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Algumas regularidades observadas no corpus constituído

NOÇÃO DISCURSIVA DE “HIPERCORREÇÃO”: UMA PROPOSTA DE DESLOCAMENTO TEÓRICO

IV. 3 “Hipercorreção”: não “erro”, mas equívoco

IV.4 Análise/sistematização de “hipercorreções” recorrentes no corpus

IV.4.1 Algumas regularidades observadas no corpus constituído

Conforme dissemos, o objetivo geral de nosso estudo é procurar compreender melhor a relação sujeito/língua observando fatos de “hipercorreção”. Para isso, em nossa análise consideramos o funcionamento discursivo de tais fatos como marca formal da eficácia ideológica do discurso da norma, da língua una, considerando a homogeneidade ideal em contraposição à diversidade real.

Outro ponto a ser enfatizado concerne ao fato de as marcas linguísticas não serem suficientes para atingirmos o discurso. Nesse sentido, é fundamental que a sua exterioridade seja considerada.

Nesse ponto, trazemos exemplos de “hipercorreção”, traços linguístico- discursivos frequentes em textos orais e escritos que constituem o corpus de análise. Enfatizamos que pensamos as regularidades como gestos de interpretação que remetem a formas linguísticas enquanto pre-construidos,76 aqueles que “fornecem a ancoragem linguística da tomada do interdiscurso”, traços de construções anteriores (MALDIDIER, 2003, p. 35), combinações da

76 Chamamos a atenção ao fato de o pre-construido ser uma das noções que se situam no fio das

reflexões de Pêcheux, no entanto é um termo que foi proposto por Paul Henry e que “designa uma construção anterior, exterior, independente por oposição ao que é construido na enunciação. [...] remete-se às evidências pelas quais o sujeito se vê atribuir os objetos de seu discurso: ‘o que cada um sabe’ e simultaneamente ‘o que cada um pode ver’ em uma dada situação.” (COURTINE, 2009, p. 74).

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língua, já ‘usados’ em discursos passados e que tiram daí seu efeito de evidência. Tais traços podemos observar tanto nos traços que nos remetem a formas linguísticas a serem imitadas, quanto naqueles que nos remetem a formas a serem evitadas.

Para nós, é possível tomar a noção de pré-construído e relacioná-la com os traços linguísticos “hipercorrigidos”, considerando que são fatos linguísticos que nos permitem “pensar e apreender o interdiscurso”. (MALDIDIER, 2003, p. 36). Relacionada a essa questão, reportamo-nos a distinção entre marcas e propriedades do discurso, que nos é importante no processo de entendimento de nosso objeto de estudo:

[...] segundo esta distinção, as marcas dizem respeito à organização interna do discurso e as propriedades põem em causa a totalidade do discurso em relação com suas condições de produção. Ao apreendermos certas marcas [no nosso estudo, as de ‘hipercorreção’] temos de considerar o modo como elas aparecem no discurso, ou seja, temos de estabelecer sua função em relação à propriedade do discurso que é o objeto da análise. Só quando referimos o esquema gramatical (traços ou marcas) às propriedades é que estamos caracterizando um discurso em sua especificidade. (ORLANDI, 1994, p. 305).

Há um imaginário de “correção” de língua que se materializa em traços linguísticos que constituem a língua materna em contraposição a traços que caracterizam a forma legitimada de língua. Em relação a esse fato, importa considerar o que dizem Megid e Furlan:

A construção desta ou daquela pronúncia assim como daquilo que se definiu como variedade padrão da língua não é ancorada em conceitos linguísticos que indicam uma forma melhor, superior ou mais eficiente do que outra. Ao contrário, essa seleção valorativa é feita com base em processos ideológicos produzidos em momentos históricos específicos e que se inscreveram no discurso sobre a língua nacional. (MEGID; FURLAN, 2009, p. 17) (grifos nossos).

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Tomando alguns traços linguísticos do nosso material de análise, ligamos ao que Silva Neto, em 1946, publica em seu livro77, sobre o fato de, no

seu ponto de vista, a estrutura linguística corresponder à estrutura social. Ele acentua que a “nossa sociedade semelha uma pirâmide em que os grupos sociais estão dispostos uns acima dos outros”. Nesse sentido, ele cita Veblen que “provou que cada grupo ou camada social procura assimilar as particularidades da camada adjacente superior e evitar as da camada adjacente inferior.” (SILVA NETO, 1946, p. 29). Assim:

[...] cada língua apresenta certo número de camadas, que se caracterizam por tendências positivas (imitação ao estrato superior) e negativas (evitar o estrato inferior). A classe superior caracteriza-se, sobretudo, pelas tendências negativas – ela evita tudo o que é característico das outras camadas da sociedade. (SILVA NETO, 1946, p. 30).

Para Schaller (2001): “não temos mais a representação de classes, verticais, formando uma pirâmide em que estariam na base os mais pobres e no ápice a classe alta, podendo haver mobilidade em relação à ascensão. Os sujeitos seriam então incluídos ou excluídos socialmente.” Ainda citando o autor, Orlandi enfatiza que, na contemporaneidade, não se trata dessa representação da relação de classes. Atualmente, a representação desta relação é horizontal: “ou se está dentro ou se está fora. As relações não são de inclusão/exclusão mas de segregação. Uma vez segregado, é impossível ao sujeito entrar nas relações sociais.” (ORLANDI, 2009, p. 20).

De acordo com o que dissemos anteriormente, a questão da (re)produção de determinados traços linguísticos não se restringe a um lugar social, pois o que consideramos é o funcionamento ideológico. É ele que faz com que “todos queiram” reproduzir traços que se sustentam no imaginário de língua “correta”. Imaginário este em que ainda reverbera a separação do falar urbano e o rural, entre outras. A divisão que se põe distingue quem “sabe falar” e quem “não

77 Referimo-nos a essa obra de Serafim Silva Neto no III capítulo em que discorremos sobre a

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sabe” e esta distinção está relacionada ao desejo de se evitar traços linguísticos que imaginariamente caracterizam um falar “da roça e de analfabetos”, como disse um dos entrevistados de nossa pesquisa.

Considerando que, conforme Orlandi “a análise das formas linguísticas em si são marcas, traços materiais cujo sentido não é visível por si. Não dizem, em si, nada sobre as regularidades de um discurso” (ORLANDI, 1994, p. 305), citamos algumas das regularidades encontradas nas “hipercorreções” que constituem o nosso corpus de análise.

Pensamos numa operação metodológica que não reduza a reflexão a uma tipologia e é nesse sentido que trazemos alguns fatos de “hipercorreção” para observar seu funcionamento. Dito de outro modo, descrevemos algumas das sistematicidades da língua inscritas nos fatos de “hipercorreção” que, nessa perspectiva, merecem um olhar mais atento ao seu funcionamento, considerando as suas condições de produção.

IV. 4.2 Exemplos de “hipercorreção” em diferentes ordens do sistema

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