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3. ESFERA PÚBLICA: UMA INTRODUÇÃO

3.1. Possibilidades da deliberação

3.1.2. Pressupostos deliberativos

Em Teoria da ação comunicativa, de 1981, e em Direito e democracia, de 1992, Habermas estabelece alguns princípios normativos fundamentais para a deliberação pública: a situação ideal de discurso7.

Em Direito e democracia Habermas retoma e interpreta os postulados de Cohen em

Deliberation and democratic legitimacy, de 1989, sobre o processo deliberativo: as

deliberações realizam-se de forma argumentativa; são inclusivas e públicas; livres de coerções externas e internas, para não colocar em risco a situação de igualdade; visam a um acordo racional; abrangem todas as matérias passíveis de regulação; incluem interpretações de necessidades e a transformação de preferências (HABERMAS, 1997a, pp. 29-30).

Racionalidade refere-se à expressão racional da opinião. Os argumentos devem ser

construídos de forma justificada, de modo que possam ser aceitos e questionados pelos demais participantes. Existem precondições para a formação da opinião pública racional na esfera pública: imparcialidade, abertura para qualquer tema e revisibilidade das decisões.

Igualdade discursiva refere-se à prevalência do melhor argumento. Todos devem ter

capacidade e igualdade de condições necessárias para participar do processo, não sedo permitidos coerções e uso do poder.

Transparência e publicidade: as regras da deliberação e os argumentos que sustentam

pontos de vista devem ser acessíveis, públicos e transparentes.

Inclusividade significa que todos os indivíduos envolvidos de forma direta ou indireta

podem participar e contribuir para o debate.

Reciprocidade exige que os interlocutores realizem movimentos dialógicos de forma

cooperativa. Os interlocutores podem adotar o ponto de vista do outro e até reformular seus discursos.

Reflexividade é a revisão crítica dos próprios argumentos, valores e pressupostos

diante de novas razões, seja para esclarecer algum ponto, seja para indagar a respeito do melhor caminho a ser seguido.

Dada a grande discussão em torno das regras propostas por Habermas e Cohen, alguns autores reexaminam esses pressupostos (MAIA, 2008, p. 32). Segundo observa Farias,

“Habermas discorda da amplitude que Cohen atribui ao processo deliberativo. Diferentemente

7A partir dos ideais deliberativos habermasianos, alguns autores pensam a deliberação online e adaptam aqueles princípios às discussões online (MARQUES, 2010).

deste, Habermas reserva a prática discursiva para a esfera pública e para partes do sistema político, notadamente o parlamento e o poder judiciário.” (FARIAS, 2010, p. 103).

Farias interpreta que a operacionalização prática da deliberação preocupava Bohman, o que o levou a reinterpretar a deliberação não somente como busca pelo consenso, e, sim, como uma

tentativa de resolver as situações problemáticas, restaurar a cooperação entre os atores e coordenar seus resultados. Nesse sentido, para que a deliberação se desenvolva basta que os participantes reconheçam que eles contribuem e influenciam os resultados, mesmo discordando deles. (FARIAS, 2010, p. 103).

James Bohman defende um processo de justificação pautado na cooperação, no diálogo público e no comprometimento dos cidadãos para com os resultados ou respostas produzidos em um espaço de interlocução pública de caráter aberto, plural e inclusivo. Para Bohman, o processo dialógico da deliberação ocorre num contexto social específico, visando solucionar algum conflito que não seria possível resolver sem a organização e a cooperação mútua (BOHMAN, 1996).

Segundo Bohman, existem desigualdades deliberativas que dificultam o processo, porém não o inviabilizam: assimetrias de poder, desigualdades discursivas e pobreza política. Alguns atores contam com mais recursos, oportunidades de participação e poder de influência que outros. A superação destas desigualdades depende do acesso e da inclusão de atores nos debates públicos (BOHMAN, 1996).

Bohman critica a limitação da influência pública no sistema político. Mais pragmático e menos preocupado com a exigência de uma racionalidade discursiva do melhor argumento, entende que a justificativa das opiniões e decisões dá-se a partir da construção pública do interesse comum, democrática e cooperativamente acordado. A deliberação é um processo dialógico voltado para os efeitos práticos da interação pública e deve focar-se nos vários

demos¸ nos vários públicos conectados, descentrados e pulverizados (BOHMAN, 2000;

2007).

O discurso está interessado nos argumentos e nas justificativas publicamente convincentes e busca reconstruir ideais de convergência, unanimidade e imparcialidade em termos políticos. Na teoria dos discursos, os pressupostos requeridos para a participação ativa dos cidadãos são muito exigentes, tornando o ato discursivo uma atividade mais fechada, em

comparação à deliberação dialógica, proposta por Bohman8.

Só é possível, segundo Bohman, alcançar resultados positivos de experiências de democracia deliberativa pela criação de condições sociais e arranjos institucionais que permitam o diálogo livre e aberto entre cidadãos capazes de formular juízos informados e racionais. Bohman afirma que a complexidade social configura-se como um desafio para a viabilização da democracia deliberativa. Entretanto, recusa os modelos comunitaristas e associativistas9, pois nenhum deles oferece soluções viáveis às dificuldades da democracia

deliberativa. O autor sustenta que o pluralismo, a complexidade e a desigualdade social podem ser superados a partir da criação de novos fóruns institucionalizados de participação:

O êxito de uma forma deliberativa de democracia depende da criação de condições sociais e arranjos institucionais que propiciem o uso publico da razão. A deliberação é pública na medida em que estes arranjos permitem o diálogo livre e aberto entre cidadãos capazes de formular juízos informados e racionais sobre as formas de resolver situações problemáticas. (BOHMAN, 2000, p. 49).

Em contraposição às teorias normativas comunitaristas e kantianas, Bohman percebe a deliberação pública como uma atividade social dinâmica, compartilhada, dialógica, desempenhada por um sujeito plural, cuja razão incrementa as justificativas para as decisões políticas. Essa atividade deve ocorrer em um marco institucional e interpretativo em constante revisão. O contínuo diálogo entre o público deliberante e as instituições organizadoras do processo deliberativo manterá este marco aberto e democrático.

Sem esse diálogo, completa Bohman, a democracia perde sua capacidade de gerar um poder político legítimo. A ampliação da participação democrática e da igualdade na tomada de decisão é uma meta indispensável para sociedades plurais e complexas: “O mais significativo em nosso período é o potencial para expandir as formas de cooperação dos

cidadãos na esfera pública” (BOHMAN, 2000, p. 57). A complexidade social, o pluralismo

cultural e as crescentes desigualdades sociais só podem ser superadas criando-se novos espaços discursivos e realizando-se reformas institucionais que permitam que os cidadãos

8 Para mais detalhes sobre a diferença entre discurso e diálogo, nas concepções de Habermas e Bohman, ver FARIAS (2000; 2010).

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Os comunitaristas exigem demais dos seus cidadãos ao restaurar a concepção de bem comum, segundo a qual os cidadãos fazem da política um dos seus valores mais elevados. A virtude cívica está acima da cooperação entre grupos com valores distintos. As teorias associativistas e da sociedade civil, da mesma forma, exigem muito dos cidadãos no que se refere à participação voluntarista em uma diversidade de associações e organizações. Segundo Bohman, tais associações resultam insuficientes diante da complexidade das sociedades modernas (BOHMAN, 2000, p. 49).

deliberem juntos e façam uso público da razão de diversas formas.

James Fishkin propôs, em 1991, na obra Democracy and deliberation, uma pesquisa de opinião pública deliberativa, cuja finalidade era incentivar um “microcosmo da população” a engajar-se numa discussão face a face séria, com o intuito de produzir uma opinião pública bem informada (FISHKIN, 2002, p. 40). Para isso, escolheu, aleatoriamente, alguns cidadãos para realizar sua pesquisa, remunerando-os pelo seu trabalho, e ofereceu-lhes informações prévias sobre determinado tema. Posteriormente, reuniu o grupo de cidadãos para que discutissem entre si, publicamente, diante de uma audiência televisiva. Fishkin percebeu mudanças notáveis nas opiniões individuais. O efeito da deliberação consistia, em muitas ocasiões, no aumento da intensidade com que os indivíduos mantinham suas convicções já existentes.

O autor da proposta sustenta que a pesquisa, além de ter uma função consultiva e educativa, garante a capacidade potencial de restaurar o interesse do público informado. Fishkin enfatiza que esses processos podem mudar a opinião pública, mais do que simplesmente refletir as crenças e sentimentos correntes. Podem também servir como alerta para que candidatos políticos10, em períodos eleitorais, tornem suas campanhas mais

deliberativas. Com suas experiências deliberativas, o autor busca aperfeiçoar o debate público, compreender problemas e encontrar alternativas.

Um dos méritos da proposta de James Fishkin, conforme análise de Bohman (2000), é que a ideia de sondar a opinião pública deliberativa cria novos fóruns deliberativos para a articulação da opinião publica de cidadãos não especialistas, mais amplos e públicos do que as associações voluntárias.

Em Procedimiento y sustancia en la democracia deliberativa, publicado em 1996, Joshua Cohen, seguindo uma linha mais próxima ao liberalismo de Rawls, trabalha uma concepção substantiva de democracia que dá lugar à inclusão deliberativa, ao bem comum e à participação, incluindo valores de liberdade e igualdade. A pluralidade de perspectivas e o exercício bem intencionado da razão prática não conduzem necessariamente ao consenso sobre uma filosofia de vida. A combinação entre o pluralismo racional e uma visão substantiva de democracia resulta em uma concepção deliberativa das decisões coletivas que constituem um governo democrático. Cohen vai além da democracia deliberativa

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Cabe lembrar a hipótese de Agenda Setting, que conclui, dentre outras coisas, que o público tem influência sobre a agenda dos candidatos, tanto quanto sobre os assuntos relevantes a serem tratados pela mídia. Sobre o tema, ver McCOMBS (2009).

procedimental (COHEN, 2000). Concorda que, na democracia deliberativa, as decisões coletivas devem ser tomadas diretamente e por meio de um processo deliberativo por aqueles que estão submetidos a ele e que serão atingidos por essas decisões (COHEN, 1997).

Tanto quanto Bohman, Cohen trabalha a questão deliberativa na interseção entre as obras de Habermas e Rawls, contudo está mais atento à institucionalização do processo deliberativo e à capacidade dos indivíduos de chegar a um acordo, mesmo num cenário plural em que se discutam diferentes valores razoáveis. De modo oposto a Habermas, Cohen supõe que pode haver decisões que não ocorram por consenso, mas, ainda assim, serem legítimas, usando-se a regra da maioria (AVRITZER, 2000).

Uma democracia deliberativa institucionaliza o ideal de justificação do exercício do poder político coletivo, assentado no exercício do uso público da razão entre iguais. Cohen afirma que, desta forma, a democracia não é meramente uma forma da política, mas um marco de condições sociais e institucionais que facilita a livre discussão entre iguais, em condições favoráveis à participação, associação e expressão, com aberta autorização para exercer o poder público em tal discussão, mediante disposições que estabeleçam e garantam a responsabilidade e a prestação de contas aos cidadãos por aqueles que exercem o poder, por meio de eleições periódicas competitivas, publicidade e controle legislativo (COHEN, 2000, pp. 29-30).

A deliberação é uma atividade conjunta, baseada em considerações e justificativas racionais e politicamente aceitáveis pela maioria e ancorada na cooperação e no diálogo, que, apesar de orientada a buscar um acordo racional, não visa unicamente ao consenso (e talvez nem chegue a ele), e cujas decisões abrangem a todos os participantes do grupo ou da sociedade. É o que Cohen chama de autorização popular. A democracia deliberativa propõe uma forma de autonomia política na qual todos aqueles governados por decisões coletivas devem concordar com as bases destas condições (COHEN, 2000, p. 32).

Concebe os resultados da deliberação como sendo democraticamente legítimos apenas quando forem objeto de um acordo argumentativo estabelecido entre indivíduos iguais e livres (incluindo liberdades religiosas e de expressão). Segundo Cohen, na democracia deliberativa, as instituições exercem um papel central no próprio processo deliberativo, na medida em que devem prover as condições necessárias para a deliberação entre cidadãos: igualdade, liberdade, autonomia e formação do interesse comum (COHEN, 1999, p. 79).

Ancorado no “princípio da diferença”, de John Rawls11, Cohen indica alguns

princípios a serem seguidos quanto ao formato de um processo deliberativo: pluralismo – inclusão e igualdade deliberativa – todos os cidadãos têm os mesmos direitos, independentemente de sua condição social, política, religiosa, econômica e cultural; bem comum – respeito às prioridades sociais e promoção de maior justiça social; e princípio da participação – igualdade de direitos, de associação, de voto, de ser eleito, de expressão política e igual oportunidade de participação (COHEN, 2000).

Cohen também destaca o papel do associativismo para buscar o bem comum e corrigir as desigualdades econômicas e de participação, na medida em que as associações e grupos organizados representam os interesses de uma ampla base social. Lembrando que estes ambientes associativos não emergem naturalmente, o autor sugere a utilização dos poderes públicos para estimular o desenvolvimento de tipos de associações e grupos organizados que representem os interesses das minorias excluídas (COHEN, 2000, pp. 43-44).

Cohen e Fung, em Radical democracy (2004), indicam tensões entre participação e deliberação. Segundo eles, participação e deliberação são ideias distintas que podem apontar para caminhos diferentes. Existem mecanismos que objetivam melhorar a qualidade dos debates públicos e mecanismos que visam ampliar a participação. Passeatas e referendos são instrumentos que promovem a participação popular, mas não a deliberação. Já os pequenos fóruns e arenas públicas são mais propícios à deliberação, mas limitam a participação da grande massa. Melhorar a qualidade da deliberação e expandir a participação partem de objetivos diferentes (COHEN e FUNG, 2004).

Cabe refletir sobre tal afirmação. Os referendos também podem promover a deliberação, tanto quanto as eleições de representantes políticos, por exemplo. Cria-se um ambiente de discussão pública entre governo, mídia e cidadania, no período que antecede às eleições. Ocorrem momentos deliberativos, mais ou menos racionais, numa interconexão entre as chamadas esferas públicas episódicas, de presença organizada e abstrata, sobre as quais Habermas teorizou.

Para John Dryzek (2000), não apenas o discurso racional legitima a deliberação, apesar de central para a democracia deliberativa. Ainda que careça de comprovação empírica, a inclusão política de diferentes atores sociais pode vir por meio de outras expressões

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Segundo Cohen, “considerando a igualdade como linha de base, este princípio requer que as desigualdades estabelecidas ou sancionadas pela ação estatal contribuam para propiciar a maior vantagem possível aos menos

comunicativas, como a retórica, a emoção, o humor, a fofoca e o testemunho. Defende uma concepção de democracia discursiva que enfatize a competição de discursos na esfera pública. A possibilidade de deliberação é mantida na extensão em que o intercâmbio refletido for possível através das fronteiras de diferentes discursos – traço distintivo de uma modernidade reflexiva (DRYZEK, 2004, p, 51).

Dryzek afirma que a essência da deliberação é geralmente tomada levando em consideração que as alegações favoráveis ou contrárias às decisões coletivas precisam ser justificadas àqueles submetidos às decisões, desde que se tenha a possibilidade de refletir antes de aceitar ou recusar. Dryzek critica, porém, alguns pontos desta percepção, afirmando que, nas deliberações reais, a totalidade ou a maioria dos afetados não parece participar, tornando, assim, a democracia deliberativa vulnerável em relação à sua suposta legitimidade:

No contexto do caso supostamente exemplar de racionamento dos serviços de saúde

no Oregon, Ian Shapiro questiona: “Por que deveríamos atribuir alguma legitimidade

a um processo deliberativo que envolveu uma pequena parte daqueles cujas prioridades relativas aos serviços de saúde estavam de fato sendo discutidas?” (DRYZEK, 2004, p. 41).

Para Dryzek, colocar a questão em termos de direito, capacidade ou oportunidade universal para deliberar, em vez do exercício efetivo daquele direito, capacidade ou oportunidade, torna a democracia deliberativa mais plausível (DRYZEK, 2004, p. 42). O autor refere-se ao direito de participação, porém lembra que a vasta maioria opta por não exercer esse direito, o que também é legítimo. Dryzek cita Michel Walzer: “A deliberação não é uma atividade para o demos … 100 milhões deles, ou mesmo 1 milhão ou 100.000 não podem plausivelmente raciocinar conjuntamente.” (DRYZEK, 2004, p. 42). Essa questão é conhecida como problema de escala e refere-se à impossibilidade, em razão do excessivo contingente populacional e aos limites físicos e geográficos das sociedades contemporâneas, de construção de uma nova ágora ou assembleias abertas, nas quais os cidadãos se reuniam para discutir a administração da cidade, como na Grécia antiga.

Dryzek argumenta que a deliberação como competição de discursos possibilita alcançar a legitimidade pelo discurso (“legitimidade discursiva”) entre uma ampla variedade de atores competentes (DRYZEK, 2004, p. 58).

Gutmann e Thompson também entendem que a deliberação é caracterizada pela justificação, “que pode assumir contornos processuais e/ou substantivos” (2004, p. 3), contudo, partem de uma perspectiva ainda mais substantiva. O que os preocupa é entender

como os cidadãos lidam com os conflitos cotidianos da política. Não esperam o consenso acerca das questões conflituosas, porém anseiam que haja respeito mútuo entre os participantes de discussões públicas, tanto quanto a compreensão das diferenças entre atores sociais, e que possam, ainda, ser realizadas visando a um acesso horizontal. Além de críticos do procedimentalismo, alertam para o princípio da responsividade – responsabilidade diante das políticas que sustentam e quanto às suas consequências (GUTMANN e THOMPSON, 1996).

Michael Froomkin (2004) entende que o ideal discursivo almejado por Habermas requer que todas as vozes sejam ouvidas, que o melhor argumento disponível ao nosso conhecimento seja trazido à tona, sendo colocado sem utilização da força:

O objetivo de Habermas não é a democracia direta tal como ela é. [...] Antes disso, nós precisamos estruturas diferentes que aperfeiçoem a democracia, suplementem o debate, e encorajem o envolvimento do cidadão o que, em última análise, será mais parecido e sentido com a auto-governança (FROOMKIN, 2004, pp. 15-16).

Isso implica também alguns pontos quanto à comunicação ou ao pronunciamento do discurso: que ele seja compreensível, adequado à situação em que é proferido e que seja verdadeiro, assim como aquele que o pronuncia. Froomkin sugere uma nova escala de comunicação, baseada na reunião de forças de pequenas comunidades, na qual haja interação humana face a face e o princípio seja comunicar, não manipular, e força seja só a do melhor argumento (FROOMKIN, 2004, p. 8).

Froomkin propõe uma renovação substancial das esferas públicas, assim como a criação de novos espaços e formas institucionais de engajamento do cidadão no processo de decisão política, pois, também como afirma Farias (2010), a participação nos espaços deliberativos desenvolve virtudes como a cidadania e incentiva os cidadãos a considerarem questões políticas de maneira mais pública, ou seja, visando aos interesses da sociedade como um todo.

Catherine Audard (2006) acredita que seria interessante dar ao cidadão o papel principal na busca e na realização do bem comum. A democracia deliberativa parece ser o meio mais legítimo de tomar decisões, uma vez que proporciona ao cidadão a possibilidade de conhecer argumentos, defender ideias e decidir qual proposta interessa mais à sociedade, à comunidade, ou a si mesmo, ainda que a instância individual não deva ser levada em conta (AUDARD, 2006).

O processo é significativamente legítimo porque, uma vez preparados, a par das informações e argumentos que antes ignoravam, e podendo defender suas posições em termos aceitáveis, os cidadãos cumprirão seus deveres eleitorais e estarão em melhores condições para escolher em quê ou no quê votar, por exemplo, e farão isso como um gesto público, mas também pessoal. Capacitar o eleitor a tomar decisões pode fortalecê-lo como indivíduo, tanto quanto seus laços coletivos.

O ideal de democracia deliberativa procura adaptar as instituições políticas às

sociedades complexas, “descentralizadas”, pluralistas, multiculturais, que as formas

tradicionais de representação política tendem a trair. Audard afirma que a democracia deliberativa se recusa a confiar apenas em experts e em instituições para corrigir os defeitos intrínsecos dos regimes democráticos e foca-se no “uso público da razão” para democratizar as práticas e as instituições políticas, em particular num contexto social cada vez mais fragmentado e atomizado, no qual os cidadãos não partilham mais uma concepção comum de

objetivos de vida coletiva. “É igualmente mais urgente se falar, discutir e debater

conjuntamente o fato de que poucas coisas nos unem e que a verdade é inacessível.” (AUDARD, 2006, p. 66).

Audard vai além da perspectiva habermasiana e alerta que, para evitar o risco de cair no domínio da retórica, é preciso completar as condições de realização e bom funcionamento da deliberação pública descritas por Habermas – publicidade, igualdade de direitos, ausência de enganação e de coação – com uma “concepção de cidadania e de sua relação com a

individualidade moral”, em particular, a capacidade que os indivíduos têm de formar “julgamentos refletidos”, de colocar em “equilíbrio reflexivo” convicções pessoais e

princípios de justiça, diz a autora, citando John Ralws (AUDARD, 2006, p. 64).

Rousiley Maia afirma que Habermas, em suas obras recentes, considera de maneira