• Nenhum resultado encontrado

5.1 O português brasileiro como referência

5.1.1 As características do PB Cantado

Se as transcrições fonéticas dependem da interpretação que fazemos sobre as possibilidades de relacionar os sons articulados pela voz aos elementos gráficos que melhor os representam, é importante destacar que os contextos de uso desem- penham um papel importante em relação à eficiência destas transcrições. De manei- ra similar àquela pela qual concebemos os âmbitos da linha e do ponto como duas perspectivas de um mesmo cenário, os contextos de uso das transcrições fonéticas

128 Um número grande de exemplos sobre esta questão permeia o dia a dia das aulas de dicção. Para citar alguns envolvendo as pronúncias estrangeiras ao PB: a realização de vogais sempre abertas para atender a uma premissa sobre a pronúncia cantada do latim romano; a realização de consoan- tes duplas, a não atenuação das vogais finais de paroxítonas, a não nasalização das vogais seguidas por codas nasais no latim, italiano, espanhol, inglês, alemão (e mesmo no francês, esta nasalização tem caráter distinto do PB); a labialização da vogal [e] e a compreensão sobre a natureza distinta dos nasais, no francês; a aspiração do ataque das plosivas, os fonemas [ɪ] em posição tônica, no inglês e alemão; as fricativas bilabiais no espanhol e no português europeu (aliás o português europeu tem uma vogal que não existe no PB). Para dar ao menos um exemplo sobre um contexto não verbal, to- mamos a liberdade de narrar uma cena: o professor diz para o aluno falar [a], e o aluno fala [a], em seguida o professor diz para o aluno cantar [a] e ele canta outra coisa, que com sorte pode até ser algum tipo de /a/ (lembrando que entre barras temos a transcrição fonológica).

também nos oferecem e por vezes exigem uma distinção entre representações mais amplas e mais estritas dos elementos acústicos/articulatórios a serem representa- dos. Em outras palavras, representações com diferentes graus de estritura, são ca- pazes de dar conta das possíveis generalizações ou especificações .

Os quadros 1 a 6, abaixo, mostram diferentes graus de estritura para uma representação do monossílabo <em>, no contexto do verso ‘Toda essa alegria se mudasse em dor’, retirada de “Modinha” (Seresta nº 5), de Heitor Villa-Lobos, com texto de Manduca Pia (Manuel Bandeira).

Note-se a evolução do grau de estritura do quadro 1 ao 6. No quadro 1 se- gue-se a proposta das normas do PB Cantado; no quadro 2 há uma divisão entre as fases oral e nasal da vogal nasal, ocupando o espaço das duas moras do núcleo si- lábico; no quadro 3 apresenta-se em detalhe a ocorrência de processo de ditonga- ção decorrente da nasalização/posteriorização; no quadro 4 a nasalização evolui pa- ra a segunda mora da coda com a realização de consoante nasal (também presente na ortografia, entretanto, posteriorizada; no quadro 5 uma alternativa ao quadro an- terior na qual a consoante coronal [n] é considerada devido a possibilidade de coar- ticulação com a consoante [d] no ataque da primeira sílaba seguinte; no quadro 6 uma possibilidade de compartilhamento da posição da segunda mora pelos dois processos anteriores.  ( >Ḧ ե੻ ( ( ե੻غ@ >Ḧ A C C Nu V µ µ Cd C C µ µ ( >̈@ A C C Nu V µ µ Cd C C µ µ ( >Ḧ@ A C C Nu V µ µ Cd C C µ µ ( ե੻@ >Ḧ >Ḧ ե੻ غQ@ 1) 2) 3)   

157

Figura 53. Variação do grau de estritura de uma transcrição fonética.

Deste modo, tomar diretamente o IPA como recurso para o tratamento das questões específicas da pronúncia de qualquer língua aplicada ao canto seria partir de um plano muito geral sem referências que nos permitissem abordar claramente os aspectos mais específicos129. No amplo escopo do IPA, o PB Cantado funciona como conjunto de referências relacionadas aos diversos contextos de uso do PB e sua aplicação ao canto. E é por esta razão mais do que qualquer outra que conside- ramos a importância dos conjuntos de normas de pronúncia que, assim como o PB Cantado, são capazes de referenciar o uso dos recursos do IPA no âmbito de uma determinada língua.

Conforme publicado em 2007, o padrão referencial de pronúncia do PB Can- tado se apresenta no formato de uma tabela que organiza em dois quadros (quadro das vogais e quadro das consoantes) os símbolos fonéticos e ortográficos do PB, acrescidos ainda de informações essenciais e complementares sobre transcrição e pronúncia. Em cada um destes quadros, a apresentação dos símbolos fonéticos e ortográficos segue a ordem alfabética românica.

Figura 54. Tabela do PB Cantado (fragmento da tabela das vogais)

129 Seria como reinventar uma ortografia.

 ( A C C Nu V µ µ Cd C C µ µ A C C Nu V µ µ Cd C C µ µ >Ḧ ե੻ n] ( A C C Nu V µ µ Cd C C µ µ ( ե੻غ@ >Ḧ ( >̈@ ( >Ḧ@ ( ե੻@ >Ḧ >Ḧ ե੻ غQ@ 4) 5) 6) Símbolo Ortográfico Símbolo Fonético Transcrição e pronúncia: informações essenciais Informações Complementares a [a]

Em posição tônica (ga-to ['ga.tʊ]), posição átona pretônica (a-bri-go [a'bɾi.gʊ]) ou postônica medial (sá-ba-du ['sa.ba.dʊ]).

Exceção: casos em que a letra ‘a’ ocorra antes das consoantes ‘m’ ou ‘n’ (ver a seguir os casos de ‘am’ e ‘an’).

Ambas as categorias compreendem ainda alguns casos especiais de se- quências de símbolos ortográficos que, uma vez combinados, correspondem a for- mas de pronúncia específicas (como no caso dos encontros vocálicos, encontros consonantais e nasalizações).

Os símbolos fonéticos propostos foram selecionados a partir do IPA. Quanto aos critérios de separação silábica e ortografia, o PB Cantado adotou as orientações da ABL - Academia Brasileira de Letras. Até a época da publicação, em 2007, as normas ortográficas estabelecidas pelo acordo da CPLP - Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (acordo que atualmente está em vigor), ainda não haviam si- do adotadas pela ABL.

O PB Cantado tem como propósito fundamental o estabelecimento de um padrão referencial para a pronúncia cantada do português brasileiro. Isso implica nas seguintes observações:

• A pronúncia do PB, como a de qualquer outra língua, frequentemente envolve di- versas possibilidades de articulação fonética para um determinado contexto fonoló- gico. Para estabelecer um padrão, o PB Cantado adota como referência uma entre as possíveis.

• A escolha de uma entre estas possíveis articulações obedece a uma série de crité- rios relacionados aos âmbitos da língua (critérios de ordem fonético-fonológica, so- ciolinguística, etc.) e do canto (critérios de ordem técnica, estilística, etc.)130.

• A pronúncia adotada passa então a ter o status de referência em relação ao PB Cantado. Neste contexto ela não exclui a possibilidade do uso das articulações al- ternativas, entretanto referencia a noção de que o uso de uma articulação alternativa estaria fora do padrão proposto.

Entre os aspectos linguísticos da língua portuguesa que foram considerados como critérios no estabelecimento do padrão referencial de pronúncia do PB Canta- do, destacam-se aqueles que se relacionam a uma certa norma culta da língua, na maneira como ela é atualmente escrita e falada no Brasil. Esta norma corresponde

130 Uma série de implicações de ordem técnica e cultural se aplicam sobre estes critérios cuja discus- são, como dissemos anteriormente, foge ao escopo deste trabalho.

sobretudo à maneira como a língua é falada em determinadas regiões e contextos socioculturais. Por esta razão, controvérsias quanto à adoção de algumas possibili- dades articulatórias (alguns sotaques) em detrimento de outros, são inevitáveis.

Entre as possibilidades de maior controvérsia, uma foi abrandada. Conforme o padrão do PB Cantado, a pronúncia correspondente à letra <r>, nas posições de início de palavra e da coda silábica, permite duas articulações possíveis [r] ou como [x] a serem utilizadas com base na escolha do intérprete. Do ponto da pronúncia da língua a escolha entre uma ou outra possibilidade tem implicações históricas e regi- onais. Do ponto de vista do canto, tem implicações técnicas e estilísticas.

Outros tipos de ocorrências a serem considerados com cautela foram os en- contros vocálicos e a sua caracterização na escansão silábica enquanto ditongos (vogais pronunciadas em uma mesma sílaba) e hiatos (vogais pronunciadas em sí- labas diferentes).

Também os casos de nasalização, assim como na primeira sílaba da palavra <can-to>, para os quais foi sugerida uma subjetiva busca do equilíbrio entre os pa- drões articulatórios tradicionalmente compreendidos do francês [ɑ̃] e do italiano [an] (esta proposta remonta à proposta do professor de canto Murilo de Carvalho, cele- brizada nos Anais do Primeiro Encontro da Língua Nacional Cantada de 1937, publi- cados de 1938).

Finalmente, foram destacados alguns casos especiais de junção entre pala- vras nos quais a pronúncia do fonema final de uma palavra tem o seu padrão articu- latório/acústico modificado em virtude da correlação com o fonema inicial da palavra seguinte. Isso se refere especificamente aos casos da letra <s> e <r> em finais de palavra. Se for seguida por palavra iniciada em vogal ou consoante vozeada, a letra <s> se pronuncia como [z]. Se for seguida por palavra iniciada por consoante não vozeada se pronuncia como [s]. Quanto ao <r>, se for seguido por palavra iniciada em vogal, se pronuncia [ɾ], nos outros casos, como [r].