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5.2. Contribuições da Abordagem Articulatória

5.2.1 Algumas propostas gerais

Ao apresentarmos anteriormente as considerações de Richard Miller sobre os aspectos positivos e negativos em relação ao uso do IPA aplicado ao canto verifi-

camos a consideração do autor sobre os benefícios que o recurso da representação fonética pode trazer para o cantor, desde que ele atente para as diferenças a serem observadas em relação às sutis diferenças que as articulações vocais representadas por um mesmo símbolo fonético podem ter no contexto das diferentes línguas. So- memos a estas considerações duas outras questões muito bem levantadas em MILLER (1996, pp. 47-52) com relação à dicção aplicada ao canto, que considera- mos serem muito valiosas no âmbito da dicção do PB Cantado e das contribuições da abordagem articulatória às orientações de uso deste padrão de pronúncia.

A primeira delas diz respeito às características observadas por Miller quanto às relações entre a articulação da fala e do canto, observações apresentadas na forma de uma discussão sobre duas máximas que o autor atribui à tradicional Escola Italiana: “si canta come si parla” e “chi pronuncia bene, canta bene”131. Miller suma- riza a sua consideração sobre o tema por meio de dois pontos de vista que se con- trapõem e complementam:

• Ao compreendermos as referidas máximas no sentido de que a fala bem articulada da língua italiana estaria relacionada à boa definição das articulações vocálicas em equilíbrio com as articulações consonantais do seu entorno, bastaria considerarmos que os mesmos princípios anátomo-fisiológicos subjazem a mecânica articulatória da língua italiana e das demais línguas às quais se aplicam o canto no ocidente e, nesse sentido, concluirmos a validade e atualidade pedagógica daquelas proposi- ções.132

• Entretanto, uma vez que o canto apresenta demandas diferenciadas em relação a uma série de aspectos característicos da fala – dentre os quais a definição das ca- racterísticas das vogais no âmbito de uma ampla tessitura e a ampliação dos parâ- metros de duração temporal, intensidade sonora sons articulados, bem como um maior e mais específico detalhamento no tratamento timbrístico – a compreensão do canto como uma direta extensão da fala estaria limitada ao âmbito fonético- articulatório.

131 Respectivamente ‘se canta como se fala’ e ‘quem pronuncia bem canta bem’. (cf. MILLER, 1996, pp. 47 a 52; idem, 2003, p. 84, tradução nossa)

132 Exceto, conforme Miller mesmo observa, nos casos de técnicas que defendam as abordagens não fonéticas para o desenvolvimento dos ajustes do trato vocal (Cf. MILLER, 1996, p.50).

A segunda consideração (na verdade, um conjunto de considerações) está justamente neste ponto de equilíbrio da relação entre o canto e a fala, lugar no qual podemos ter maior visibilidade sobre as contribuições da abordagem articulatória no contexto do uso dos padrões referenciais de pronúncia, tais como o PB Cantado133. Trata-se das considerações sobre as dinâmicas de articulação relacionadas à defini- ção das vogais. Portanto, embora trate de questões fonético-articulatórias, o enfoque deste conjunto de considerações se orienta mais especificamente às implicações da dicção em âmbito mais amplo que o da inteligibilidade das palavras. Orienta-se à confluência dos processos fonético-articulatórios e respiratórios, e a relação destes processos com a produção do legato.

A realização do legato134 tem base na precisa articulação das vogais e, con- sequentemente, nos efeitos da articulação das consoantes vozeadas e não vozea- das sobre a realização das vogais. Com base nos modelos relacionados à aborda- gem articulatória podemos ter uma visualização mais clara das considerações de MILLER (1996, pp. 20-25) aplicadas a alguns contextos do PB:

• A desconsideração do peso moraico na posição do ataque contribui para evitar maneirismos articulatórios tais como os apresentados abaixo, entretanto, impedir que as consoantes (vozeadas ou não) atuem nesta posição como um transiente bem articulado e orientado à boa formação da vogal nuclear. O gráfico abaixo mostra uma representação do efeito resultante da atribuição de peso moraico à consoante do ataque da sílaba <meu>. A tendência é que a consoante passe a ser compreen- dida prosodicamente como a coda da sílaba anterior. Se a ideia é a de promover uma ênfase na posição do ataque, é certo que isso provoca algum atraso neste transiente. Mas qualquer variação agógica no transiente do ataque independe da atribuição do peso moraico. Se a mora pesa, a escuta configura como uma coda passada ou então provoca alguma tensão rítmico-prosódica135.

133 Do mesmo modo como poderia estar relacionada a similares padrões referenciais de pronúncia no âmbito de qualquer língua.

134 O conceito de legato (ligado), que transpassa as pedagogias do canto da antiguidade à moderni- dade, corresponde a uma das duas características gerais de articulação das notas musicais no contí- nuo melódico, sendo a outra o staccato (destacado. MILLER (1996, p. 19) chama a atenção para o fato de que o legato no canto depende diretamente do domínio do uso do appoggio. Por sua vez, o

appoggio diz respeito ao controle respiratório nos âmbitos subglótico (relacionado à fonação) e su-

praglótico (relacionado à articulação).

135 O exemplo extraído do verso ‘O meu amor mora longe’, da “Cantiga do ausente”, de Claudio San- toro, texto de Vinicius de Moraes.

Figura 55. O ataque sem peso moraico.

• A consideração dos pesos moraicos na posição da coda contribui para definir a du- ração relativa das consoantes (para que elas possam cumprir o seu papel de transi- entes em relação as articulações posteriores) e, ainda, possibilitando maior controle do movimento da vogal nuclear anterior (como vimos na figura 57, por exemplo).

• A consideração dos pesos moraicos na posição do núcleo e da coda podem cola- borar para o tratamento dos processos de nasalização, permitindo a subdivisão das fases orais e nasais da vogal nasal e organizando as possibilidades interpretativas dos fonemas nasais e processos de nasalização (como vimos na figura 60, por exemplo).

• A consideração dos pesos moraicos da vogal nuclear e da coda também colabo- ram pedagogicamente para o desenvolvimento de competências de controle sobre a realização de vogais longas e consoantes duplas no contexto das línguas em que a ocorrência ou não destes traços possa modificar o significado das palavras, como nos casos do alemão e do inglês (em relação às vogais) e do italiano (em relação às consoantes)136. Podemos ver exemplos destas ocorrências nas figuras 51 e 52.

• Os seguintes fatores colaboram para esclarecer o tratamento articulatório dos di- tongos e tritongos: a compreensão de que apenas uma vogal ocupa o lugar do nú- cleo silábico; a definição do papel fonético/fonológico das aproximantes no âmbito 136 (cf. MILLER, 1996, p. 21). >ࡱ ortografia fonética rítmica < o meu amor> >ࡱਥPHZDਥPRU@

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A C C Nu V µ µ Cd C C µ µ

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da sílaba; a definição sobre a dinâmica das moras (desconsiderada no ataque e hie- rarquizada na coda). O gráfico abaixo mostra uma representação de um efeito de tritongo, resultante de dois processos de ditongação externa, no entorno do monos- sílabo <a>. O compositor justapõe apenas uma nota a estas três sílabas. Mais adi- ante veremos os casos de ditongação no contexto dos demais casos de ressilaba- ção137.

Figura 56. Ditongos e tritongos.

Ao apresentarmos no Cap. 1.3 as observações de De’ATH (2013) com rela- ção ao uso do IPA aplicado ao canto, pudemos verificar que ele estabelece o seu enfoque mais especificamente relacionado à questão da articulação das línguas can- tadas. Verificamos a grande preocupação do autor com o esclarecimento sobre as limitações da transcrição fonética quando consideramos de maneira restrita e imedi- ata a relação entre as articulações vocais e determinados símbolos fonéticos. Com- preendemos que este uso restrito é ineficiente sobretudo quando se aplica sem a consideração de alguns importantes aspectos conceituais (como veremos a seguir) e sem a recorrência a algum padrão referencial de pronúncia (tal como o PB canta- do).

As ocorrências destacadas pelo autor como sendo aspectos obscuros da re- presentação do IPA podem ser melhor compreendidas no contexto do PB a partir do modelo de representação silábica da abordagem articulatória, uma vez que o mode-

137 O exemplo foi extraído do verso ‘Dorme a estrela no céu’, da canção “Acalanto da rosa” de Clau- dio Santoro, texto de Vinicius de Moraes.

a ortografia fonética rítmica < dorme a estrela> >ਥGɬUPMDMVਥWUHOĻ@

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A C C Nu V µ µ Cd C C µ µ

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lo da sílaba verbal que forma a sílaba melódica nos permite a consideração de dife- rentes graus de detalhamento:

• A ocorrência de alofones, ou seja, variações fonéticas de um mesmo fonema por razões contextuais, de ordem dialetal ou relacionada a um caráter pessoal de pro- núncia138 . Observe-se, entretanto, que os usos de [x] e [ʃ] abaixo não correspondem às soluções propostas pelo PB Cantado.

Figura 57. Alofones na posição da coda.

• A ocorrência de coarticulações, ou seja, de influências que um determinado seg- mento pode sofrer ou causar, contextualmente, em relação ao segmento anterior ou seguinte do contínuo139:

138 O exemplo foi extraído do verso ‘Ser feliz, bem feliz’, da canção “Em algum lugar” de Claudio San- toro, texto de Vinicius de Moraes

139 O exemplo foi extraído de “Toada pra você” de Lorenzo Fernandez, com texto de Mário de Andra- de. [l ortografia fonética rítmica < ser feliz > >VHUIHਥOLV@ A C C Nu V µ µ Cd C C µ µ

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Figura 58. Coarticulações.