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Algumas visões sobre experiências participativas hispânicas

2. O PROCESSO POLÍTICO E DEMOCRÁTICO

2.6. Algumas visões sobre experiências participativas hispânicas

Como Rousseau, Colombo também lembra que a participação requer educação e preparação para o exercício pleno da cidadania, informada e responsável. Sustenta que toda forma de democracia participativa deve garantir um processo de deliberação no seu sentido amplo e conceitual. Há certos requisitos comuns a todo processo para que seja realmente participativo e permita ao cidadão tomar decisões pensando no bem coletivo e em longo prazo:

a participação deve ser a priori da decisão, sobre um tema definido claramente, com normas de funcionamento que definam os objetivos do processo e as responsabilidades dos participantes, devendo contar com a participação de todos os interessados e afetados, deve oferecer informação suficiente, relevante e compreensível, e deve ter estratégias de interação que despertem interesse nos participantes e fomentem a participação dos mesmos. (COLOMBO, 2007, pp. 38- 39).

Colombo (2007), baseada em teóricos espanhóis como Subirats, Sànchez, Font e outros aponta a falta de cultura participativa tanto dos cidadãos quanto das instituições como uma das limitações deste modelo participativo. Entende que uma gestão equivocada da participação pode gerar o aumento da frustração e desconfiança dos cidadãos em relação às instituições políticas e teme que a participação acabe em demagogia e populismo.

Joan Subirats (2002) analisa alguns problemas e limites da democracia e do sistema democrático e participativo vigente/hegemônico. Na visão do autor, vive-se um momento curioso: a democracia parece experimentar um doce momento com a ampliação do conjunto de regras e mecanismos de representação plural, de participação e controle. Apesar disso, continua existindo uma insatisfação crescente quanto ao seu funcionamento. É evidente a incapacidade de resolução dos problemas enfrentados pelos mecanismos democráticos de

tomada de decisão.

Em nível local, relata o autor, instâncias participativas setoriais vêm se desenvolvendo através de entidades ou associações de bairros dos mais variados tipos: terceira idade, juventude, mulher, meio ambiente, esportes. Também nas administrações públicas há mais atores civis no debate sobre a formulação e implementação de políticas públicas. Não é de se estranhar que muitas políticas governamentais tenham estendido seus espaços participativos e de intercâmbio de informações entre instituições e entidades sociais. Pouco a pouco, recupera- se a participação direta ou semidireta dos cidadãos nas decisões públicas e criam-se novos mecanismos de consulta popular. As razões que explicariam essa proliferação de experiências participativas estão ligadas às insuficiências e debilidades das vias tradicionais de participação previstas na democracia representativa (SUBIRATS, 2002).

Conforme Subirats, as elites representativas dizem deplorar a falta de cultura participativa e declaram publicamente sua preocupação pelo aumento da abstenção nas eleições. Entretanto, não se mostram favoráveis a dinamizar os processos participativos não convencionais (iniciativas legislativas populares, por exemplo), nem a aceitar a legitimidade ou a força vinculante de novas formas de participação nos processos de decisão. Essas elites são céticas a respeito desses processos e aludem aos custos de tempo e recursos gastos nos processos, além dos perigos de “captura” por parte de interesses parciais. Em resumo, aproveitam-se desse círculo de desresponsabilização e de uma concepção de política enquanto assunto de iniciados e profissionais.

O problema, no entanto, segundo Subirats, é saber se o sistema democrático requer ou não mais participação popular, e encontrar mecanismos que possam diminuir os riscos e problemas existentes, sem sobrecarregar os cidadãos. Diante das enormes dificuldades e ceticismos que rodeiam o tema, o autor diz ser cada vez mais difícil manter uma posição favorável ao aumento da participação popular:

seja pela enorme difusão de informação e pelo difícil acesso à educação produzido em muitos países nas últimas décadas, seja pela própria sofisticação do progresso científico que cada vez nos dá menos respostas unívocas desde o ponto de vista técnico sobre como resolver problemas. Sem dúvida, para aqueles que entendem ser conveniente avançar e buscar novas formas de participação como via para melhorar a qualidade da democracia e sua capacidade de resolver os problemas gerados pela convivência coletiva, devemos ser capazes de demonstrar que participação e eficiência não são conceitos contraditórios, senão que, cada vez mais são conceitos complementares. (SUBIRATS, 2002, p. 7).

Não se pode confundir ou misturar factibilidade técnica com factibilidade social. É preciso trabalhar nas duas direções para enfrentar problemas sobre os quais muitas vezes não há consenso, nem sequer sobre se existe um problema e de que tipo é. O conjunto de ceticismos e perigos em torno da participação pode ser mais bem ou mal resolvido em função do mecanismo participativo que se utiliza. Cabe encontrar a melhor forma participativa para ampliar o debate e proporcionar saídas ou opções aos problemas (SUBIRATS, 2002; 2007).

Font e Blanco (2003), analisando processos locais de participação popular orientados à tomada de decisão, e organizados a partir das prefeituras, em momentos extraeleitorais, entendem que a “participação é um talismã a que todos recorrem quando surge um conflito de

forma insistente na vida política de um município”,mas é ilusório pensar em utilizá-lo como solução na busca do consenso total da população (FONT e BLANCO, 2003, p. 11). De forma geral, entendem a participação como o ato de tomar parte na gestão do público e do coletivo, que afeta a sociedade em seu conjunto. A participação cidadã é qualquer atividade dirigida a influenciar direta ou indiretamente o campo político. Para não se tornar uma atividade banal, a participação deve estar focada em temas de especial relevância, uma vez que o objetivo não é transformar a democracia representativa em democracia direta, e, sim, complementar a representação política (FONT e BLANCO, 2003, p. 15).

No terreno participativo, mesmo criando igualdades de oportunidade, na prática essas sempre serão aproveitadas de maneira desigual. Para uma participação igualitária não se podem convocar todos de uma mesma maneira, por exemplo. Deve-se fazer um esforço especial para que participem aqueles que geralmente não o fazem. As pessoas têm motivos e capacidades diferentes para participar. Os mecanismos de participação devem se adaptar aos vários contextos apresentados (FONT e GOMÀ, 2003, p. 89). Urnas itinerantes que possam acessar comunidades ribeirinhas, ou distantes (a exemplo da Consulta Popular); disponibilizar computadores e urnas em locais públicos; uso da Internet e das novas tecnologias para votação (o uso de SMS no Brasil pode ser levado em consideração, pois o número de celulares per capita é elevado entre as várias classes sociais. Ressalte-se, contudo, que em Barcelona a votação por esse mecanismo foi irrisória, em comparação com o uso das outras ferramentas); esclarecer a população sobre o processo por meio das diversas mídias: rádio, TV, banners, outdoors, mídia impressa, Internet, uso de redes sociais, como Facebook, Orkut, e Twitter.

mas diversos tipos de metodologia que podem servir como exemplo, os autores destacam critérios políticos e estruturais que devem ser considerados no momento de organizar uma consulta popular, assim como apontam alguns problemas a serem evitados. Um bom processo participativo começa com vontade política, equipe bem estruturada, com técnicos, políticos, recursos e suporte técnico, além de um bom planejamento. O processo deve ser transparente e neutro. E deve ser completo, ou seja, fechar o ciclo: as decisões devem ser aplicadas; a população ou grande parte dos setores implicados, deve sair satisfeita (lei da maioria), e os participantes devem sair mais confiantes do que estavam ao início do processo (FONT e BLANCO, 2003).

Os autores apontam as fases que todo processo participativo deve ter4:

Iniciativa: momento em que se toma a iniciativa de impulsionar o processo. A

credibilidade do processo está fortemente condicionada a questões como: quem toma a iniciativa, com que objetivos e a partir de quais critérios. A natureza do processo e os objetivos devem ser claros e realistas para conseguir mobilizar os atores sociais e a esfera política, sem gerar falsas expectativas. Deve ficar claro também se as decisões são vinculantes ou não e a real capacidade de influência direta nas políticas públicas. Nesta fase ocorrem diversos acordos políticos, inclusive com a oposição, acordos sociais, administrativos. Os variados diálogos transversais e as negociações aí estabelecidas produzirão as regras de conduta e os procedimentos, viabilizarão o processo e darão legitimidade ao mesmo.

Mobilização: etapa em que se busca atrair a atenção e o engajamento dos envolvidos

no processo. Requer uma estratégia de visibilidade, por meio de campanhas publicitárias e estratégias de comunicação, utilizando tanto meios de comunicação locais privados quanto organismos públicos de comunicação (Internet, TVs, rádios, jornais, etc.), para dar conhecimento do processo e incentivar os diversos setores da sociedade. É ideal que a participação seja extensa, plural e representativa de todos os segmentos da sociedade, para que aqueles que serão afetados pelos resultados possam manifestar suas opiniões. Muitos processos podem ter grande número de participantes, porém não representar a pluralidade coletiva. Uma maneira habitual de garantir a representatividade é pela coleta dos dados sociológicos e demográficos dos participantes: idade, sexo, nível de escolaridade, endereço e local de residência, origem étnica, se pertencem a alguma associação, dentre outros. A ideia é incluir aquelas pessoas que normalmente não participam das decisões políticas.

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Participação: momento de troca de informações, de debates e de tomada de decisão. Informação: os cidadãos devem ter todas as informações necessárias para poder se

pronunciar com conhecimento sobre os temas em questão. As deliberações e debates devem ser abertos ao público, em ambiente agradável, estimulante, e criar condições de igualdade e liberdade, para que não haja domínios nem marginalizações. As condições e regras do debate devem ser flexíveis para se adaptarem às diferentes capacidades e especificidades de cada grupo: a linguagem utilizada, o espaço físico das discussões, o tempo de fala de cada participante, o formato de cada reunião.

Efeitos e resultados: momento posterior à participação. Influência nas políticas e na

própria estrutura; geração de cultura participativa (efeito educativo e cívico) e coerência institucional. No que tange à coerência institucional, os autores ressaltam que o excesso de participação ou de mecanismos participativos pode ser cansativo, desestimulante e causar confusão entre a cidadania. A credibilidade do processo fica ameaçada se a população percebe que o governo mantém em suas mãos as definições das políticas centrais e, em troca, submete à consulta popular políticas periféricas, específicas e sem relevância direta para suas vidas. A coerência institucional não é medida tanto pela quantidade de processos participativos que se abram, mas pela centralidade que esses processos ocupem na sua agenda política e pela relação com a forma habitual de fazer política daquele governo (se é dialógica ou não, se é mais ou menos democrática).

Dentre os vários aspectos, cabe destacar a importância nesta última etapa da devolução ou resposta à população. É o momento em que, após a etapa consultiva, os líderes políticos do governo, por exemplo, darão uma explicação ou retorno aos cidadãos acerca das demandas populares, explicando abertamente aquelas que serão aceitas, ou não, e por que, no caso de não serem vinculantes. Uma comissão de acompanhamento e representação institucional deve ser formada em conjunto com representantes da sociedade civil para acompanhar a implementação dos resultados. “Os cidadãos não ambicionam converter-se em prefeitos, mas querem ser escutados e ter suas ideias tratadas com consideração.” (FONT e GOMÀ, 2003, p. 90).

Dentre os mecanismos e instituições da democracia participativa estão: pesquisa de opinião deliberativa, conselhos cidadãos, comitês consultivos cidadãos, estruturas de participação em bairros, fóruns de discussão, conferências de consenso, mediação ou instrumentos de democracia eletrônica, núcleos de intervenção participativa, planos

estratégicos, Agendas 21, orçamentos participativos, projetos educativos, etc.

Os autores lembram, contudo, que o fundamental para a aplicação de uma metodologia é conhecer a fundo o local, município ou região, suas tradições associativas, os meios de comunicação, pois nenhum modelo pode ser aplicado sem que se realizem alterações estruturais e contextuais (FONT e GOMÀ, 2003, p. 21).

Os Conselhos de Cidadão, por exemplo, mesmo com seus limites, constituem um importante instrumento na ampliação e melhora da participação dos cidadãos nos processos de tomada de decisão. Em outro texto, Font e Medina (2007), fazem um estudo sobre Conselhos Cidadãos na Espanha, afirmando que essas instituições são positivas ao resolver dois dos principais obstáculos para a participação cidadã na tomada de decisões: a falta de informação e a insuficiência de representatividade dos participantes. Os autores concluem, dente outras coisas, que, “mesmo que os cidadãos não entendam toda a informação a eles proporcionada, podem tomar decisões razoáveis aplicando o sentido comum e recorrendo às suas experiências pessoais.” (FONT e MEDINA, 2007, p. 173).

Em estudo mais amplo, Brugué, Font e Gomà (2007) concebem a participação cidadã como a atividade que envolve os indivíduos, de alguma forma, nas decisões políticas que afetam a comunidade. Participar comporta tomar parte na definição dos cenários do futuro, em fixar prioridades e em optar por modos alternativos de fazer as coisas. Trata-se de melhorar a relação entre governantes e governados, de forma que estes tenham oportunidades de incidir efetivamente nos assuntos coletivos que lhes afetam. Nesse sentido, os autores consideram frágeis aquelas aproximações à participação que se limitam à dimensão informativa, consultiva ou de cooperação na prestação de serviços públicos (BRUGUÉ, FONT e GOMÀ, 2007, p. 112).

As metodologias e instrumentos participativos devem ser adequados aos diferentes processos participativos, conforme as características, necessidades e objetivos de cada modelo. Tão importante quanto isso, é ter em mente que todo processo político envolve relações de poder, assim como da estrutura social. Devem-se, portanto, levar em conta a realidade e o contexto das localidades ou regiões onde se pretende aplicar métodos participativos para consulta à cidadania.

Os problemas da representação, contudo, não se resolvem automaticamente com a abertura de canais participativos. As desigualdades sociais são apenas uma das preocupações quando se estabelecem requisitos participativos em momentos extraeleitorais. Um dos

principais riscos é dar ênfase a opiniões ou interesses de cidadãos ou grupos com mais recursos para participar, ou seja, corre-se o risco de que a participação não seja representativa do conjunto de interesses e demandas da população (FONT e BLANCO, 2007, p. 220).

Em países democráticos, nos quais a soberania popular está entre os princípios de um Estado de direito, nada parece mais adequado do que a participação dos eleitores nos processos de decisão, cujas políticas afetarão diretamente a cidadania. Cabem, entretanto, ressalvas ao excesso de práticas participativas:

A parceria entre Estado e sociedade parece cada vez ganhar mais adeptos em torno da busca de soluções para remover os obstáculos colocados diante da sociedade na luta pela conquista da cidadania plena. Contudo, antes que a participação popular e a parceria Estado-sociedade sejam encaradas como solução universal para todos os problemas sociais, é indispensável promover a separação entre o joio e o trigo. Em outras palavras, é necessário evitar a homogeneização e vulgarização dessas experiências, procurando distinguir a legítima participação da mera manipulação, formas válidas de cooperação Estado-sociedade da simples cooptação ou, o que é mais grave, da pseudo-participação. (TENÓRIO e ROZEMBERG, 1997, p. 5).

O pleno exercício da cidadania, segundo Demo, requer a emancipação do cidadão fundada nas competências e na capacidade crítica, visando sua autonomia. Um cidadão emancipado e competente não admite tutela e dispensa assistência, mesmo sendo um direito social. O ideal da sociedade é a emancipação, com base na cidadania organizada e na capacidade produtiva (DEMO, 1995, pp. 2/8).

Avritzer e Santos sugerem que a maior parte das experiências participativas nos países recém-democratizados do Sul, tem o seu êxito relacionado “à capacidade dos atores sociais de transferirem práticas e informações do nível social para o nível administrativo” (SANTOS e AVRITZER, 2002, p. 54). Os pensadores defendem que, pela coexistência e complementaridade, é possível combinar democracia representativa e democracia participativa. A coexistência implica a convivência das diferentes formas de procedimentalismo, organização administrativa e configuração institucional. Pressupõe o reconhecimento da capacidade substitutiva dos processos de representação hegemônicos pelo procedimentalismo participativo, pelas formas públicas de controle e monitoramento das administrações e pelos processos de deliberação pública. A complementaridade, asseguram os autores, requer uma profunda articulação entre os dois modelos de democracia. Visa complementar a democracia representativa com formas de renovação cultural, associada a uma nova institucionalidade política, que inclui questões como pluralidade e inclusão social

(SANTOS e AVRITZER, 2002):

[...] Coexistindo com mecanismos tradicionais de participação política das democracias representativas, esses fóruns podem propiciar deliberação ampla e constituem novas formas de exercício coletivo do poder político, indicando a formação de outro tipo de democracia em contraposição às formas tradicionais de democracia representativa. (CORTES e GUGLIANO, 2010, p. 49).

A democracia participativa conjuga o exercício da representação pelos eleitos do povo com mecanismos de participação popular, como as assembleias e as discussões públicas em sindicatos, ONGs ou associações de bairros, debates mediados, referendos, plebiscitos e outras iniciativas populares. Faz parte da democracia a participação do povo nas decisões políticas, e essa participação popular legitima o processo democrático. Esse modelo aproxima o eleitor do campo decisório. Até que ponto, contudo, “será possível, em uma sociedade tão marcada pelos desequilíbrios e desigualdades, implantar e fazer funcionar as formas mais avançadas de democracia participativa?”, questiona Maria Benevides (1994, p. 10).

É preciso mais do que recursos tecnológicos, metodologias e instrumentos participativos para que a cidadania possa interferir na vida política de uma comunidade. Na discussão pública, a liberdade de expressão e a igualdade de acesso à informação e à participação, a educação política bem como a compreensão dos participantes sobre as questões políticas em jogo, são elementos fundamentais para a qualidade do processo democrático.