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Considerações sobre o processo brasileiro de gramatização

ANÁLISE DE DISCURSO: SUPORTE TEÓRICO PARA O NOSSO ESTUDO

II.4 Considerações sobre o processo brasileiro de gramatização

[...] todos os instrumentos linguísticos envolvidos na construção da gramatização de uma língua e na sua administração implicam necessariamente na construção do efeito imaginário da unidade linguística. (PFEIFFER, 2005, p. 34).

Para iniciar esta seção, citamos Pfeiffer que argumenta que “toda legitimação implica em apagamentos”. (op.cit.,p. 34). Desse modo, legitima-se uma forma linguística e censuram-se outras tantas que estão em funcionamento no mesmo espaço linguístico21.

Nesta reflexão, tomamos como base o conceito de gramatização definido por Auroux enquanto “processo que conduz a descrever e a instrumentar uma língua na base de duas tecnologias, que são ainda hoje os pilares de nosso saber metalingüístico: a gramática e o dicionário”. (AUROUX, 1992, p.65). (grifos do autor).

19 Chamamos a atenção para o fato de a escrita afetar a língua considerada padrão, na sociedade.

Também apresentamos esta discussão no IV Capítulo, quando tratamos do processo de constituição da “hipercorreção”.

20 Nos dias de hoje, além da gramática e do dicionário que, há séculos, legitimam uma modalidade

de língua temos as diferentes mídias.

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“Espaço linguístico”, nas palavras de Cláudia C. Pfeiffer, “é o espaço imaginário de uma comunidade que se conglomera em torno de uma língua nacional.” (op.cit. p.38).

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No intuito de compreender melhor a relação entre língua brasileira/sujeito e processo de gramatização no espaço linguístico brasileiro, consideramos ser bastante fecunda a leitura do livro História das Ideias Linguísticas: construção do saber metalinguístico e constituição da língua nacional.22 (GUIMARÃES; ORLANDI, 2001).

Em um dos artigos que constitui essa obra - “Formação de um espaço de produção linguística: a gramática no Brasil” - Guimarães e Orlandi situam-nos no processo de gramatização do Brasil e enfatizam que, em um país colonizado como o nosso, a gramatização trabalha segundo um duplo eixo: o da universalização, o dos deslocamentos. (op.cit, p.35). Nas palavras dos autores, considerando as condições de produção, ter uma gramática significa:

[...] ter direito à unidade (imaginária) constitutiva de toda identidade. Por outro lado, falar dos ‘usos variados’ é defender uma ‘outra’ língua. Com efeito, uma vez conquistado o direito à unidade, imediatamente recomeça-se a reconhecer as variedades: a influência da língua dos índios, das línguas africanas, etc. Este reconhecimento é o próprio da constituição da unidade do português brasileiro. (GUIMARÃES; ORLANDI, 2001, p.35).

Para Guimarães (1996, p. 129) o processo de gramatização brasileiro ”se dá a partir dos anos 80 do século XIX, momento em que as gramáticas e dicionários se fazem tendo em vista a questão das línguas no Brasil”.

Nessa direção, enfatizamos que há uma construção simultânea entre o saber metalinguístico e a língua nacional e, assim, entre ambos se constitui uma relação em que não se pressupõe anterioridade tampouco causalidade lógica. (op.cit.) Dito de outro modo, instrumentos linguísticos como dicionários e gramáticas constroem uma unidade imaginária que passa a ser chamada de língua.

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Além das reflexões de Guimarães e Orlandi, esse livro constitui-se de trabalhos produzidos por vários autores que participam do projeto História das Ideias Linguísticas/Unicamp: Cláudia Regina

Castellanos Pfeiffer, Bethania Mariani, Mariza Vieira da Silva, Luiz Francisco Dias, Maria Onice

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As reflexões que Pfeiffer produz sobre as polêmicas relacionadas à língua portuguesa, nos séculos XIX/XX traz à tona questionamentos bastante relevantes para se pensar a constituição da relação sujeito/língua: “qual é a língua que falamos, de que modo a escrevemos, quem fala esta língua e quem se apaga nas outras línguas que não são descritas? Enfim quais são os sentidos que foram construídos, a partir da segunda metade do século XIX, para a língua brasileira?” (PFEIFFER, 2001, p. 167).

Além dessas questões, a autora traz neste artigo uma síntese das polêmicas em torno do modo de se falar a língua que se fala no espaço brasileiro e a relação com a escrita. Conforme Pfeiffer, na escrita “há a legitimação de uma forma linguística em confronto com várias outras que estão em funcionamento em um mesmo espaço linguístico.” (PFEIFFER, 2001, 169).

Nesta reflexão, também não podemos deixar de considerar a relevância da formulação do Diretório de Marquês de Pombal, em 1757. Acontecimento linguístico que tinha por objetivo normatizar e unificar o ensino e o uso do português. Conforme Mariani (2001, p. 111), “o Diretório traz para a discussão a raiz histórica da formação linguístico-discursiva da sociedade brasileira. Nela encontra-se de fato uma diferença entre o mundo português e a colônia brasileira.” (grifos nossos). Diferença que o Diretório, com seu poder normatizador, impõe que seja eliminada. Para isso, a língua portuguesa deve ser, obrigatoriamente, a única a ser falada: ’todos’ devem fazer um uso exclusivo da língua portuguesa.

O Diretório vigorou em torno de 40 anos, mas foi o suficiente para produzir uma memória de língua portuguesa no Brasil. Dito de outro modo, o Diretório de Pombal produz “efeitos no dizível possível, embora a língua geral e as demais línguas indígenas tivessem sofrido um processo sistemático de eliminação ao longo dos séculos seguintes.” (op.cit.). Ainda citando Mariani:

[...] o papel das academias e do édito de Pombal, quando refletimos sobre a normatização e sobre a homogeneização da língua, foi o de constituir A história, com O sentido, determinado através de A língua portuguesa e, desta forma, contribuir na

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formação de UMA memória oficial sobre o Brasil. (MARIANI, 2001, p. 114). (grifos da autora).

Retomando o que dissemos sobre a relação entre a produção de “hipercorreção” e traços “interditados”, vale lembrar que Gallo (1990) faz uma afirmação que nos interessa no sentido de compreendermos melhor a constituição do discurso da norma:

[...] naquilo que diz respeito à gramática, o interditado é evidente. Parte-se do interditado. Ou ainda pode-se dizer que a gramática de uma língua constitui-se em um inventário de inter-ditados, na medida em que ela ‘seleciona dizeres’. Os pares correto/incorreto, aceitável/não aceitável etc, fazem uma referência empírica superficial que é análoga ao interditado fundamental e aos inter- ditados discursivos determinados pelas formações discursivas. (GALLO, 1990, p. 17) (grifos nossos).

Ainda conforme palavras da autora (op.cit., p.17), “os interditados postos pela gramática (não aceitável, incorreto, etc.) se baseiam em alguma coisa que é fundamental na formulação de toda gramática: aquilo que não se diz, e do que não se tem consciência, e que é o que efetivamente determina os interditados”.

Nessa mesma perspectiva, Orlandi enfatiza que, enquanto brasileiros, “[...] temos uma história de séculos, de conquistas e de relações de poder e dominação acompanhando a história da gramática e do dicionário em nossa cultura. Nós temos o desenvolvimento de uma tecnologia que demorou anos para ser implementada e tornada ‘pública’ (livros, imprensa, etc). (ORLANDI, 1999, p. 20).

Pensamos que, para a nossa reflexão, também seja fundamental considerar as ideias que essa mesma autora apresenta em Língua Brasileira e outras histórias: discurso sobre a língua e o ensino no Brasil (2009). Entre outros pontos discutidos por Orlandi, está o fato de, no século XX, a gramática passar a ser um instrumento linguístico para distinguir os brasileiros que conhecem a língua corretamente e aqueles que não a conhecem. E o gramático assumir uma função de guardião da norma gramatical. Na divisão entre quem conhece e quem não

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conhece a língua, seu conhecimento passa a separar o que está e o que não está conforme a norma, distinguindo não mais brasileiros e portugueses, mas brasileiros e brasileiros. (ORLANDI, 2009, p. 176-7).

Ainda no sentido de pensar a constituição do imaginário de língua correta em nossa sociedade, vale a pena lembrar o que afirma Mariani ao tratar da polêmica travada entre Rui Barbosa e Ernesto Carneiro Ribeiro em relação à língua utilizada na redação do Código Civil Brasileiro, em 1902. Essa “querela linguística”, como diz a autora, girou em torno da língua falada no Brasil e a língua portuguesa escrita conforme os padrões estipulados pelos escritores portugueses consagrados. Conforme Mariani, “o bom e modelar português, o português padrão (escrito) será aquele que não inclui marcas de oralidade”. (MARIANI, 2011, p. 249). Mais de um século se passou e o modelo de português continua a ser o que mais se distancia da oralidade.

Concordamos com Orlandi quando enfatiza que, de modo geral, “a gramática em seu processo de produção faz muito mais do que ser um lugar de conhecimento ou norma. Ela é a forma da relação da língua com a sociedade na história. No presente caso, esse é um sujeito pragmático. E é esse sujeito, é esta posição sujeito que somos convidados (aprendemos) a ocupar quando aprendemos a língua. [...] esse sujeito não pode resistir à língua sem ser marginalizado ao cair fora da norma.” (ORLANDI, 2007, p. 14-15). (grifos nossos). Também em relação ao processo que envolve os instrumentos linguísticos, Lagares afirma que “cumprem a função de apresentar um modelo de língua que possa ser oferecido aos outros falantes e que será identificado como a Língua”. (LAGARES, 2011, p.176).

Assim, a partir dessas reflexões, é possível pensar a produção da “hipercorreção”, objeto de nosso estudo, como uma tentativa de “não cair fora da norma” para “não ser marginalizado”.

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II.5 Espaço escolar/espaço de censura: o discurso pedagógico constituindo

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