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Não podemos deixar de apresentar um exemplo típico que ocorreu numa das visitas ao campo2, onde percebemos um

2 Dentro da metodologia da minha tese de doutorado, estava prevista a visita a to- das as Igrejas Neopentecostais do Parque Religioso de Porto Alegre. Este artigo surgiu de uma transcrição do final do culto do meio-dia na Igreja Internacional da Graça de Deus no dia 05/03/2014, na Av. Júlio de Castilhos, 492, centro de Porto Alegre, pelo missionário Alcides Ademar Bayer, que incentivava os obrei- ros a usarem a máquina de cartão de crédito para pagar o dízimo e fazer ofertas. Como a cerimônia é aberta e pública, sem restrições de gravação, registrei em áudio para poder obter todos os detalhes das falas.

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tipo de pedagogia usada para a cobrança online. Observar a re- lação do dinheiro com a religião no seu devido afastamento não é tarefa fácil. Muitos chegam pela primeira vez à igreja e acabam se chocando, não aderindo à prática; para outros, é a coisa mais natural. Mas, como elucida Mauss, isto não é um fenômeno novo, pelo contrário, muito antigo, só que naquela época primitiva as moedas eram outras:

Eles nos permitem conceber que esse princípio de troca-dádiva deve ter sido o das sociedades que ultrapassaram a fase da “prestação total” (de clã a clã e de família a família), mas que ainda não chegaram ao contrato individual puro, ao mercado onde circula o dinheiro, à venda propriamente dita e, sobretudo, à noção de preço calculado em moe- da pesada e reconhecida (MAUSS, 2013, p. 81).

Relatamos aqui uma das mais atualizadas formas de arrecadação, ou doação, em um ambiente religioso. Como par- te da minha metodologia de tese de doutorado, estava visitando durante uma semana a Igreja Internacional da Graça de Deus, na Av. Júlio de Castilhos, 492, Centro de Porto Alegre. Como ouvinte participante, acompanhei diversos cultos em horários diferen- tes com missionários e pastores alternados, todos com gravação digital. Adotei este procedimento de registro pela sua captação de detalhes e fidelidade na transcrição, além de me liberar para acompanhar os gestos e a cerimônia. Tenho por hábito participar das reuniões, misturar-me no meio de todos para ver de outros ângulos; a carga de observação é muito maior. Nesse dia, quem ministrou o culto foi o missionário Alcides. Essa é a chamada hora do dízimo e da oferta, um momento que antecede o final da reunião. Prestemos atenção na sua fala, transcrita abaixo:

- Quem é que ama esta obra de Deus verdadeira- mente e ama este ministério? Então dê a sua oferta agora, se você ama, se você entende que esta obra é uma obra de Deus, pegue a sua oferta com a sua mão que eu vou abençoar, pegue o seu dízimo tam- bém, pegue tudo na sua mãozinha que eu quero abençoar, não quero atrasar muito a reunião, pois

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sei que a reunião do meio-dia tem muita gente que sai do trabalho e não pode chegar atrasado (risos). Até que pode levar uma advertência no trabalho. Se bem que tem muita gente chegando do feriado em Porto Alegre, estava meio parado de manhã, tem muita gente de férias. Levante a sua oferta, o seu dízimo, nem que seja uma moeda. Missionário, o que eu tenho é uma moeda, não tem importância, é a oferta da viúva pobre, né, que Deus vai aceitar e vai te abençoar. Pai, em nome de Jesus eu abençoo, Pai, a vida de todas essas pessoas. Se essa obra, Pai, se nós estamos pregando aqui o Evangelho, é para esse fiel, Pai, pessoas que demonstram res- peito e amor pela tua palavra, e que contribuem para a tua obra, estas pessoas, Pai, o Senhor vai prosperar e abençoar em nome de Jesus. Talvez hoje estas pessoas não tenham, mas Deus, eu abençoo da mesma forma elas, eu creio que na próxima reunião ela trará sua oferta de amor e de gratidão a ti, Pai. Em nome do Senhor Jesus, amém. Amém? Podem colocar na sacola, os obreiros vão passando, se você precisa dar o seu dízimo, talvez você passou no banco e o banco estava fechado, aí tem a maquininha aí, com a obreira aí, e aí você dá o seu dízimo tranquilamente, põe o valor aí, faz a transferência, e depois pega aquele canhotinho ali, certo? É o dízimo aí, pode-se desta forma entre- gá-lo na igreja, em nome de Jesus. Daí não precisa você ir ao banco, estar assim se expondo, corren- do o risco, aqui na igreja tem a maquininha para fazer a oferta, pagar o dízimo, e facilita bastante o nosso dia a dia. Sabe que poucas pessoas hoje carregam dinheiro. Passei agora num restaurante, passei o cartão, passei no posto de gasolina, aceita, né? Vai na loja, aceita, até taxista já tem maquini- nha de cartão. Estes dias peguei um táxi ali, daí eu vi ele com a maquininha, daí eu disse: Oh, rapaz, agora tá bom para trabalhar, né? Vocês não cor- rem o risco de ser assaltado, daí ele me disse: - Eu não gostei, não gostei. Daí eu perguntei: Ora, não gostou por quê? Não gostei pois eu trabalho por comissão, ou seja, com a maquininha eu não posso

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roubar (risos); só para o senhor entender, com a minha comissão que eu ganho é 35%, mas não dá, desse jeito não dá. E eu fiquei pensando, é, rapaz, tu tá roubando o teu patrão, e com a maquininha tu não rouba (risos). Aí eu pensei, meu Deus, eu tô andando com um ladrão aqui, o motorista aqui, misericórdia, tá amarrado (risos), em nome de Jesus. Tá roubando o patrão e é brabo, né, gente? (Transcrição literal).

Diante desta narrativa, insiro uma tentativa de dialogar com o ato de doar. Nosso artigo também se propõe analisar estas doações através das chamadas novas tecnologias e tentar enten- der a forma de interpretação e apropriação realizada pelas pes- soas que, de certa forma, reagem naturalmente ao novo, tirando proveito do invento. É claro que o espaço é curto para continuar- mos descrevendo a história da relação do homem com o sagra- do, suas trocas materiais e até financeiras, mas continuamente afirmando que o homem possui a necessidade de comunicação, seja entre seus pares ou mesmo em relação aos seus deuses. Podemos ainda afirmar que sempre houve trocas no ambiente religioso, que, independentemente dos meios ditos modernos, não se alteraram as intenções, e onde surgiu uma forma de me- diação, a religião apropriou-se dela para continuar a comunica- ção com seus interessados, os fiéis e o mundo dos mortos. Com efeito, são os deuses os verdadeiros proprietários das coisas e dos bens do mundo. Com eles era mais necessário intercambiar e mais perigoso não intercambiar (MAUSS, 2013, p. 31).

Como pesquisamos mídia e religião, não conseguimos fugir do tema, diante de uma situação que nos provocou questio- namentos – o dízimo, o cartão de crédito e o método pedagógico para inserir este novo meio em outro, de uma forma muito tran- quila. Através de parábolas atuais, o pastor missionário vai de- monstrando o uso do dispositivo e convencendo as pessoas a digi- tar na “maquininha”, falando somente das vantagens que ela pro- porciona. Assim se dão as trocas, não somente as simbólicas, mas também as financeiras e a da contribuição online, que acontece de verdade, ultimada numa transação mercantil de um resultado de uma motivação religiosa. Além disso, essa maquininha produz

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sentido, pois é mediadora de uma intenção, que deixa marcas, que não deixa dúvidas tanto para quem dá como para quem recebe; além do ato de doar, ela registra o recibo que comprova diante do destinatário, que é Deus, que o seu valor está em um lugar segu- ro e comprovado. Aqui há a quebra do versículo bíblico: 3 “Mas, quando você der esmola, não saiba a sua mão esquerda o que está fazendo a direita” (Mateus, cap. 6, vers. 3, citado conforme a Bíblia e Harpa Cristã). É a máquina mediando entre o mundo profano do capital e o do sagrado. Colocar a mão no bolso e doar foi substi- tuído pela digitação. Do ponto de vista das intenções não mudou nada; o status continua, talvez somente a discrição que foi afetada. Mas com certeza, se algum dia haver um acerto de contas com Deus quanto ao pagamento do dízimo e a contabilidade “não fe- char”, basta apresentar os recibos.

Como Proulx afirmou, na transação mercantil se depo- sita alguma coisa e se tira proveito disso. O usuário é produtor de conteúdo e fornecedor de dados, pois, ao produzir conteúdo, ela deixa rastros com informações captadas. Assim ocorre quan- do se introduz o cartão magnético na “maquininha” – vamos continuar chamando assim o que sabemos que é uma leitora de cartões de crédito que envia dados ao banco, creditando ou de- bitando valores em moeda virtual. É uma forma de moeda que substitui a nota impressa em papel, mas nunca se deve esquecer que o limite é de acordo com o saldo disponível na conta e este valor dependerá do quanto recebemos e economizamos para tal fim. O agente desta operação vai deixando rastros, como infor- mações ao banco, ao fornecedor, ao governo, à administradora do cartão e ao cliente. Ao final, permanece uma dúvida: será que é uma metodologia tão segura assim? E os clones, golpes de lei- tura de senhas, etc.? Será que o sistema de controle por parte do Estado, falta de privacidade, não estariam em primeiro lugar? O que é inegável é que a moeda é virtual. Sua materialidade se tornou algoritmos, tanto no ganho como no gasto. Aquela sen- sação de pegar, contar o dinheiro no caixa está se extinguindo. O controle não é mais seu, e sim de alguma empresa que cobra para administrar o que você possui para gastar, e todo excesso custará muito caro.

Esse é um tema polêmico que provoca indagações teo- lógicas que não discutiremos aqui. Nossa intenção é entender

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o processo diante do seu simbolismo na troca, sua intenção nesta perspectiva, deixando de lado o campo econômico, que também não é nossa seara. Como seria ingênuo de nossa parte acharmos que tudo iniciou agora, tentaremos voltar ao pas- sado para entendê-lo à luz da história. No Egito antigo, o cos- tume de cobrar pelos serviços religiosos já existia, e tais prá- ticas foram se aprimorando e permaneceram até nossos dias. Assim, afirmamos que cobrar dentro de um templo não é uma invenção que chegou com o advento das chamadas igrejas mi- diáticas; elas somente foram se atualizando quanto às formas de cobrança.

Mas de onde surgiu a iniciativa de atrelar o econô- mico à fé? Era costume entre os egípcios, na época dos faraós, encomendar desde cedo aos escribas um livro em forma de papiro que era desenhado com ricas ilustrações; este texto tinha por intenção ensinar o defunto mumificado, conforme a crença daquele povo que acreditava levar seu corpo físico para o mundo espiritual. Como lá o morto iria encontrar mui- tos entraves e perigos até chegar aos Campos Elísios, com a ajuda deste livro superaria sua trajetória pós-morte. Contudo, tal aquisição não era possível para as classes sem recursos fi- nanceiros. Uma pessoa considerada de classe média tinha que economizar muito para adquiri-lo, e, conforme seu poder aqui- sitivo, poderia conseguir um livro com mais ou menos qualida- de. Todo este comércio de livros sob encomenda movimentava dezenas de escribas contratados para copiar e desenhar um manual chamado de Livro Egípcio dos Mortos. Teríamos ali o início do mesmo procedimento que houve na Idade Média em relação aos monges copistas. Tais rolos de papiro eram colo- cados na tumba ao lado do morto, como uma espécie de guia; ao lê-lo, preparava-se para enfrentar o desconhecido mundo dos mortos.

A cópia mais antiga do Livro dos Mortos, feita em papiro, que hoje sabemos existir, foi a escrita para Nu, filho do “intendente da casa do selo, Amen- hetep, e da dona da casa, Senseneb”; valiosíssimo documento, que não pode ser posterior aos pri- mórdios da XVIIIª Dinastia (BUDGE, s. d., p. 21).

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O Livro dos Mortos é uma prova da necessidade de me- diação no âmbito religioso entre mundos, ou seja, o dos vivos e o dos mortos. Diante de narrativas históricas, podemos inferir também um grande esforço de mediação entre tais desenhos e hieróglifos, alimentando o imaginário religioso daquelas pes- soas. Percebe-se também que a necessidade de mediação não se dava somente entre os vivos, mas principalmente entre vivos e mortos e também no pós-morte. Dessa necessidade surge uma tradição religiosa que aprimora as técnicas ritualísticas e, con- comitantemente, surgem aparatos para consumo e profissionais da religião, especialistas que dominam um assunto sagrado, o que os torna pessoas “mais especiais”. Entretanto, além do espe- cialista religioso, a escrita e o suporte para registrá-lo também se completavam, ou seja, eram naqueles tempos longínquos os primórdios de uma religião mediatizada. Ainda citando o Antigo Livro dos Mortos, vamos encontrar a seguinte afirmação:

Em tempos muitos remotos, os egípcios convocavam o religioso profissional para pronunciar palavras de bom augúrio diante do cadáver do parente ou amigo, e mais tarde se acreditou que as mesmas palavras, escritas em alguma substância e enterradas com o morto, eram eficazes na obtenção, para ele, das boas coisas da vida de além-túmulo. No texto encontrado na pirâmide de Unas (1.583) faz-se referência a algo escrito que se supunha pertencer ao falecido, nas seguintes palavras: - “O osso e a carne sem escrita são desgraçados, mas eis que a escrita de Unas está debaixo do grande selo e eis que ela não está debaixo do pequeno selo.” E no texto encontrado na pirâmide de Pepi I, as palavras: “O uraeus deste Pepi está sobre a sua cabeça, com uma escrita de cada lado, e ele tem palavras de poder mágico a seus pés; assim equipa- do, o rei entra no céu” (p. 42; grifo nosso).