as part of modernization be prevented, minimized, dramatized, or channeled? Where they do finally see the light of day in the shape of 'latent side effects', how can they be limited and distributed away so that they neither hamper the modernization process nor exceed the limits of that which is 'tolerable”.

2 BAUMAN, Zygmunt. Liquid fear. Cambridge: Polity Press, 2006. p. 45. “Derivative fear is a steady frame of mind that is best described as the sentiment of being susceptible to danger; a feeling of insecurity (the world is full of dangers that may strike at any time with little or no warning) and vulnerability (in the event of the danger striking, there will be little if any chance of escape or successful defence; the assumption of vulnerability to dangers depends more on a lack of trust in the defences available than on the volume or nature of actual threats).”

(15)

se proteger com êxito; o fundamento da vulnerabilidade aos perigos depende mais da falta de confiança nas defesas disponíveis do que no volume ou da natureza das ameaças reais –. (tradução livre)

Ainda, Anthony Giddens3 acrescenta que o mundo atual não se parece com aquele previsto décadas atrás. Isso porque, ao invés de estar cada vez mais dominado pelo ser humano, parece estar completamente desgovernado, ou seja, um mundo virado ao avesso. Além disso, alguns motivos que induziram o ser humano a pensar que a vida se tornaria mais estável e previsível, incluindo os progressos da ciência e da tecnologia, tiveram, por vezes, efeitos totalmente contraditórios.

Niklas Luhmann4 reconhece o risco na sociedade, mas diverge ao postular que o risco é uma construção cultural e não um dado natural. Assim, o controle do risco depende de camadas culturais e sociais relacionadas à imputação da responsabilidade aos indivíduos pelas condutas praticadas.

A sociedade de risco foi transladada ao direito através do princípio da precaução. A palavra precaução deriva do latim precautio-onis5, que significa cautela antecipada. O princípio da precaução deve ser delimitado como a diretriz para a adoção de medidas de regulamentação de atividades em casos de falta de informações sobre o potencial danoso de sua implementação.

Trata-se de princípio que lida com situações em que a ciência não pode fornecer uma ampla análise dos resultados, deixando um grau de dúvida, no que se refere aos efeitos de determinadas atividades.

A idade contemporânea é caracterizada pelo risco, bem como pela consequente demanda para que o Estado, através da legislação, regule as condutas que produzam risco. O postulado da liberdade como restrição da atuação do Estado torna-se proporcionalmente reduzido, mas não excluído, em face da necessidade de prestações positivas do Estado. O Estado, portanto, deveria não apenas se abster de praticar determinadas condutas, mas deveria, também, praticá-las, inclusive, de forma preventiva, para a proteção da sociedade.

3 GIDDENS, Anthony. The consequences of modernity. Cambridge: Polity Press, 2013. p. 60.

4 LUHMANN, Niklas. Risk: a sociological theory. New York: Walter de Gruyter, 1993. p. 70.

5 HOUAISS, Antonio. Dicionário da língua portuguesa. 2ed São Paulo: Objetiva, 2009. p. 234.

(16)

O risco de danos de grande monta é gerado, na sociedade atual, primordialmente, por sociedades empresárias, e não por empresários individuais. Consequentemente, os gestores de sociedades empresárias revelam-se os principais agentes da sociedade de risco. São eles que, portadores do poder, podem ordenar, através de decisões empresariais, isolada ou conjuntamente, danos irreparáveis e inimagináveis para a civilização humana.

2. DOS MÉTODOS PARA DECISÕES EMPRESARIAIS RESPONSÁVEIS

2.1 Cuidados e processos a serem adotados

Os gestores de sociedades empresárias podem basear-se em alguns postulados fixados pela administração para a tomada de decisões empresariais mais condizentes com a atividade empresarial.

Reflete Idalberto Chiavenato6:

Em uma época de complexidades, mudanças e incertezas, como a que se atravessa nos dias de hoje, a eficiência com que as pessoas trabalham as agrupa para conseguir objetivos comuns. A administração tornou-se uma das mais importantes áreas da atividade humana. Na civilização atual, predominam as organizações, e o esforço cooperativo do homem é a base fundamental da sociedade. E a tarefa básica da administração é fazer as coisas por meio das pessoas, de maneira eficiente e eficaz. Nas organizações – indústrias, comércio, serviços públicos, hospitais, universidades, instituições militares ou em qualquer outra forma de empreendimento humano – a eficiência e a eficácia com que as pessoas trabalham em conjunto para conseguir objetivos comuns dependem diretamente da capacidade daqueles que exercem a função administrativa. O avanço tecnológico e o desenvolvimento do conhecimento humano, por si só, não produzem efeitos se a qualidade da administração efetuada sobre os grupos organizados de pessoas não permitir uma aplicação efetiva dos recursos humanos e materiais.

6 CHIAVENATO, Idalberto. Introdução à teoria geral da administração. 10 ed. São Paulo: Manole, 2020. p.

15.

(17)

Por um lado, Justin Longenecker7 indica que a administração deve ser observada como um verdadeiro processo, compondo-se de três atividades básicas: a tomada de decisões empresariais, a coordenação de esforços grupais e a chefia geral. Como todo e qualquer processo, o zelo na organização e no desenvolvimento de funções básicas resultará em melhores condições para a tomada de decisões empresariais acertadas.

Por outro lado, Peter Ferdinand Drucker8 explica que o gestor deve, sempre, seguir um processo sistemático para a tomada de decisões empresariais importantes, com diferentes sequências de etapas. Consequentemente, Alexandre Shigunov Neto, Alexandre Andrade e Campos Teixeira e Letícia Merella Fischer9 formulam cinco etapas básicas que permitem o bom exercício da função do gestor na resolução de problemas: o planejamento, a organização, a execução, o controle e a avaliação.

Ainda, Francisco José Masset Lacombe e Gilberto Luiz José Heilborn10 elencam as funções do gestor: o planejamento, a organização, a promoção de recursos humanos, a liderança, a coordenação e o controle.

Explicam Thomas Bateman e Scott Snell11:

Planejar é especificar os objetivos a serem atingidos e decidir antecipadamente as ações apropriadas que devem ser executadas para atingir esses objetivos.

As atividades de planejamento incluem a análise da situação atual, a antecipação do futuro, a determinação de objetivos, a decisão sobre em que tipos de atividades a organização deverá se engajar, a escolha de estratégias corporativas e de negócios, e a determinação dos recursos necessários para atingir as metas da organização. Organizar é reunir e coordenar os recursos humanos, financeiros, físicos, de informação e outros necessários ao atingimentos dos objetivos. As atividades incluem atrair pessoas para a organização, especificar responsabilidades por tarefas, agrupar tarefas em

7 LONGENECKER, Justin. Introdução à administração: uma abordagem comportamental. São Paulo: Atlas, 1981. p. 23.

8 DRUCKER, Peter Ferdinand. A nova era da administração. São Paulo: Pioneira, 1976. p. 160.

9 SHIGUNOV NETO, Alexandre; TEIXEIRA, Alexandre Andrade e Campos; FISCHER, Letícia Merella.

Fundamentos da ciência administrativa. Rio de Janeiro: Ciência Moderna, 2005. p. 307.

10 LACOMBE, Francisco José Masset; HEILBORN, Gilberto Luiz José. Administração: princípios e tendências.

São Paulo: Saraiva. p. 48 – 50.

11 BATEMAN, Thomas; SNELL, Scott. A administração: construindo vantagem competitiva. São Paulo:

Atlas, 1998. p. 28.

(18)

unidades de trabalho, ordenar e alocar recursos e criar condições tais que as pessoas e as coisas trabalhem juntas para alcançar o máximo de sucesso.

Liderar é estimular as pessoas a serem grandes executores. É dirigir, motivar e comunicar-se com os funcionários, individualmente e em grupos. Liderar envolve o contato diário e próximo com as pessoas, ajudando a guiá-las e a inspirá-las em direção ao atingimento dos objetivos de equipe e organizacionais.

Nota-se que os gestores precisam cumprir determinadas tarefas para que sejam capazes de tomar decisões empresariais responsáveis. Cita-se, a título de exemplo, organizar as pessoas e os projetos, planejar as tarefas, liderar para que a sociedade empresária não perca de linha seus objetivos, prover os recursos humanos suficientes para atingir as metas propostas, coordenar as atividades e controlar os planos e as pessoas.

O desempenho de todas as tarefas descritas alargará a possibilidade de que as decisões empresariais sejam corretas e não comprometam a atividade empresarial, porquanto, em regra, pode-se notar que boas decisões empresariais necessitam do esforço dos gestores para adquirirem informações adequadas que corroboram a correta escolha dentre as diversas alternativas existentes.

Com efeito, Michael Jucius e William Schlender12 explicam que o mundo dos negócios está em constante trabalho com novidades, algumas únicas e desconhecidas, sendo indeclinável a confiança na intuição, palpite e sorte. De qualquer forma, muitas variáveis encontram-se no reino da análise sistemática, motivo pelo qual os gestores, que são obrigados a tomar decisões empresariais, agiriam com mais sabedoria se se armassem com uma porção cada vez maior de técnicas e esforços coletivos de conhecimento lógico e quantitativo.

Pode-se, assim, elencar três meios para auxiliar os gestores na tomada de decisões empresariais: a experiência anterior, os métodos quantitativos e as simulações.

A experiência anterior está atrelada com a ideia de manejar o conhecimento adquirido, através da análise dos registros escritos, bem como das recordações das decisões empresariais

12 JUCIUS, Michael; SCHLENDER, William. Introdução à administração: elementos de ação administrativa.

3 ed. São Paulo: Atlas, 1976. p. 54-56.

(19)

pretéritas num mesmo contexto fático. Os métodos quantitativos consistem em simples registros como, por exemplo, livros de contabilidade, mas também proposições científicas avançadas, capazes de indicar dados valiosos para a tomada de decisões empresariais. As simulações, atualmente facilitadas pelos avanços informáticos, admitem que os gestores verifiquem a viabilidade de seus projetos antes de optarem por decisões empresariais definitivas e irreversíveis.

Ante à impraticabilidade dos gestores disporem de todo o conhecimento científico para a tomada de decisões empresariais, tem-se recomendável, também, o apoio de auxiliares que tenham preparo prévio em suas respectivas áreas de atuação.

2.2 Técnicas diferenciadas de gestão

Diversas técnicas diferenciadas de gestão vêm sendo articuladas nas últimas décadas, com o objetivo de questionar, em maior ou menor escala, os parâmetros adotados pelas estruturas tradicionais presentes nas relações empresariais.

A elaboração de administração transparente, de forma externa e interna, o desenvolvimento de metas precisas, a busca pelo resultado respeitando-se valores éticos, legais e morais, o estabelecimento de regras de governança corporativa e o foco principal no cliente induzem a maior segurança na obtenção de resultados.

Ainda, a utilização de métodos que propiciam a coordenação com a utilização de equipes de trabalhos precisas e a fixação de funções com definição de responsabilidades de acordo com as atividades desempenhadas permitem uma análise de todos os envolvidos na gestão, bem como a identificação dos responsáveis por eventuais falhas.

Nota-se, também, que a aplicação de células com atribuição para o seu próprio gerenciamento facilita a descentralização do poder interno, flexibiliza a hierarquia e viabiliza uma aproximação entre as atividades de criação, gerenciamento e execução. Essa aproximação é extremamente favorável porque tende a evitar um grande problema que geralmente ocorre nas gestões tradicionais, que é justamente o gestor não ter ciência das dificuldades do processo de execução, bem como os executores não terem qualquer conhecimento do objetivo de sua atuação.

(20)

No entanto, isso não quer dizer a completa ausência de coordenação. Como explica Peter Ferdinand Drucker13, a força-tarefa exige um comandante, embora este comando possa ser alterado de uma etapa para outra. A equipe não é democrática, mas destaca a autoridade. Isso quer dizer que a autoridade deriva da tarefa e para ela se volta. O principal trabalho do gestor será o de aclarar os objetivos e o papel de cada um.

No mais, a formulação de propostas que tem por objetivo indagar os orçamentos estipulados, de forma a impedir desperdícios e incentivar o foco de gastos em questões relevantes para o negócio atingem bons resultados. De fato, o uso de orçamento anual geral e de orçamentos específicos para cada setor, geralmente pontuados antes do início do exercício a que se referem, bem como a constante fiscalização da sua observância, possibilitam que sejam averiguados eventuais problemas de falta de investimento ou de gastos excessivos, permitindo a tomada de medidas para a adoção de correções necessárias.

Por fim, tem-se por essencial o investimento em ferramentas modernas de informática, que possibilitem a análise de todos os dados com rapidez e segurança.

3. DA EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE ESTADO DE NECESSIDADE

3.1 Considerações gerais

Enrico Contieri14 explica que o estado de necessidade surge, seja na ordem jurídica, seja na ordem extrajurídica, como causa específica de exclusão de crimes, mas também como causa geral de exclusão de crimes, sendo necessário, portanto, para a sua correta compreensão, a análise de ambos os contextos:

O instituto do estado de necessidade aparece-nos, quer na ordem jurídica extra estadual, quer em ramos do nosso direito estadual diversos do direito penal, e no próprio direito penal, mesmo fora dos casos previstos pelo art. 54 do Código Penal da Itália, como causa específica de exclusão de certos crimes ou de certas categorias de crimes, ou ainda, segundo uma doutrina difundida principalmente na Alemanha, como causa geral de exclusão das infrações, a

13 DRUCKER, Peter Ferdinand. A nova era da administração. São Paulo: Pioneira, 1976. p. 160.

14CONTIERI, Enrico. O estado de necessidade. Saraiva: São Paulo, 1942. p. 5.

(21)

qual teria a sua fonte mais nos princípios gerais do direito do que numa norma expressa da lei.

Paul Moriaud15 aloca o estado de necessidade como um estado de coisas tal que a salvaguarda de um interesse jurídico pressupõe a realização de uma conduta em si mesmo criminosa. René Garraud16 descreve que o estado de necessidade acontece quando, em razão de um acontecimento de ordem natural ou humana, o agente se vê forçado a praticar uma conduta criminosa para salvar-se ou salvar terceiro de um perigo grave, iminente e inevitável.

Vicenzo Manzini17 preconiza que o estado de necessidade pode ser entendido como uma situação individual perigosa, juridicamente reconhecida, pela qual, quem nela se encontra, é forçado a violar um preceito penal para salvar-se ou salvar terceiro e que tem por efeito tornar não punível o fato relacionado ao perigo, quando a causa deste não foi ocasionada pelo agente.

Roberto von Hippel18 esclarece que o estado de necessidade é uma situação de perigo atual para interesses juridicamente protegidos, que pode ser extirpada com a lesão de outros interesses também juridicamente protegidos.

Paul Foriers19 aduz que os questionamentos adstritos ao estado de necessidade, na doutrina e na jurisprudência, são extremamente controvertidos, mormente no que diz respeito ao direito de punir. De qualquer forma, não é complicado delimitar o instituto, uma vez que se trata de situação em que se encontra uma pessoa que não pode razoavelmente salvar um interesse jurídico a não ser pela prática de uma conduta que se estiver em desacordo com as circunstâncias que a engloba será considerada criminosa.

Philppe-Jean Hesse20 entende o estado de necessidade como uma maneira de anulação da responsabilidade porquanto não há como responsabilizar o agente que escolhe por um interesse jurídico em lugar de outro. Cecil Turner21 relata que, em razão da complexidade do estado necessidade, existe enorme dificuldade em analisar-se, nos casos concretos, a presença

15 MORIAUD, Paul. Du délit necessaire et de l’état de nécessité. Geneve-Paris: Burkhardt, 1889. p. 30.

16 GARRAUD, René. Traité théorique et pratique du droit pénal français. 3 ed. Sirey: Paris, 1913, v. 1. p. 342.

17 MANZINI, Vicenzo. Trattato di diritto penale. Torino: Editrice Torinense, 1950, v. 2. p. 392..

18 HIPPEL, Roberto von. Manuale di diritto penale. Napoli: Jovene, 1936. p. 162.

19 FORIERS, Paul. L’état de nécessité em droit penal. Paris: Librairie Du Recueil Sirey, 1951. p. 3.

20HESSE, Philippe-Jean. Un droit fondamental vieux de 3000 ans: l'état de nécessité. Paris: Revue Droits Fondamentaux, 2002. p. 12.

21 TURNER, Cecil. Kenny’s outlines of criminal law. 18 ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2013. p.

60.

(22)

de seus requisitos legais. Portanto, vale-se do controvertido caso do Iate Mignonette para relatar que o estado de necessidade apenas deve ser reconhecido quando a morte for fruto inevitável da abstenção da prática de determinada conduta.

Claus Roxin22 manifesta-se sobre este episódio em que houve colação de valores entre vidas humanas nos seguintes termos:

Os tripulantes do veleiro britânico Mignonette, que havia naufragado em uma tempestade, levaram vinte dias em alto mar em um bote de resgate sem alimentos e estavam em perigo de morrer de fome; então o capitão matou o grumete, que possivelmente estava moribundo, e a tripulação se alimentou de sua carne e de seu sangue, conseguindo-se manter, assim, com vida, até que, posteriormente, foram encontrados e salvos por um barco. (tradução livre)

O Iate Mignonette, partira de Southampton, na Inglaterra, com destino a Sidney, na Australia, em 1884, e tinha como capitão Tom Dudley. A tripulação era composta por mais dois homens adultos e um jovem, Richard Parker. Acontece que, infelizmente, a embarcação naufragou no meio da travessia, e os quatro tripulantes tiveram que se agrupar a bordo de um bote pequeno e aberto. Após oito dias sem água e comida, os três adultos resolveram matar o jovem para alimentar-se de sua carne e beber-se de seu sangue. Resgatados, foram processados e condenados à morte, pena que, posteriormente, foi transformada em prisão pelo prazo de seis meses.

Paul Moriaud23 aduz que os fatos somente aconteceram porque Richard Parker teria bebido água do mar e, consequentemente, encontrava-se adoentado. Ainda, conforme Cecil Turner24, a tese de estado de necessidade, que foi arguida por Lord Bacon em contraposição às teses de Sir James Stephen, foi vencida, uma vez que prevaleceu o posicionamento da Corte de

22 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. Madrid: Civitas, 2008, v. 1. p. 687. “Histórico es el caso Mignonette: los tripulantes del velero británico Mignonette, que había naufragado en una tormenta, llevaban veinte días en alta mar en un bote de salvamento sin alimentos y corrían peligro de morir de hambre; entonces el capitán mató al grumete, que posiblemente estaba ya moribundo, y la tripulación se alimentó con su carne y su sangre, consiguiendo mantenerse así con vida hasta que posteriormente fueron encontrados y salvados por un barco.”

23 MORIAUD, Paul. Du délit necessaire et de l’état de nécessité. Geneve-Paris: Burkhardt, 1889. p. 9.

24 TURNER, Cecil. Kenny’s outlines of criminal law. 18 ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2013. p.

60.

(23)

Queen’s Bench, no sentido de que não há princípio geral do direito que autoriza uma pessoa a tirar a vida de um inocente para preservar a sua própria vida.

Paul Foriers25 revela que o estado de necessidade pressupõe um processo de reflexão livre, bem como uma deliberação racional. Não se pode, portanto, afirmar que se está em estado de necessidade todo aquele que, para fugir de uma situação grave, cede simplesmente a um impulso desleal.

De fato, a respeito do conflito entre a vida e a morte, em face de uma situação de estado de necessidade, Joseph Fabisch26 afirma que a melhor forma de analisar-se tal situação é compará-la às ideias de coação física, de coação moral e de legítima defesa. Acrescenta, ainda, que apenas outros poucos casos similares aconteceram naquele século. Cita-se, por exemplo, o naufrágio do navio Thécla, em 1893, em que situação similar ao do Iate Mignonette aconteceu, bem como a morte, em 1888, na Sibéria, de uma menina devorada por seus irmãos e o caso da jangada da fragata francesa Medusa, em 1816, no qual quinze náufragos jogaram ao mar treze de seus companheiros que se encontravam doentes, de forma a conseguirem sobreviver por mais tempo, com a pouca comida que tinham, em uma barca que montaram com os restos do navio.

Acerca do incidente russo, Paul Moriaud27 explica que este aconteceu no território de Touroukhank, na Sibéria Oriental, quando três irmãos, Procópio, Nikita e Davi e sua irmã Marie estavam acampados às margens de um rio e alimentando-se, basicamente, da pesca, como único recurso para a sua sobrevivência. Com o término dos peixes, David saiu em busca de alimentos, enquanto Procópio, atordoado pela fome, abateu a sua irmã Marie e alimentou-se de seu cadáver, assim procedendo, também, Nikita. A situação resultou num julgamento rigoroso pelo Tribunal de Jenisseik, que absolveu Nikita, por sequer ter participado da morte de Marie, mas condenou Procópio a treze anos e meio de trabalhos forçados.

3.2 Evolução histórica

25 FORIERS, Paul. L’état de nécessité em droit penal. Paris: Librairie Du Recueil Sirey, 1951. p. 10.

26FABISCH, Joseph. Essai sur l’état de nécessité. Lyon: Imprimiere Paul Legendre, 1903. p. 6.

27 MORIAUD, Paul. Du délit necessaire et de l’état de nécessité. Geneve-Paris: Burkhardt, 1889. p. 30.

(24)

Philppe-Jean Hesse28 elenca três etapas da evolução do estado de necessidade: a antiguidade, as monarquias medievais e modernas e os dois últimos séculos. Acrescenta Félix Marchand29 que a questão acerca da justificação, pela legislação, de condutas praticadas em estado de necessidade é antecedente à própria sociedade, uma vez que sempre se questionou sobre a moralidade de deixar-se sem punição os crimes necessários.

Por sua vez, Aníbal Bruno30 manifesta-se sobre o estado de necessidade nos seguintes termos:

Os romanos não conheceram o estado de necessidade como instituto autônomo. Só em alguns casos, de que trata sobretudo a Lex Rhodia de Jactu, se prevê a hipótese, com a consequência de exclusão de crime. Assim se justificava o ato do capitão que, para salvar o navio em perigo, deitasse o carregamento ao mar. Os práticos do direito intermediário reconheceram a justificativa, mas limitada, em geral, à proteção do corpo ou da vida. Na idade média e em épocas posteriores, não só legislações, mas juristas e teólogos cuidaram sobretudo do chamado furto famélico, como hipótese dessa situação.

Faltou, porém, a essas construções não só uma doutrina, mas uma maneira geral e uniforme de tratar o estado de necessidade. Faltou torná-lo uma figura independente e sistematizada no quadro das discriminantes. O direito moderno é que havia de alargar-lhe a compreensão e transportá-lo para a parte geral dos códigos. Começou-se, então, a construir o instituto com mais liberalismo e um sentido mais humano do conceito de necessidade. A doutrina alemã criou o termo Notstand para designá-lo, e com ele destacou-se das fórmulas da coação moral, da força irresistível dentro das quais se achava geralmente confundido e, então, legislação e doutrina passaram a discipliná- lo com mais precisão.

Paul Foriers31 alega que, na antiguidade indo-europeia, o estado de necessidade era aplicado através de espécies particulares, seja justificante por mútua ajuda, seja por solidariedade. Logo após, os romanos adicionaram a ausência de dolo e os cristãos o receberam como um permissivo, justificando o retorno à sociedade de bens deixados por Deus aos homens.

28 HESSE, Philippe-Jean. Un droit fondamental vieux de 3000 ans: l'état de nécessité. Paris: Revue Droits Fondamentaux, 2002. p. 12.

29 MARCHAND, Félix. L’état de nécessité em droit penal. Paris: Arthur Rousseau Editeur, 1902. p. 55.

30 BRUNO, Aníbal. Direito penal: parte geral. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978, v.1. p. 395

31 FORIERS, Paul. L’état de nécessité em droit penal. Paris: Librairie Du Recueil Sirey, 1951. p. 155.

(25)

No mais, os costumes o proclamaram como um modo de regulamentar os conflitos sociais e os canonistas o elegeram em preceito de moral e de direito, enquanto os publicistas o desdobraram para as relações internacionais, modelando-se vasta doutrina sobre a questão.

Candido Motta Filho32 relata:

O estado de necessidade, assim definido, originou-se, como vimos, do progresso social. Antes, como não havia motivos para precisá-lo dentro de um plano jurídico, não constituía uma preocupação dominante. Até 1800, encontramos, na problemática jurídica, inúmeros casos singulares de estado de necessidade. Com o aperfeiçoamento da ciência penal, a partir de Feurbach, é que se procura uma fórmula geral.

3.2.1 Direito antigo

Paul Foriers33 aduz que, através da análise de diversos filósofos e historiadores, pode- se dizer que estado de necessidade era, incontestavelmente, admitido entre os gregos.

Philppe-Jean Hesse34 explica que, embora os gregos fossem avessos aos homens ociosos, bem como aos homens que violassem os costumes e as tradições, sendo vistos, inclusive, com grande suspeita, o estado de necessidade não era de todo ignorado e efetuava- se, em algumas situações, em que os devedores incapazes de lidar com as suas dívidas e não adquirindo uma moratória para liquidá-las, assassinavam os credores e alegavam que não deveriam ser responsabilizados por terem agido em razão de força maior, em face da situação econômica em que se encontravam.

Philppe-Jean Hesse35, ainda, manifesta que os espartanos configuravam verdadeira exceção entre os gregos, seja no que diz respeito às suas instituições, seja no que diz respeito às suas relações morais. Curiosamente, o furto não apresentava um caráter totalmente negativo, mas, pelo contrário, revelava um caráter parcialmente positivo, uma vez que em pontuais

32 MOTTA FILHO, Candido. Do estado de necessidade. São Paulo: Saraiva, 1937. p. 44.

33 FORIERS, Paul. L’état de nécessité em droit penal. Paris: Librairie Du Recueil Sirey, 1951. p. 53.

34 HESSE, Philippe-Jean. Un droit fondamental vieux de 3000 ans: l'état de nécessité. Paris: Revue Droits Fondamentaux, 2002. p. 126.

35 HESSE, Philippe-Jean. Un droit fondamental vieux de 3000 ans: l'état de nécessité. Paris: Revue Droits Fondamentaux, 2002. p. 126.

(26)

situações os jovens não eram considerados maduros enquanto não praticassem furtos bem sucedidos.

Paul Moriaud36 relata que embora haja pouca informação acerca do estado de necessidade no direito antigo, os gregos o consideravam como uma situação de fatalidade e não como de vontade humana.

Paul Foriers37 alega que os espartanos foram os primeiros a sistematizar o estado de necessidade, embora de forma aleatória, através de seus juristas, literatos e retóricos. Comenta que Titio Lívio retratou intenso debate acerca do estado de necessidade, bem como fez surgir princípios para a resolução de conflitos que estudou a partir da Batalha de Cannes. No episódio histórico, o general Cartago Aníbal, logo após ter destruído o exército romano que tentara surpreendê-lo, requereu o pagamento de resgate pelos soldados sobreviventes que abandonaram a frente de batalha. Todavia, o senado romano, que sequer concordava com o pagamento de resgate nos casos de soldados desertores, anuiu com o pedido. Prevaleceu o posicionamento de que os soldados haviam cedido ao estado de necessidade porquanto estavam lutando há dias, ininterruptamente, e com milhares de baixas.

Paul Moriaud38 reflete que os romanos empenharam-se muito mais ao direito civil do que ao direito penal, embora menos por culpa dos seus jurisconsultos do que em face de circunstâncias particulares, visto que o direito penal romano evoluiu-se de forma não sistemática no bojo de movimentos políticos e através de uma diversidade de leis esparsas, nos moldes das exigências do momento.

Philppe-Jean Hesse39 pondera que a noção de estado de necessidade não era desconhecida entre os romanos, sendo encontrado, inclusive, no Digesto, que relata a viabilidade de destruição da moradia do vizinho para livrar-se do fogo, ou até mesmo em Marcus Tullius Cícero40, em que se faz alusão ao conhecido exemplo no qual um náufrago,

36 MORIAUD, Paul. Du délit necessaire et de l’état de nécessité. Geneve-Paris: Burkhardt, 1889. p. 54.

37 FORIERS, Paul. L’état de nécessité em droit penal. Paris: Librairie Du Recueil Sirey, 1951. p. 93.

38 MORIAUD, Paul. Du délit necessaire et de l’état de nécessité. Geneve-Paris: Burkhardt, 1889. p. 51.

39 HESSE, Philippe-Jean. Un droit fondamental vieux de 3000 ans: l'état de nécessité. Paris: Revue Droits Fondamentaux, 2002. p. 127.

40 CÍCERO, Marcus Tullius. On the republic and on the laws. Ithaca: Cornell University Press, 2014. p. 105.

(27)

para salvar-se da situação de perigo e, tendo uma única tábua de madeira, sacrifica a vida de outrem que se encontra na mesma situação.

3.2.2 Direito medieval

Félix Marchand41 alega que o direito medieval consagrava o furto por estado de necessidade como fato atípico, sendo que o Corpus Juris Canonici, que é uma compilação de fontes relevantes do direito canônico, apresentava uma passagem relacionada ao furto por estado de necessidade no qual uma pequena sanção era imposta.

Paul Moriaud42 retrata que o direito medieval era permeado de uma ideia bem simples no que diz respeito ao estado de necessidade: o estado de necessidade não está sujeito à lei, ou seja, deve-se permitir o decurso natural das coisas, uma vez que a lei deixa de atuar em situações extraordinárias e imprevisíveis.

Philppe-Jean Hesse43 apresenta três situações que indicam de que forma o estado de necessidade vigia no direito medieval. A primeira situação relaciona-se à lenda cética Peredu ab Evrawc, em que a mãe de Peredu o aconselha, quando este opta por percorrer o mundo, alertando-o de que, seja em que local for, se acaso não lhe oferecessem comida, que ele mesmo a roubasse. A segunda situação atrela-se ao discurso revolucionário do inglês Overton, em 1647, no qual este alega ser o estado de necessidade uma lei superior a todas as outras e que a partir desse pressuposto se passaria autoridade ao povo, tanto em situações gerais quanto em situações particulares. A terceira situação vincula-se ao sermão revelado pelo Duque da Bretanha, quando este manifestou o estado de necessidade como o único instrumento qualificado de compreender o seu ímpeto em salvaguardar os institutos ingleses existentes à época.

3.2.3 Direito canônico

41 MARCHAND, Félix. L’état de nécessité em droit penal. Paris: Arthur Rousseau Editeur, 1902. p. 51.

42 MORIAUD, Paul. Du délit necessaire et de l’état de nécessité. Geneve-Paris: Burkhardt, 1889. p. 81.

43 HESSE, Philippe-Jean. Un droit fondamental vieux de 3000 ans: l'état de nécessité. Paris: Revue Droits Fondamentaux, 2002. p. 128.

(28)

Paul Foriers44, ao analisar o estado de necessidade no direito canônico, alerta sobre as penitências, o Corpus Juris Canonici e os glosadores.

As penitências revelavam verdadeiro código penal de direito disciplinar com penas extremamente severas, mas a Penitentiel de Theodore e a Penitentiel Pseudo-Bedae aboliram a pena de jejum de quarenta dias pelo consumo inadequado de carne em situação de estado de necessidade. Ainda, a Penitentiel Civitatense permitia o homicídio de um inocente por situação de uma conduta injusta.

O Corpus Juris Canonici, que é uma compilação de fontes relevantes do direito canônico, conforme explicado linhas atrás, apresentava diversos ensinamentos previstos nas penitências, mas considerava, em linhas gerais, que todas as condutas necessárias eram também legítimas e, portanto, justificadas.

Os glosadores foram os responsáveis por estudar os fundamentos do estado de necessidade, destrinchando o conceito unitário do instituto em uma série de justificativas particulares, atribuíveis apenas em razão de uma determinada disposição. Todavia, a par de alocarem o elemento moral, foram sensíveis ao atribuir uma diferenciação quanto à intensidade do estado de necessidade e ao analisar os seus efeitos em razão do seu grau de ocorrência, malgrado tenham assegurado, em relação a este, a ausência de responsabilização.

Paul Foriers45 aduz que as características principais do estado de necessidade, quais sejam, a imputabilidade e a força institucional, encontram-se abarcadas nas instituições canônicas, e correspondem à grande ordem de ideias que é o eixo da resolução de conflitos do estado de necessidade, ou seja, violar a lei para evitar um mal, mas também para fazer um bem.

Enrico Contieri46, ao estudar o estado de necessidade no direito canônico, revela não ser o estado de necessidade uma causa geral de exclusão de crimes, mas de determinados crimes, não se aplicando, de toda forma, quando a conduta for evidentemente reprovável ou quando

44 FORIERS, Paul. L’état de nécessité em droit penal. Paris: Librairie Du Recueil Sirey, 1951. p. 93.

45 FORIERS, Paul. L’état de nécessité em droit penal. Paris: Librairie Du Recueil Sirey, 1951. p. 93.

46 CONTIERI, Enrico. O estado de necessidade. Saraiva: São Paulo, 1942. p. 12.

(29)

acarretar desprezo pela fé, pela autoridade eclesiástica ou resultar dano às almas, funcionando, nos casos mencionados, como verdadeira atenuante:

É, porém, necessário que se trate da ofensa de um bem ou de um interesse protegido por uma norma exclusivamente de direito humano, e não de direito divino. O estado de necessidade, no direito penal canônico, não é, por isso, causa geral de exclusão das infrações, mas se refere unicamente a determinada categoria de infrações. Além disso, não obstante ser necessário que o bem ou o interesse violado seja protegido por uma norma exclusivamente de direito humano, a dirimente não se aplica quando a ação é intrinsecamente reprovável ou constitui desprezo pela fé ou pela autoridade eclesiástica ou danos das almas.

Paul Moriaud47, ao verificar o estado de necessidade no direito canônico, revela que a igreja adotava em toda a sua plenitude o postulado de que o estado de necessidade não conhece a lei. Seja nas penitências mais antigas, seja nas penitências mais recentes, são averiguadas, com frequência, referências à palavra “necessidade”, tendo esta grande influência nas disposições de exceção a diversos crimes, salvo nos casos de fornicação, que jamais eram perdoados.

Não é por outro motivo que o Padre António Vieira48, no sermão do Bom Ladrão, revela que o homem que furta para comer não deve ser responsabilizado:

O ladrão que furta para comer, não vai, nem leva ao inferno; os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são outros ladrões, de maior calibre e de mais alta esfera, os quais debaixo do mesmo nome e do mesmo predicamento, distingue muito bem S. Basílio Magno: Non est intelligendum fures esse solum bursarum incisores, vel latrocinantes in balneis; sed et qui duces legionum statuti, vel qui commisso sibi regimine civitatum, aut gentium, hoc quidem furtim tollunt, hoc vero vi et publice exigunt: Não são só ladrões, diz o santo, os que cortam bolsas ou espreitam os que se vão banhar, para lhes colher a roupa: os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha, já com

47 MORIAUD, Paul. Du délit necessaire et de l’état de nécessité. Geneve-Paris: Burkhardt, 1889. p. 89.

48 VIEIRA, António. Sermões. Lello & Irmão: Porto, 1959, v. 3. p. 232.

(30)

força, roubam e despojam os povos. — Os outros ladrões roubam um homem:

estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco: estes sem temor, nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados: estes furtam e enforcam.

Ainda, São Tomás de Aquino49, numa de suas imortais questões, indaga se é lícito furtar por estado de necessidade. Em seguida, chega a uma conclusão interessante, qual seja, de que o estado de necessidade torna todas as coisas comuns e, portanto, parece não cometer pecado quem se apodera de coisa de outrem em face do estado de necessidade, que lhe tornou essa coisa comum:

As disposições de direito humano não podem derrogar as de direito natural ou de direito divino. Ora, pela ordem natural, instituída pela providência divina, as coisas inferiores são ordenadas à satisfação das necessidades humanas. Por onde, a divisão e a apropriação de coisas permitidas pelo direito humano não obstam a que essas coisas se destinem a satisfazer às necessidades do homem.

E portanto as coisas que possuímos com superabundância são devidas, pelo direito natural, ao sustento dos pobres. Por isso Ambrósio relata: está nas Decretais: É dos famintos o pão que tu reténs; as roupas que tu guardas são dos nus; e resgate e alívio dos miseráveis é o dinheiro que enterras no chão.

Ora, sendo muitos os que padecem necessidades, e não podendo uma mesma coisa socorrer a todos, ao arbítrio de cada um é cometido dispensar os bens próprios para assim obviar aos necessitados. Contudo, se a necessidade for de tal modo evidente e imperiosa que seja indubitável o dever de obviá-la com as coisas ao nosso alcance - por exemplo, quando corremos perigo iminente de morte e não é possível salvarmo-nos de outro modo – então podemos licitamente satisfazer à nossa necessidade com as coisas alheias, apoderando-

49 AQUINO, São Tomás. Suma de teologia. 3 ed. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1998, v. 3. p. 231.

“Las cosas que son de derecho humano no pueden derogar el derecho natural o el derecho divino. Ahora bien:

según el orden natural instituido por la divina providencia, las cosas inferiores están ordenadas a la satisfacción de las necesidades de los hombres. Por consiguiente, por la distribución y apropiación, que procede del derecho humano, no se ha de impedir que con esas mismas cosas se atienda a la necesidad del hombre. Por esta razón, los bienes superfluos, que algunas personas poseen, son debidos por derecho natural al sostenimiento de los pobres, por lo cual Ambrosio, y en el Decreto se consigna también, dice: De los hambrientos es el pan que tú tienes; de los desnudos, las ropas que tú almacenas; y es rescate y liberación de los desgraciados el dinero que tú escondes en la tierra. Mas, puesto que son muchos los que padecen necesidad y no se puede socorrer a todos con la misma cosa, se deja al arbitrio de cada uno la distribución de las cosas propias para socorrer a los que padecen necesidad.

Sin embargo, si la necesidad es tan evidente y urgente que resulte manifiesta la premura de socorrer la inminente necesidad con aquello que se tenga, como cuando amenaza peligro a la persona y no puede ser socorrida de otro modo, entonces puede cualquiera lícitamente satisfacer su necesidad con las cosas ajenas, sustrayéndolas, ya manifiesta, ya ocultamente. Y esto no tiene propiamente razón de hurto ni de rapiña.”

(31)

nos delas manifesta ou ocultamente. Nem tal ato tem propriamente a natureza de furto ou rapina. (tradução livre)

3.2.4 Direito moderno

No que diz respeito à evolução do estado de necessidade no direito moderno, Paul Foriers50 aduz que a análise dos textos referentes a este período viabiliza a elaboração, malgrado de modo parcial, de um esboço jurídico do estado de necessidade e que, século após século, estes traçados foram se fixando e desenvolvendo autonomia, até que se tivesse uma verdadeira teoria geral do estado de necessidade com os internacionalistas.

Em relação à viabilidade do estado de necessidade ser adotado no direito internacional como causa de exclusão de responsabilidade dos Estados pelas práticas de condutas ilícitas internacionais, a questão, embora seja bastante complicada, vem sendo admitida. Enrico Contieri51 explica haver posicionamentos suficientes no direito internacional para que se adote tal afirmativa:

E o limite lógico da obrigatoriedade das normas a que os Estados se sujeitam, nas relações internacionais, parece ser a exigência da sua própria conservação, não em virtude de uma hierarquia dos bens protegidos pelo direito internacional, contra a qual se insurge Cavaglieri, mas sim pela natureza especial daquela exigência, indispensável para os Estados poderem gozar todos os bens, a qual tem a proteção do direito internacional, pelo que é lógico supor, desde que não esteja determinado precisamente o contrário, que os Estados querem salvaguardar essa exigência da obrigatoriedade das normas da ordem internacional. O segundo argumento tem por base o exame de dois documentos diplomáticos, por meio dos quais os Estados protestam contra fatos em si mesmo internacionalmente ilícitos, que a outra parte justifica alegando o estado de necessidade; ora, quase constantemente se protesta contra a aplicação concreta do princípio em si, o que prova a convicção jurídica em que estão os Estados de admitirem como lícito o fato necessitado cometido para salvar a existência de qualquer deles.

50 FORIERS, Paul. L’état de nécessité em droit penal. Paris: Librairie Du Recueil Sirey, 1951. p. 100.

51 CONTIERI, Enrico. O estado de necessidade. Saraiva: São Paulo, 1942. p. 6.

(32)

Félix Marchand52 ressalta que a enorme quantidade de legislações modernas têm adotado disposições especiais acerca do estado de necessidade, mas lamentavelmente fracassam em não exprimir de maneira clara um postulado aplicável a todas as situações.

3.3 Fundamentos e natureza jurídica

Enrico Contieri53 expressa-se a respeito da relevância de analisar-se a natureza jurídica do estado de necessidade, seja para sistematizar o seu estudo, seja para averiguar as consequências jurídicas provenientes do seu reconhecimento:

O interesse em fixar-lhe a natureza jurídica, corresponde não só a uma exigência sistemática, mas a sua satisfação é o pressuposto necessário para a solução de alguns problemas referentes à vontade do agente, na sua influência sobre o estado de necessidade, tais como a admissibilidade da legítima defesa contra o facto necessitado e a ressarcibilidade do dano civil produzido pelo facto necessitado.

Philippe-Jean Hesse54 explica que no período medieval foram utilizadas três fontes teológicas para conferir ao estado de necessidade bases sagradas e, a partir daí, desenvolveram- se, nos séculos XVI a XVIII, os postulados jurídicos e filosóficos aptos a explicar a extinção da responsabilidade nos casos de condutas necessárias. As três fontes teológicas mencionadas foram: o evangelho de São Mateus, em que alguns discípulos descumpriram o sábado sagrado por razões de fome, no que foram punidos pelos fariseus, mas justificados por Jesus Cristo; um fragmento do Responsu Gregorii, que elenca uma diferenciação entre o ladrão ordinário e o ladrão guiado pelo estado de necessidade; e a Penitentiel de Theodoro, em que se estipula uma pequena penitência de três semanas àquele que furtar por estado de necessidade.

As teorias voltadas a esclarecer a natureza jurídica do estado de necessidade, nos termos de Jiménez de Asúa55, podem ser modeladas em quatro grupos: as teorias da neutralização, as teorias subjetivas, as teorias da colisão de interesses e as teorias da causa de justificação.

52 MARCHAND, Félix. L’état de nécessité em droit penal. Paris: Arthur Rousseau Editeur, 1902. p. 107.

53 CONTIERI, Enrico. O estado de necessidade. Saraiva: São Paulo, 1942. p. 140.

54 HESSE, Philippe-Jean. Un droit fondamental vieux de 3000 ans: l'état de nécessité. Paris: Revue Droits Fondamentaux, 2002. p. 130.

55 ASÚA, Jiménez de. Tratado de derecho penal. 4 ed. Buenos Aires: Losada, 1964, v. 4. p. 302.

(33)

3.3.1 Teorias da neutralização

As teorias da neutralização têm por objetivo neutralizar o estado de necessidade em relação às normas jurídicas, caracterizando-se um retorno à comunidade de bens e ao estado da natureza, alocar estado de necessidade fora do campo do direito penal ou preconizar a inutilidade prática da sua repressão.

3.3.1.1 Teoria da volta à comunidade de bens e ao estado da natureza

A teoria da volta à comunidade de bens e ao estado da natureza, abarcada nas lições de São Tomás de Aquino, foi defendida pela igreja e permanece intocada até os dias de hoje. Nota- se, inclusive, que era muito aplicada no período medieval ao furto necessário, conforme explica Jiménez de Asúa56:

Esta doutrina era a da igreja, permanecendo intacta até os dias de hoje, pois baseada em um dogma que a torna invariável. Durante a idade média alcançou grande fervor, aplicada exclusivamente ao furto necessário. Volta-se a encontrar nos escritos de teólogos e canonistas, cobrindo-a São Tomás de Aquino com sua autoridade indiscutível. Os publicistas que pertenceram à escola do contrato social a acolheram também. (tradução livre)

Trata-se de teoria com patente conotação teológica e filosófica, revelada pela igreja com supedâneo em textos bíblicos para autorizar o furto famélico. Nota-se, entretanto, pontual equívoco que não pode ser ignorado. Na passagem do evangelho de São Mateus e no evangelho de São Marcos, tem-se a narrativa de que Jesus Cristo andava, num sábado, com os seus discípulos, numa plantação de trigo, momento no qual estes apanharam algumas espigas para alimentar-se. Embora a conduta tenha sido reprovada pelos fariseus, visto ter acontecido num sábado, foi justificada por Jesus Cristo, que explicou não existir crime na conduta praticada.

Com base no episódio descrito, Francisco Graciano, afirmou em seu Decretum Gratiani que, em razão de Jesus Cristo ter inocentado os seus discípulos, que atuaram para saciar a fome,

56 ASÚA, Jiménez de. Tratado de derecho penal. 4 ed. Buenos Aires: Losada, 1964, v. 4. p. 310. “Esta doctrina fue la de la iglesia, manteniéndose intacta hasta nuestros días, puesto que está basada sobre un dogma que la hace invariable. Durante la Edad Media alcanzó gran favor, aplicada exclusivamente al hurto necesario. Se la vuelve a encontrar em los escritos de los teólogos y canonistas, cubriéndola Santo Tomás de Aquino con su autoridad indiscutible. Los publicistas que pertenecen a la escuela del contrato social la acogen también.”

Referências

Documentos relacionados

que sofrem transfiguração da forma, como ocorre nas obras de M. Contudo, o módulo na técnica do rapport também sofre uma transformação, mas esta resulta numa composição

Após a definição das melhores condições, que consistiram em banho de ultrassom como mecanismo de agitação, tempo de 2,5 min para a adsorção e 2,5 min para a dessorção

Para censurar a Sacy uma lacuna essencial da sua tradução, quer dizer aquilo que ela não mostrava suficientemente, Barcos tem uma palavra que poderia designar aquilo que Simon

Dada a atualidade da temática, o envelhecimento, e a importância que a família tem na promoção de um envelhecimento ativo, pretendo como o desenvolvimento deste estudo aprofundar

Quanto às suas desvantagens, com este modelo, não é possível o aluno rever perguntas ou imagens sendo o tempo de visualização e de resposta fixo e limitado;

Essa revista é organizada pela Sociedade Brasileira de Planejamento Energético (SBPE) e por isso foram selecionados trabalhos que tinham como objetivo tratar a

Os dados relativos à adição à Internet, em Portugal, apontam para um acesso à Internet cada vez mais generalizado, pois, segundo os dados do último relatório do

O presente estudo teve como objetivo descrever aspectos do funcionamento narrativo de crianças com diagnóstico de deficiência intelectual e alteração de linguagem