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4. EVOLUÇÃO HISTÓRICA: DO ESTADO DE NECESSIDADE NO DIREITO PENAL

4.1 Povos Indígenas

Os portugueses se abstiveram da tarefa de colonizar o Brasil aproveitando-se da solidariedade dos povos indígenas. Em verdade, os portugueses optaram por não se valer da hospitalidade conferida pelos povos indígenas porquanto acreditavam ser muito mais útil dominá-los pelo uso da força. Desde o descobrimento do Brasil os povos indígenas foram vistos pelos europeus somente com traços de barbárie.

José Henrique Pierangeli93 discorre sobre o tema:

Quando se processou a colonização do Brasil, as tribos aqui existentes apresentavam diferentes estágios de evolução. Os tupis apresentavam um desenvolvimento superior ao dos tapuias, estes chamados por aqueles de bárbaros. Toda ideia de direito penal que se possa atribuir aos indígenas está ligada ao direito costumeiro e afirma-se que nele se encontram a vingança privada, a vingança coletiva e o talião. A guerra nunca era movida por motivos econômicos, pelo menos até o descobrimento. O motivo das hostilidades era capturar prisioneiros para os ritos antropofágicos, a tomada de troféus ou para vingar os parentes mortos. As crianças eram castigadas para que aprendessem

92 BITENCOURT, Cesar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 26 ed. São Paulo: Saraiva, 2021, v. 1.

p. 431.

93 PIERANGELI, José Henrique. Códigos penais do Brasil: evolução histórica. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 6

a urbanidade. A polidez e o respeito mútuo eram encarados como a forma ideal para dirigir a vontade dos filhos e incitá-los aos exemplos dos mais velhos. Em algumas tribos havia o casamento monogâmico, contudo, a poligamia era constante, sendo que as famílias tinham, na maioria das vezes, como base o sistema patriarcal e o parentesco só se transmitia pelo lado paterno. Observou-se, entretanto, vestígios de poliandria – o casamento de uma mulher com vários homens.

Michel Eyquem de Montaigne94, em seu ensaio Des cannibales, bem relata acerca da natureza dos povos indígenas, proclamando algumas de suas características importantes e rechaçando, com veemência, a ideia de barbárie e de incivilidade. Nota-se, inclusive, que ao alocar a questão de quem verdadeiramente são os bárbaros, o filósofo institui o relativismo na cultura europeia do século XVI, em face dos povos do Novo Mundo. Ao propor que cada um chame de barbárie àquilo que não faz parte de seus próprios hábitos, nega a conotação objetiva desse conceito, para ressaltá-lo como categoria de avaliação. Enfim, bárbara não é uma cultura nem são bárbaros determinados costumes. Trata-se, em verdade, de um juízo acerca do outro, aquele outro que não se parece conosco:

Mas, retornando ao assunto, não vislumbro nada de bárbaro ou selvagem no que dizem daqueles povos; e, na verdade, cada qual considera bárbaro o que não se realiza em sua terra. E é natural, porque só podemos julgar da verdade e da razão de ser das coisas pelo exemplo e pela ideia dos usos e costumes do país em que moramos. Neste, a religião é sempre a melhor, a administração excelente, e tudo o mais perfeito. A essa gente chamamos selvagens, como denominamos selvagens os frutos que a natureza produz sem intervenção do homem. No entanto aos outros, àqueles que alteramos por processos de cultura e cujo desenvolvimento natural modificamos, é que deveríamos aplicar o

94 MONTAIGNE, Michel Eyquem de. The complete essays. California: Stanford University Press, 1958. p. 36.

“Now, to return to my subject, I think there is nothing barbarous and savage in that nation, from what I have been told, except that each man calls barbarism whatever is nit his own practice; for indeed it seems we have no other test of truth and reason than the example and pattern of the opinions and customs of the country we live in. There is always the perfect religion, the perfect government, the perfect and accomplished manners in all things. Those people are wild, just as we call wild the fruits that Nature has produced by herself and in her normal course;

whereas really it is those what we have changed artificially and led astray from the common order, that we should rather call wild. The former retains alive and vigorous their genuine, their most useful and natural, virtues and properties, which we have debased in the latter in adapting them do =gratify our corrupted taste. And yet for all that, the savor and delicacy of some uncultivated taste of those countries is quite excellent, even to our taste, as that of our own. It is no reasonable that art should win the place of honor over our great and powerful mother Nature. We have so overloaded the beauty and richness of her works by our inventions that we have quite smothered her.”

epíteto. As qualidades e propriedades dos primeiros são vivas, vigorosas, autênticas, úteis e naturais; não fazemos senão abastardá-las nos outros a fim de melhor as adaptar ao nosso gosto corrompido. Entretanto, em certas espécies de fruto dessas regiões, achamos um sabor e uma delicadeza sem par e que os torna dignos de rivalizar com os nossos. Não há razão para que a arte sobrepuje em suas obras a natureza, nossa grande e poderosa mãe [...] Esses povos não me parecem, pois, merecer o qualificativo de selvagens somente por não terem sido senão muito pouco modificados pela ingerência do espírito humano e não haverem quase nada perdido de sua simplicidade primitiva.

(tradução livre)

As relações jurídicas dos povos indígenas eram baseadas nos costumes e nas tradições, não se exigindo a violência física para que fossem observadas. Entre os povos indígenas existia uma série de crimes que eram punidos fielmente como, por exemplo, o homicídio, as lesões corporais, o furto, o rapto e a deserção, conforme explica Waldemar Martins Ferreira95:

Dessarte, o direito, como num todo e também o direito penal, era encontrável na consciência dos índios, e que, forjado nos costumes e tradições, era sempre religiosamente respeitado. [...] Entre os indígenas brasileiros, havia uma série de crimes que eram punidos exemplarmente, e entre eles podemos alinhar o homicídio, as lesões corporais, o furto, o rapto, a deserção.

O rapto entre tribos diversas era considerado crime hediondo, uma vez que a ofensa não se atrelava à vítima, mas à tribo como um todo. E mais: se o rapto fosse realizado dentro da mesma tribo, o agente era sujeito à pena de morte.

Os homicídios e as lesões corporais, por sua vez, eram rigidamente punidos, levando-se em consideração que os povos indígenas protegiam o ser humano em sua vida e em sua integridade física e psíquica. Na hipótese de homicídio, a pena era a de morte, quando praticado entre membros da mesma tribo, mas levava à guerra, quando praticado entre membros de tribos diversas. Na hipótese de lesão corporal, as penas eram executadas pela própria família do ofendido, razoáveis ao prejuízo causado e em semelhante região do corpo atingido.

95 FERREIRA, Waldemar Martins. História do direito brasileiro. São Paulo: Freitas Bastos, 1952. v. 2. p. 230.

O aborto, enfim, era realizado livremente e utilizado pela mulher grávida em oposição ao marido que a violasse, enquanto o infanticídio era realizado pelo homem, uma vez constatada a infidelidade por parte da mulher. Os furtos eram raros, mas sujeitos à pena de açoite.

Nota-se, portanto, que o direito dos povos indígenas era fielmente fundamentado nos costumes e nas tradições, alterando-se de tribo para tribo, bem como de região para região, em que pese existir enorme controvérsia quanto aos verdadeiros costumes e tradições dos povos indígenas do ponto de vista eminentemente jurídico.

De maneira geral, afirma-se que se encontra fortemente enraizado na cultura dos povos indígenas o instinto de preservação e de defesa de sua tribo, tendo como norte a importância que dispendiam aos crimes de deserção. Pode-se dizer, nos termos de José Henrique Pierangeli96, que a defesa da tribo manifestava um verdadeiro encargo natural e normal para todo homem adulto.

Por fim, José Henrique Pierangeli97 explica que o direito dos povos indígenas, pelo seu primitivismo, em nenhum momento sequer tornou a influir no desenvolvimento do ordenamento jurídico subsequente. Isso porque, os portugueses, quando chegaram ao Brasil, arraigaram-se nas terras descobertas, com muita superioridade física e cultural, implantando seu direito sem maiores delongas.

É o que revela Aníbal Bruno98:

As práticas punitivas das tribos selvagens que habitavam o país em nada influíram, nem então, nem depois, sobre a nossa legislação penal. Em grau primário de cultura, esses povos, que os conquistadores subjugavam brutalmente, interrompendo o curso natural do seu desenvolvimento autônomo, não poderiam fazer pesar os seus costumes sobre as normas jurídicas dos invasores, que correspondiam a um estilo de vida política muito mais avançado.

96 PIERANGELI, José Henrique. Códigos penais do Brasil: evolução histórica. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 60.

97 PIERANGELI, José Henrique. Códigos penais do Brasil: evolução histórica. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 6.

98 BRUNO, Aníbal. Direito penal: parte geral. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978, v.1. p. 169.