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Análise de recortes da resenha “Por uma gramática da língua solta” Nesse ponto, apresentamos alguns recortes da resenha do livro

ANÁLISE DE DISCURSO: SUPORTE TEÓRICO PARA O NOSSO ESTUDO

II. 6 A relação sujeito/língua e a forma-sujeito capitalista

II. 6.1 Ideias linguísticas que circulam em nossa sociedade

2.2.6.2 Análise de recortes da resenha “Por uma gramática da língua solta” Nesse ponto, apresentamos alguns recortes da resenha do livro

Português ou Brasileiro: Um Convite à Pesquisa (2001), de Marcos Bagno. Nessa resenha, é possível constatarmos que o seu autor, Vinícius Romanini, na época jornalista e doutorando em Comunicação pela ECA/USP, se inscreve na mesma

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formação discursiva de Bagno. Ou seja, o modo elogioso com que o primeiro constrói seus argumentos em relação ao segundo são marcas que remetem à inscrição na mesma posição ideológica.

Vejamos, a seguir, alguns enunciados produzidos por Romanini:

Marcos Bagno apresenta uma proposta moderna e ousada:

substituir a velha análise linguística da Gramática Tradicional (GT)

[...], por um método construtivo de pesquisa que transcenda os

conceitos de ‘certo’ e ‘errado’ em busca de uma comunicação

pragmática. [...] As críticas que Bagno faz à Gramática Tradicional e, principalmente, às suas idéias de renovação do ensino da língua inserem-se num novo panorama epistemológico que avança rapidamente dentro das ciências humanas: o de contrapor a

herança positivista, em que o objeto de estudo era reduzido a um

mecanismo sujeito a regras fixas, por um novo paradigma que leve em consideração o qualitativo e o particular. (ROMANINI, 2002). (grifos nossos).

Neste espaço de discussão sobre ideias linguísticas, vemos como Romanini faz referência às ideias de Bagno, sociolinguista. A série de formas linguísticas que constituem os enunciados acima citados possibilita-nos observar a relação de filiação de sentidos. Por um lado, temos no enunciado primeiro: “moderna, ousada, substituir, velha, transcenda”, por outro, constatamos no segundo enunciado, outras formas de produzir os mesmos sentidos: “renovação, novo panorama epistemológico, contrapor a herança positivista, novo paradigma”.

Podemos dizer que o autor da resenha se inscreve em uma posição sujeito que toma a história das ciências de uma perspectiva continuista e constrói seus argumentos desse lugar, elogiando Bagno por sua filiação a uma concepção de história da ciência com o sentido de superação, de progressão, de substituição, transcendência.

Na resenha citada, também observamos marcas que indiciam a filiação a uma corrente naturalista de língua. Em outros termos, sentidos produzidos numa filiação biologicista, a-histórica, linear, como se fosse consequência de uma evolução natural, sem considerar a sociedade, as contradições que a constituem, conforme observamos no seguinte enunciado: Bagno propõe considerá-la como

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um organismo vivo, solto de amarras e em contínua transformação [...].

A construção a seguir traz em si uma contradição, pois tanto chama a atenção para a unidade como se refere à diferença. Vejamos:

[...] [língua] alimentada pela contribuição de todos os brasileiros que se utilizam dela no seu cotidiano - de escritores a falantes

analfabetos, de pessoas com acesso privilegiado à informação

das grandes cidades (o que a sociolinguística denomina ‘cultos urbanos’) aos falantes isolados nos rincões mais pobres do Brasil rural. (ROMANINI, 2002). (grifos meus).

No rol de sentidos hierarquizados, passíveis de serem observados, além de estar marcada a sobreposição da língua escrita em relação à falada, o enunciado se constitui, por um lado pela ideia de unidade, por outro, a de divisão, marcada no modo verticalizado de enumerar os brasileiros: “‘todos os brasileiros’: de escritores a falantes analfabetos; das grandes cidades aos rincões mais pobres”. Brasileiros divididos pela relação com as ‘letras’, divididos pelo espaço geográfico, divididos pelo poder aquisitivo. Nesse ponto, recorremos a Pêcheux:

A burguesia é obrigada a proclamar o ideal de igualdade frente à língua como uma das condições efetivas da liberdade dos cidadãos, organizando simultaneamente uma desigualdade real, estruturalmente reproduzida por uma divisão no ensino da língua e da gramática. (PÊCHEUX, 1990). (grifos meus).

A seguir, chamamos a atenção à outra sequência produzida por Romanini. Vale dizer que, na argumentação, há, por um lado, algumas marcas que remetem à sociedade, por outro percebemos marcas que trazem à tona a relação com a língua, evidenciando-se o fato de que esse lugar teórico se constrói em uma correlação entre língua e sociedade.

Se, por um lado, temos marcas lexicais que remetem à relação com a sociedade: “dominação, escancaramento, relações de valor e hierarquia, marginalizados, cultura nacional, proposta política”, por outro esta sequência discursiva apresenta marcas que remetem à relação com a língua: “usos de pronomes, supressões de partículas, alterações ortográficas”. A partir dessas

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formulações, podemos dizer que, na perspectiva sociologista de língua, os sentidos atribuidos para a diversidade são sustentados ao se correlacionar língua e sociedade.

A língua também é um instrumento de dominação. Mexer com sua estrutura significa, também, alterar as relações de valor e hierarquia na sociedade. E quando se defende o escancaramento da porta estreita da Gramática Tradicional para que as experiências culturais dos marginalizados possam entrar no salão da cultura nacional, ganhando expressão sintática e valor semântico oficial, não há dúvida que existe nisso uma proposta

política. [...] com um convite à pesquisa para descobrir até onde

usos de pronomes que fogem às regras, supressões de partículas e alterações ortográficas não podem ser interpretados como

expressões culturais genuinas - em vez de tachados simplesmente

como usos errados que precisam ser corrigidos. (ROMANINI, 2002). (grifos nossos).

Relacionamos um dos argumentos postos na citação com o que afirma Mariza Silva, diante da análise que faz do funcionamento discursivo do volume dos Parâmetros Curriculares Nacionais destinado à “Língua Portuguesa” (aspas da autora). Silva observou que há também nas propostas do documento uma cruzada contra a gramática tradicional. (SILVA, 2007, p.156).

Outro ponto interessante da resenha citada é o fato de a proposta de Bagno ser avaliada como “sem dúvida uma proposta política”. A nosso ver, no próprio gesto de falar da existência de uma “proposta política” efetiva-se uma “maneira política de negar a política”, considerando o recalcamento do político no deslizamento metafórico de “usos errados” para “expressões culturais genuínas”, indicando uma posição culturalista.

Para compreender melhor os sentidos que constituem a formulação acima, consideramos que as reflexões de Pêcheux e Gadet são bastante produtivas, visto que, na perspectiva desses autores, a sociolinguística:

[...] retoma assim por sua conta, e sem colocar em questão, as formas sob as quais o modo de produção capitalista representa suas próprias ‘dificuldades’. Mesmo se a sociolinguística ultrapassa frequentemente a simples contemplação da alteridade

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do outro, seu progressismo, incontestável, desde que ele não coloque diretamente em causa os interesses da burguesia capitalista, só pode desembocar em uma dupla promessa:

contribuir para resolver os desvios e suprimir as desigualdades;

são tais, no melhor dos casos, as palavras de ordem políticas inscritas nos estandartes da sociolinguística. (PÊCHEUX; GADET, 1998). (grifos dos autores).

Desse ponto de vista, haveria uma relação de causa e efeito entre elas (língua e sociedade). Ou seja, desse lugar teórico não se tem uma relação de constituição como na perspectiva discursiva, em que não se dissociam língua, sujeito e história.

No intuito de refletir sobre a denegação dessa indissociabilidade e do apagamento da história, que constituem a seqüência discursiva anteriormente citada, remetemo-nos aos argumentos de Silva:

A história assim apagada e denegada (logo, os conflitos e contradições da Educação e da Lingüística) dilui-se em aspectos contingentes de uma teoria das relações sociais que se produzem entre indivíduos, tomados também de forma empírica [...]. Ao falar da variedade linguística, recalca-se o político, dando visibilidade à diferença enquanto inadequação de um sujeito moral a uma situação empiricamente determinada. (SILVA, 2007). (grifos meus).

Neste espaço, trouxemos exemplos de discurso de duas posições sujeito que constituem o imaginário de língua em nossa sociedade: a de um autor que se coloca no lugar de gramático e a de um linguista. Os materiais recortados permitem-nos observar como a memória se atualiza nas formulações.

Como vimos, quando ficamos atentos às ideias linguísticas que circulam em nossa sociedade, é-nos possível dizer que há representações bastante significativas. Por um lado, temos Pasquale Cipro Neto, normativista, por outro Marcos Bagno, sociologista, e os que se inscrevem nessas posições e argumentam reforçando esses sentidos. Há um embate entre a perspectiva de alguém que fala do lugar de gramático, sem ser gramático e a de um sociolinguista. Para melhor dizer, recorremos parcialmente à expressão utilizada

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por Pêcheux (1995, p. 293): há um “bate boca teórico e político”. Ressaltamos, parcialmente, pois omitimos a referência feita por Pêcheux ao “político”, já que Cipro Neto e Bagno negam o político nas discussões que produzem sobre a língua, como observamos nos enunciados analisados.

De acordo com Pêcheux e Gadet, as tendências formalista-logicista e sociologista, (como dissemos, no caso de nossa discussão, a normativista e a sociologista)31 “não negam a política do mesmo modo: elas têm sua maneira própria de chegar a isso”. A primeira “[...] nega a política falando aparentemente de outra coisa”, enquanto a segunda “recalca a política falando ou acreditando falar dela”. (PÊCHEUX; GADET, 1998, p. 10).

Consideramos relevante também trazer, neste momento, a noção discursiva de “interincompreensão”, pensada por Maingueneau (1984) que Orlandi apresenta em seu livro Terra à vista (1990, p.237) para afirmar que colonizador e colonizado nunca estão falando da mesma coisa, por exemplo quando falam da natureza. Percebemos o funcionamento dessa noção de modo muito claro nos discursos que atribuem sentidos para língua, sentidos que se constituem nessas duas posições-sujeito.

Também recorremos aqui, ao questionamento feito por Pêcheux e Gadet, título do artigo ao qual recorremos ao longo desta reflexão: “Há uma via para a linguística fora do logicismo e do sociologismo?” (op.cit., p. 5). Desse modo, fundamentada na crítica produzida por esses dois autores, refletimos sobre a necessidade de pensar a língua e a relação sujeito/língua numa perspectiva discursiva. Porém, como eles alertam:

Não se trata no entanto de ressuscitar uma ‘linguística proletária’ que identificaria pura e simplesmente o plano da língua e o da

31É interessante notar que no percurso das ideias linguísticas o linguista fala em saber científico, não mais em correção. No entanto, sua produção não é menos modelar nem menos eficiente na produção da estandartização da língua. Nesse ponto, como diz Orlandi, sua imposição de modelos de descrição da língua “seja mesmo mais impiedosa. Com uma repercussão de mercado muito forte e imediata”. (ORLANDI, 2002, p. 197).

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ideologia. As noções de discurso e de formação discursiva desempenham para nós esse papel de desubjetivação da teoria da linguagem, ainda que de forma embrionária. Essas noções nos ajudam, no estado atual das coisas, a pensar a relação de intrincação entre língua e formações ideológicas, através da qual práticas linguísticas tendencialmente antagonistas vêm se desenvolver sobre uma mesma base linguística [...] (PÊCHEUX & GADET, s/d, pp. 14/15) (grifos dos autores).

Antes de “fechar” este tópico, registramos o fato de que pensar a história das ideias linguísticas inscritos em uma abordagem discursiva é uma possibilidade de compreender esta história como:

[...] modo de constituir éticas e suas políticas públicas, para que se possa, ao pensar a história, pensar o presente e o modo de projetar o futuro, não como previsão do que pode vir a acontecer, mas como prática que constitui condições de desenvolvimento da vida social na história. Prática esta, sustentada em bases consistentes da reflexão e não improvisadas. Entre estas práticas estão a pesquisa, o ensino e a formulação de políticas sobre as línguas32.

Nessa mesma direção flui este percurso teórico bastante sucinto, na busca de compreender as relações de poder que constituem a relação sujeito/língua em si e os saberes que se constituem sobre ela e, a partir daí, contribuir de uma forma ou outra, direta ou indiretamente, na construção da história das ideias linguísticas.

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