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3. DA EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE ESTADO DE NECESSIDADE

3.3 Fundamentos e natureza jurídica

3.3.1 Teorias da neutralização

As teorias da neutralização têm por objetivo neutralizar o estado de necessidade em relação às normas jurídicas, caracterizando-se um retorno à comunidade de bens e ao estado da natureza, alocar estado de necessidade fora do campo do direito penal ou preconizar a inutilidade prática da sua repressão.

3.3.1.1 Teoria da volta à comunidade de bens e ao estado da natureza

A teoria da volta à comunidade de bens e ao estado da natureza, abarcada nas lições de São Tomás de Aquino, foi defendida pela igreja e permanece intocada até os dias de hoje. Nota-se, inclusive, que era muito aplicada no período medieval ao furto necessário, conforme explica Jiménez de Asúa56:

Esta doutrina era a da igreja, permanecendo intacta até os dias de hoje, pois baseada em um dogma que a torna invariável. Durante a idade média alcançou grande fervor, aplicada exclusivamente ao furto necessário. Volta-se a encontrar nos escritos de teólogos e canonistas, cobrindo-a São Tomás de Aquino com sua autoridade indiscutível. Os publicistas que pertenceram à escola do contrato social a acolheram também. (tradução livre)

Trata-se de teoria com patente conotação teológica e filosófica, revelada pela igreja com supedâneo em textos bíblicos para autorizar o furto famélico. Nota-se, entretanto, pontual equívoco que não pode ser ignorado. Na passagem do evangelho de São Mateus e no evangelho de São Marcos, tem-se a narrativa de que Jesus Cristo andava, num sábado, com os seus discípulos, numa plantação de trigo, momento no qual estes apanharam algumas espigas para alimentar-se. Embora a conduta tenha sido reprovada pelos fariseus, visto ter acontecido num sábado, foi justificada por Jesus Cristo, que explicou não existir crime na conduta praticada.

Com base no episódio descrito, Francisco Graciano, afirmou em seu Decretum Gratiani que, em razão de Jesus Cristo ter inocentado os seus discípulos, que atuaram para saciar a fome,

56 ASÚA, Jiménez de. Tratado de derecho penal. 4 ed. Buenos Aires: Losada, 1964, v. 4. p. 310. “Esta doctrina fue la de la iglesia, manteniéndose intacta hasta nuestros días, puesto que está basada sobre un dogma que la hace invariable. Durante la Edad Media alcanzó gran favor, aplicada exclusivamente al hurto necesario. Se la vuelve a encontrar em los escritos de los teólogos y canonistas, cubriéndola Santo Tomás de Aquino con su autoridad indiscutible. Los publicistas que pertenecen a la escuela del contrato social la acogen también.”

restaram-se justificados todos os casos semelhantes. Todavia, esta questão sequer teria sido analisada por Jesus Cristo porque, pelas leis dos hebreus daquela época, não existia crime de furto para saciar a fome. A lição de Jesus Cristo, portanto, restringiu-se somente à violação do repouso sabático, que era sagrado naquele período.

Paul Foriers57 relata que esta teoria surge do espírito dos publicistas e dos internacionalistas com supedâneo no direito canônico. Paul Moriaud58, por sua vez, atribui esta teoria a Hugo Grócio, sob o postulado de que este prestou numerosas referências ao estado de necessidade e concebeu o instituto como uma regra de equidade, considerando que esta regra de equidade basear-se-ia em analisar, em cada situação de aplicação da lei, a necessidade de compactuá-la à natureza humana, uma vez que é aos homens que a lei se dirige.

Félix Marchand59, entretanto, discorda, afirmando que, em verdade, esta teoria revela-se consagrada nos escritos dos canonistas que precederam a Hugo Grócio. No que diz respeito ao seu fundamento, alega que o agente, encontrando-se em estado de necessidade, para resguardar a sua vida e os seus bens, pode servir-se de bens de outros, visto que a lei instituidora da propriedade privada desaparece nesses casos.

3.3.1.2 Teoria que aloca o estado de necessidade fora do direito penal

Jiménez de Asúa60 explica que a teoria na qual aloca o estado de necessidade fora do campo do direito penal foi arguida inicialmente por Johann Gottlieb Fichte. Enquanto este alocava o estado de necessidade fora do direito, os partidários modernos alocavam o estado de necessidade fora dos limites do direito penal. De qualquer forma, ter-se-ia uma teoria extremamente limitada porque somente concebia o instituto quando duas pessoas estivessem prestes a morrer ao mesmo tempo, o que, por si só, não resolvia as demais situações adstritas à matéria. Atualmente, não se aloca mais o estado de necessidade fora do direito, mas fora dos limites do direito penal e, ainda, a concepção dos modernos autores não se baseia apenas naquelas premissas de Johann Gottlieb Fichte, mas se mescla com outras situações.

57 FORIERS, Paul. L’état de nécessité em droit penal. Paris: Librairie Du Recueil Sirey, 1951. p. 107.

58 MORIAUD, Paul. Du délit necessaire et de l’état de nécessité. Geneve-Paris: Burkhardt, 1889. p. 128.

59 MARCHAND, Félix. L’état de nécessité em droit penal. Paris: Arthur Rousseau Editeur, 1902. p. 150.

60 ASÚA, Jiménez de. Tratado de derecho penal. 4 ed. Buenos Aires: Losada, 1964, v. 4. p. 310.

Paul Moriaud61 revela que esta teoria tem o seu mérito de suprimir a conceituação do estado de necessidade das bases do direito, considerando-o, conforme Johann Gottlieb Fichte, um fenômeno raro em que suas situações particulares devem ser solucionadas com os princípios gerais. Entretanto, pode-se criticar esta teoria porquanto a inviabilidade da coexistência de indivíduos na presença do estado de necessidade sequer dispensa o direito de ocupar-se desse conflito.

3.3.1.3 Teoria da inutilidade prática da repressão

A teoria da inutilidade prática da repressão reconhece o caráter de antijuricidade do estado de necessidade. Entretanto, pressupõe que o estado de necessidade deva resguardar-se impune sob o fundamento de que a sanção imposta à conduta praticada sob o estado de necessidade estaria carente de utilidade pública ou social, bem como não alcançaria o objetivo a que se destina. A severa crítica que se atribui a esta teoria é a de que não há como se pensar, a priori, se a existência de uma sanção influenciaria o agente afastando-o da prática de uma conduta necessária.

Paul Foriers62 explica que esta é uma das primeiras teorias que estabelecem a não punibilidade da conduta em estado de necessidade, uma vez que tal fato não teria evidente utilidade pública ou social. Paul Moriaud63 diz ser a principal ideia desta teoria a de que a punibilidade da conduta em estado de necessidade seria carente de qualquer utilidade pública ou social e que a sanção, supostamente aplicada, não atenderia aos objetivos a que se propõe, quais sejam, o restabelecimento da ordem social, a prevenção e a recuperação, visto que seus objetivos já seriam observados, sem que se precisasse recorrer à repressão.

Félix Marchand64 revela que esta teria tem por escopo a ideia na qual a comunidade tem o direito de sancionar todas as condutas que têm interesse de reprimir e o direito de intensificar indefinidamente as sanções de acordo com o perigo social que essa conduta representa. No entanto, se a sanção de uma conduta em estado de necessidade é carente de utilidade pública ou social, a aplicação de uma sanção não é útil aos objetivos a que se propõe.

61 MORIAUD, Paul. Du délit necessaire et de l’état de nécessité. Geneve-Paris: Burkhardt, 1889. p. 128.

62 FORIERS, Paul. L’état de nécessité em droit penal. Paris: Librairie Du Recueil Sirey, 1951. p. 123.

63 MORIAUD, Paul. Du délit necessaire et de l’état de nécessité. Geneve-Paris: Burkhardt, 1889. p. 213.

64 MARCHAND, Félix. L’état de nécessité em droit penal. Paris: Arthur Rousseau Editeur, 1902. p. 79.