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Regularidades nos fatos de “hipercorreção”: traços linguísticos evitados/rejeitados/censurados e/ou imitados/reproduzidos

NOÇÃO DISCURSIVA DE “HIPERCORREÇÃO”: UMA PROPOSTA DE DESLOCAMENTO TEÓRICO

IV. 3 “Hipercorreção”: não “erro”, mas equívoco

IV.4 Análise/sistematização de “hipercorreções” recorrentes no corpus

IV.4.3 Regularidades nos fatos de “hipercorreção”: traços linguísticos evitados/rejeitados/censurados e/ou imitados/reproduzidos

Lembramos que todo o discurso é constituído pelas formações imaginárias (PÊCHEUX, 1997), e os diferentes sujeitos, considerando a imagem que têm de si mesmos, a imagem da imagem que seu interlocutor tem dele, assim como a imagem que têm do referente, no caso, a língua, produzem esses diferentes traços linguísticos.

Nesse ponto, voltamos à noção de mecanismo de antecipação que é bastante cara à análise que desenvolvemos. Conforme esta noção, o sujeito

79 Dino Pretti coloca entre as características da “norma popular” a “economia nas marcas de plural”.

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antecipa o que seu interlocutor irá pensar ao seu respeito e organiza seus enunciados sustentado nesse mecanismo. Como diz Orlandi,

[...] todo sujeito tem capacidade de experimentar, ou melhor, de colocar-se no lugar em que o seu interlocutor ‘ouve’ suas palavras”. Ele antecipa-se assim a seu interlocutor quanto ao sentido que suas palavras produzem. Esse mecanismo regula a argumentação, de tal forma que o sujeito dirá de um modo, ou de outro, segundo o efeito que pensa produzir em seu ouvinte. (ORLANDI, 2001, p. 39).

Assim, o sujeito que produz “hipercorreção”, coloca-se no lugar de seu interlocutor e constrói seu enunciado de um determinado modo que traz à tona traços linguísticos que constituem as formas da língua que ele imagina que o outro diria, considerando o imaginário de língua que circula. O efeito de sentidos que “deseja” produzir e a imagem que “gostaria” de constituir é de alguém que “sabe” falar “a” língua.

Ainda levando em conta o mecanismo de antecipação, podemos dizer que o sujeito na posição de quem produz “hipercorreção” traz à tona, também, o imaginário de povo que predomina em nossa sociedade como “pessoas que não sabem falar/escrever”. Este sujeito, inconscientemente, não deseja ser visto como uma delas.

É necessário chamar a atenção para o fato de que os exemplos citados foram produzidos nas mais diferentes condições de produção. Não só porque os enunciados são de diferentes naturezas (gráfica e oral), mas também porque ocorrem em diferentes regiões do país, em lugares os mais distintos, por pessoas ocupando lugares sociais bastante diversificados. Diríamos que são enunciados produzidos em diferentes espaços discursivos.

Fazemos referência a esses aspectos para enfatizar que eles são importantes no ponto de vista da Sociolinguística, em que são tidos como questões que apontam para a correlação entre a produção linguística e a sociedade. No entanto, na perspectiva discursiva, tais elementos são considerados enquanto constitutivos das condições de produção e são levados em

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conta como argumento para enfatizar que a identificação ideológica do sujeito, em relação à língua, acontece pelo imaginário de quem seja ele, em que local vive, que posição social ocupa, entre outras questões. Como a significação se produz na ordem do imaginário, a pessoa pode não ser mas pensa que é.

Conforme enfatizamos desde o início deste texto, um dos objetivos que temos com o trabalho é a proposta de um deslocamento teórico da noção de “hipercorreção”. Assim, podemos dizer que, ancorados na teoria da análise de discurso, o nosso estudo implica em uma abordagem da linguagem em sua relação de constituição pela exterioridade. A propósito, vale repetir que as variáveis como condição social, espaço geográfico, faixa etária, nível de escolarização, entre outras não são trabalhadas do mesmo modo que na Sociolinguística,80 enquanto elementos correlacionados à produção de linguagem, mas como uma relação de constituição pelo imaginário, considerando-as enquanto condições de produção das práticas linguísticas dos diferentes sujeitos.

No movimento enunciativo, ao trazer traços de um modo outro de dizer o sujeito nega a sua própria maneira de falar, os modos de formulação próprios de sua posição social posta em situação de inferioridade. Para nós, esse gesto de interpretação é produzido pelo estranhamento do sujeito em relação ao seu próprio modo de enunciar, o que produz um distanciamento, um recuo do sujeito falante, ao mesmo tempo que se remete ao Outro (enquanto interdiscurso), trazendo-o para dentro de sua produção enunciativa.

É possível constatar algumas regularidades81 que constituem traços

considerados como característicos da língua brasileira institucionalizada,

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Gadet, no prefácio de A língua inatingível (2004), entre outros pontos se pergunta se teria mudado de orientação teórica ao longo de vinte anos, saindo da Análise de Discurso para a Sociolinguística. Ela mesma responde: “[...] o que busco NO sociolinguístico nada tem a ver com o projeto simplista dado como objetivo DA sociolingüística (uma co-variação banal e monótona, entre social e linguístico ou linguageiro).” (GADET; PÊCHEUX, 2004, p. 14). (grifos da autora). Continuando, ela argumenta que resume a sua busca “como uma interrogação sobre o que fazem os seres humanos quando produzem discurso ou texto, quando pensam produzir sentido ou algo que pareça fazer sentido para outros locutores.”

81 Maria Onice Payer, em seu livro Memória da Língua: imigração e nacionalidade (2006),

apresenta uma análise de traços da memória da língua dos imigrantes italianos que contribuiu efetivamente para o nosso trabalho. A ela agradecemos pela valiosa inspiração.

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legitimada pelo processo de gramatização. São traços que nos remetem as ordens distintas das línguas nacional e materna e que relacionamos com o modo que Orlandi distingue o português brasileiro do português macarrônico, falado por imigrantes italianos. A autora afirma que:

[...] as ordens das diferentes línguas sofrem uma aproximação necessária, pela história, e são atingidas em sua capacidade de jogo. Abrem-se os espaços de equívoco, rompem-se tecidos da formalidade (estruturantes). É o sujeito se trabalhando e sendo trabalhado na sua exposição aos efeitos do simbólico, aí representados por duas línguas. (ORLANDI, 1997, p. 124).

Podemos dizer que nesse trabalho com as duas ordens de língua o sujeito produz traços que constituem o “falar/escrever bem”: como as marcas de plural, as concordâncias nominais e verbais, expressões lexicais, entre outras características. Nesses traços, vêm à tona marcas que estão relacionadas a um valor maior, por isso predominam nos discursos produzidos publicamente.

Além dessas marcas, há fatos de “hipercorreção” que apontam para traços linguísticos que caracterizam formas da língua brasileira que ficam à margem. Vale ressaltar que não são os traços em si, mas vestígios de traços que se opõem à língua brasileira em sua forma institucionalizada. Traços evitados justamente por serem de uma forma “indesejada” da língua e, por isso, são censurados e colocados como “errados”: rotacismo, despalatalização, economia nas marcas de plural, concordância nominal e verbal diferente da (im)posta como “correta”.

Assim, podemos dizer que as “hipercorreções” são traços “emprestados” de outro lugar e o fato de o sujeito mobilizar tais traços em suas sequências discursivas possivelmente seja resultado ou do desassossego e/ou do desejo – inconscientes - de apagar um modo de dizer que aponta para o sentido de “não saber falar/escrever” a língua. Como dissemos, consideramos que os traços “hipercorrigidos” remetem ao interdiscurso, à outra memória discursiva.

Para ilustrar a nossa discussão, trazemos fatos de “hipercorreção” que poderíamos dizer que são vestígios do desassossego do sujeito em relação a

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traços censurados da língua materna marcada pelo preconceito. Também apontamos fatos que nos parecem ser indícios do desejo do sujeito de imitar/reproduzir traços característicos da língua institucionalizada.

Para evitar qualquer classificação que, de algum modo, poderia resultar em tipologia, detemo-nos em algumas regularidades enunciativas que, a nosso ver, caracterizam formas “hipercorrigidas”. Entre elas citamos:

1) lambdacismo

2) excesso nas marcas de plural, nas concordâncias nominais 3) excesso nas marcas de plural, nas concordâncias verbais 4) palatalização de vocábulos

5) ditongação

6) escolha lexical com sentido inadequado para o contexto 7) ênclise e/ou duplicação de pronomes oblíquos

8) acréscimo de /r/ final

9) troca de vogais: rebaixamento82 na articulação dos fonemas /i/ e /u/ que passam a /e/ e /o/

10) emprego da letra “h”

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