ANÁLISE DE DISCURSO: SUPORTE TEÓRICO PARA O NOSSO ESTUDO
III.1 Pontos de análise
III.1.1 O discurso sobre a língua nos enunciados das entrevistas
III.1.1.3 Discurso sobre a língua: a tensão entre unidade e heterogeneidade emerge na oscilação de sentidos nos enunciados
Aqui, trazemos alguns enunciados em que observamos diferentes sentidos que constituem discursos sobre a língua.
Há sujeitos que se identificam com sentidos de língua imaginária, em que se considera a existência de uma língua “perfeita”, “certinha”, “correta”, “ideal”, “inalcançável” ou praticamente “inalcançável”. Conforme alguns enunciados “é difícil achar quem fala assim: certinho, do jeito que tem que ser falado mesmo”; “todo mundo fala errado” e “não tem nenhum que fala certo”.
Sentidos outros também são produzidos e constituem um discurso sobre a língua em que o sentido de língua é distinto da anterior. Sentido de língua em sua fluidez, em movimento, heterogênea, em funcionamento na sociedade.
Conforme Orlandi, “não há possibilidade de haver sentido que não resulte de um confronto do simbólico com o político”. Nessa direção, pensamos o político considerando o fato de que, em uma sociedade como a nossa, os sentidos são divididos (ORLANDI, 2012, p. 157), e chama-nos a atenção a oscilação que constitui os enunciados abaixo.
Discurso sobre a língua: a tensão entre unidade e heterogeneidade Naturalidade/
Estado
Idade Escolaridade Enunciados
BA 76 anos Não- alfabetizada
Bom, a várias considerações para mim é igual, mas que tem pessoas que fala melhor do que a outra é claro.
GO 38 anos Graduado em história
Considero que existem sim pessoas que se
preocupam em falar o português corretamente, conforme os padrões da nossa
língua. O que para mim descarta a ideia de que um fala melhor ou não do que outros.
GO 23 anos Graduada em Letras
Conheço várias pessoas que falam errado, né? Porque a gente sabe que não existe português errado, existe a má colocação das palavras e esse falar errado, na verdade, é ele conceituado porque existe a gramática. (...)eu creio que hoje pra mim não existe o certo existe você fazer as colocações
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corretas, na hora certa, no lugar certo, com as pessoas certas.”
RS 24 anos Graduada em Direito
Eu acho que tem o certo, o correto, mas é difícil achar quem fala assim: certinho, do jeito que tem que ser falado mesmo.
MT 20 anos Ensino médio completo
Eu vejo a fala como um meio de comunicação não sendo melhor ou pior. Se todos eles chegam a um mesmo objetivo que é a comunicação, independente da pessoa ser mais pobre, da linguagem menos gramatical, menos rebuscada, chique, como a gente vê nos grandes centros.
Em vários dos enunciados, observamos a recorrência à atribuição de juizo de valor em relação aos diferentes falares. Assim, é possível notar a oposição entre sentidos de língua: “certo” X “errado”, “português correto” X “português incorreto”, falar legítimo X ilegítimo, ideal X real, entre outras contraposições.
A oscilação entre sentidos nos enunciados não se restringe à opinião dos sujeitos sobre o funcionamento da língua na sociedade. Ela se apresenta também nas marcas linguístico-discursivas que nos remetem a memórias distintas: a da língua nacional e a da língua materna. Distinguindo estas duas noções, Guimarães define língua nacional como aquela que caracteriza um povo, dando aos falantes uma relação de pertencimento a este povo. Enquanto a materna “se representa (que se apresenta como sendo) primeira para seus falantes”. (GUIMARÃES, 2006, p.14)
Pensamos a presença da oscilação nos enunciados como interferências que, de acordo com Payer, ocorrem nas situações em que a relação do sujeito com discursos outros não é indiferente ao próprio modo de dar sentido. Assim, “tocado pela presença do outro, ele se desconcerta em seus parâmetros de representação, até então protegidos de maiores abalos.”42 (PAYER, 1993, p.
67). Observamos esse funcionamento na formulação de uma egressa do curso de
42 Maria Onice Payer desenvolve um estudo bastante produtivo sobre a interferência do discurso
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letras que ilustra a possibilidade do sujeito sofrer a interferência do discurso científico que teve acesso nas aulas de linguística ao longo dos seus estudos:
Conheço várias pessoas que falam errado, né? Porque a gente sabe que não existe português errado, existe a má colocação das palavras e esse falar errado, na verdade, é ele conceituado porque existe a gramática. [...] eu creio que hoje pra mim não
existe o certo existe você fazer as colocações corretas, na hora
certa, no lugar certo, com as pessoas certas.
Nesta sequência discursiva, vemos a oscilação de sentidos nas marcas linguísticas: eu creio/a gente sabe; “conheço várias pessoas que falam errado” X “não existe o errado”; “não existe o certo” X “existe você fazer as colocações corretas, na hora certa, no lugar certo, com as pessoas certas”. O que poderia parecer contraditório está relacionado ao interdiscurso, ao dizível, aos sentidos que estão disponíveis.
Também é interessante notar que os sentidos dados à língua independem da faixa etária, do nível de escolaridade, de região de origem, pois, como sabemos, toda formação social é múltipla.Nessa direção, concordamos com o que Mariza da Silva afirma em relação à língua:
[...] há toda uma série de pré-construídos que circulam pelas diferentes classes sociais, formando um bloco aparentemente homogêneo e coeso. [...] os locutores têm como uma capacidade ‘natural’ para hierarquizar as produções do falante de uma sociedade, distribuindo-as, também naturalmente, entre as diferentes classes sociais e atribuindo como causa dos erros e faltas, o locutor. (SILVA, 2007, p. 157).
Pensamos que seja produtivo relacionar a afirmação de Silva à de Pagotto43 (2007, p. 36) que trata da universalização do acesso à escrita. Ele
afirma que “ao universalizar a língua, submetem-se todos os falantes ao processo
43 Emílio Pagotto é um dos autores que se inscrevem na teoria Sociolinguística. No entanto, ao
longo das discussões que propõe, percebemos que o autor recorre a algumas noções da Análise de Discurso que são produtivas à sua reflexão. (2007)
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normativo. Todos passam, então, a ter que responder pela língua que falam e pela língua que escrevem”. (PAGOTTO, 2007, p. 36). (grifos meus). E, como diz o autor, “o preço da normatização é a exclusão.” (2007, p. 51).
III.1.1.4 Discurso sobre a língua: o desconforto do sujeito com a sua língua